sábado, 19 de maio de 2012

GUERRILHA DO ARAGUAIA - NAS LEMBRANÇAS DE DUAS VIDAS, O RESGATE DA MEMÓRIA E DA VERDADE.


Guerrilha do Araguaia,
a esquerda em armas -
2ª Edição - 2012
No dia 13 de dezembro de 2007 faleceu minha filha querida, Ana Carolina. O mundo pareceu desabar sobre minha cabeça. Embora fale por mim, posso dizer que foi o mesmo sentimento sentido por sua mãe. Por mais de um ano estive abaixo da linha que delimita a razão à emoção mais extrema. Nada além do sentimento, da emotividade, da sensação de vazio, parecia me acompanhar. As presenças de minha companheira e de meu filho me davam ânimo, mas tudo bem distante do tempo em que a Carol estava entre nós.
Dentre as incontáveis e minuciosas lembranças, de fatos e atos marcantes que fazem permanentemente nos lembrarmos dela havia uma em especial. Carolina era uma pessoa extremamente sensível, e de uma esperteza e inteligência que nos tornam suspeitos ao descrever, mas que pode ser atestada por quem a conhecia. Ela sempre procurou valorizar aquilo que nos destacava, a mim, à sua mãe e ao Iago. No meu caso uma das coisas que ela buscava sempre valorizar era o meu trabalho. Ele percebia minha dedicação e sentia que um dos orgulhos que eu tinha era o meu livro sobre a Guerrilha do Araguaia, tema que sempre esteve presente em nossa casa. Por várias vezes, quando uma professora fazia aniversário, e ela julgava ser importante levar um presente, algo comum às meninas de sua idade, ela me procurava e pedia um livro com dedicatória. Percebia-se que junto com o presente acompanhava também o seu orgulho por presentear suas professoras com um livro escrito por seu pai. Isso era visível.
Nesse livro, na dedicatória que fiz quando ele foi publicado, e que eu esperei até que ela nascesse para formulá-la, está escrito: “Para Celma, Iago e Ana Carolina, partes de mim que faltavam”. Carol nasceu no mês de março, e o lançamento da primeira edição do livro aconteceu em abril daquele mesmo ano: 1997.
Não somente na dedicatória, ou na alegria que ela tinha em presentear o livro, também o ano em que ele foi publicado, que coincidiu com o nascimento dela, criou uma forte relação em meu coração e em minha razão. Quando Carol morreu esses sentimentos se misturaram, e a vontade que eu tinha de reeditá-lo se dissipou. Era impossível para mim pensar em outra coisa que não fosse a perda de minha filha.
Pouco a pouco outro sentimento foi me atormentando. Inversamente do que acontecera até então, passei a acreditar que uma das maneiras de homenagear minha filha seria atualizar o meu livro e dedicá-lo integralmente à sua memória. Carregamos junto com os filhos, e também com os livros, a sensação de tê-los para sempre, e quaisquer que sejam as circunstâncias eles eternizarão nossa memória, e serão a materialização de nossas lembranças. Com minha filha, já não posso fazer mais isso, embora ainda me reste meu filho, a quem amo muito. Mas posso com o livro, e a dedicação à sua memória, manter vivo esse sentimento de eternização. Pois sei, que assim, quando eu morrer, permanecerá meu livro como um legado e nas suas primeiras páginas a lembrança de que um dia Ana Carolina se fez presente entre a História da Guerrilha do Araguaia e a minha vida. Três histórias, guardadas para sempre na memória.
No primeiro ano da morte de minha filha recebi o convite para acompanhar a comissão que investigava os acontecimentos ligados à Guerrilha do Araguaia, e que se dirigia ao Pará para realizar sessões públicas e identificar os casos de abusos e torturas sobre moradores da região em que o conflito aconteceu e as denúncias de assassinatos de guerrilheiros que foram presos com vida. Apesar da importância do convite, recusei. Não tinha forças para me dedicar a nada, e o desânimo me impunha uma reclusão, e o que me restava de forças dediquei a lutar para que a depressão não me tirasse a vontade de viver.
Mas no ano seguinte me integrei ao grupo, que hoje é conhecido como Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), e já por diversas vezes participei das expedições como observador dos trabalhos desenvolvidos com competência, mas com enormes dificuldades para se obter sucesso em função principalmente do silêncio daqueles que comandaram execuções e depois a ocultação dos cadáveres dos guerrilheiros que foram assassinados após terem sido presos e torturados.
Dois anos depois, final de 2009, recebi o convite da coordenação do projeto Memórias Reveladas, vinculado ao Arquivo Nacional, para colaborar na preparação de um arquivo de áudio-visual sobre a Guerrilha do Araguaia, aproveitando tratar-se ainda de um evento recente e, assim, ouvir depoimentos de moradores da região Norte do Tocantins e Sul do Pará, que estiveram no meio da guerra, e sofreram na carne, literalmente, a brutalidade das torturas, do desrespeito e do comportamento criminoso de agentes do Estado brasileiro, em plena ditadura militar. Isso terminou se consolidando no ano de 2010.
Já livre do medo da depressão, mas com a imagem de minha filha a me acompanhar por todos os lados, vi nesse convite a possibilidade de poder completar essa pesquisa, e ao mesmo tempo, através desse projeto eternizar para os que vierem a ler o meu livro, a memória de minha filha.
Aceitei o convite e o desafio de voltar a pensar na reedição de meu livro. O que passo a relatar, é o resultado dessas escolhas, me tirou da letargia em relação a esse tema que me acompanhará pelo resto da minha vida e me recolocou de frente a novos sofrimentos, que não me deixam esquecer os meus, pela razão do desaparecimento de minha filha, mas me faz saber que os sofrimentos acompanham a vida humana. Alguns, como no meu caso, marcados por uma brutal fatalidade. Outros como os que contam a História da Guerrilha do Araguaia, de uma brutalidade inexplicável, que nos põe diante de reflexões sobre a perversidade que constrói a sociedade humana, mas que resistimos em crer que sejam da essência do ser humano, pois que senão uma condição criada por sentimentos que envolvem poder e ganância.
A História da Guerrilha foi um momento de tentativa de ruptura com a ordem estabelecida no Brasil desde 1964. Talvez seja demais referir-se àquele período contemplando-o com o adjetivo “ordem”. Na verdade devemos dizer que prevaleceu um regime de exceção, de privação da liberdade e do sentido que as civilizações ocidentais dedicam à democracia. Imposto pelo poder das armas, somente assim poderia ser mantido, e alguns acreditavam que também só pelas forças das armas ele poderia ser destruído.
Quando publiquei meu livro, cinco anos depois de iniciar a pesquisa, eu havia percorrido a região onde se desenrolou a guerrilha por quatro vezes. Estive em Xambioá (TO), São Geraldo (PA), Brejo Grande (PA), Palestina (PA), São Domingos do Araguaia (PA), Fazenda Bacaba, na Transamazônica (PA) e Marabá (PA). Somente deixei de ir a São João do Araguaia. Do outro lado da Transamazônica, da direção de quem vai de São Geraldo para Marabá, local onde se juntam os rios Araguaia e Tocantins.
Ainda não havia o asfalto que hoje facilita o deslocamento entre essas localidades e nos possibilitava uma visão melhor das dificuldades existentes por ali durante a década de 1970. Mas o que me interessa mesmo enfatizar, nesse momento, foi a dificuldade em conseguir depoimentos que pudessem relatar, com os detalhes que um historiador anseia, tudo que de fato ocorrera naquela região durante o conflito guerrilheiro que quase começou a incendiar o sul do Pará e norte do atual Estado do Tocantins, então Goiás. Obtive depoimentos importantes, ricos em conteúdo histórico, como o do ex-guia José Veloso, ou o de D. Maria da Metade cujo marido morreu como conseqüência das torturas sofridas. Isso dentre tantos outros que hoje podem ser pesquisados no Arquivo Nacional.
Mas havia um medo latente que impedia aquelas pessoas em falar de forma aprofundada e com os necessários detalhes, sobre os acontecimentos que transtornaram toda uma população, espalhando o medo, terror e revolta. Um terrorismo não praticado pelos guerrilheiros, como procuravam divulgar os agentes repressores, mas por eles próprios, que submeteram camponeses, homens e mulheres, pessoas humildes e trabalhadoras, às mais sórdidas e aterradoras agressões. Nós sabíamos dos abusos cometidos, até mesmo por intermédio de alguns deles que só recuavam em suas afirmações quando ligávamos o gravador para registrar os depoimentos. O que era dito antes, num bate-papo informal, desvanecia-se logo em seguida como conseqüência dos traumas e dos temores de se estar sendo permanentemente vigiado pelos “secretas”.
Sabíamos assim, embora com dificuldades para registrar com toda a intensidade dessas declarações informais, que a brutalidade que se abateu sobre a população deixara a todos intimidados e poderia impedir, pelo menos naquele momento, depoimentos mais contundentes, inclusive com indicações dos prováveis (e hoje confirmados) atos de execução de guerrilheiros presos com vida. Mas, mais do que isso - como se tamanha sanha criminosa pudesse ser superada, ocorre no entanto que não falo agora de combatentes, mas de pessoas simples, moradores humildes daquela região – se abateu sobre a população toda uma reação brutal, covarde e criminosa, com práticas monstruosas de torturas, desencadeadas por profissionais frios, treinados para não sentir remorsos, agir cruelmente e até mesmo matar, indistintamente, qualquer um que fosse suspeito de ter tido algum tipo de contato com os guerrilheiros.
Frederico e Adalgisa, camponeses
que deram apoio à guerrilha
Quando fui à Brasília, portanto, participar do Seminário sobre Direitos Humanos na América Latina, em 2010, com o intuito de também realizar essas entrevistas, eu sabia que iria encontrar pessoas sofridas que tinham sido humilhadas e tratadas com desrespeito por agentes públicos que deveriam cumprir o papel que lhes caberiam constitucionalmente: o de protegê-las. Quase todos, homens e mulheres com alguma história triste para contar, lutavam naquele momento também para serem indenizados pelos sofrimentos que passaram e pelas perdas que tiveram como decorrência dos dias de prisão, torturas e perseguições.
Mas surpreenderam-me os relatos que gravamos e que estão devidamente documentados pelo Arquivo Nacional, através do Projeto Memórias Reveladas. Alguns deles, apesar de um tempo considerável que separa aqueles acontecimentos, mantém de tal forma um trauma decorrente das brutalidades que não se contiveram e, emocionados, verteram lágrimas ao se lembrarem das torturas e humilhações. Percebia-se um sentimento forte, de revolta, ainda represado, e uma incredulidade sobre tamanha bestialização, na medida em que eles não compreendiam as razões das acusações a que àquela época foram submetidos, nem os motivos por terem sido tratados tão estupidamente.
Esses depoimentos, a minha participação no Grupo de Trabalho Araguaia, os constantes retornos á região como consequência disso e o sonho refeito de lançar a segunda edição do meu livro e dedicá-lo à minha filha, me reanimaram. E em meio à dificuldades de saúde e com a pressão de um doutorado, aceitei o desafio e, oito meses depois pude ver o meu livro ser reeditado, agora devidamente atualizado e ampliado, pela Editora Anita de São Paulo, em co-edição com a Fundação Maurício Grabois.
Em suas primeiras páginas, conforme prometido, inseri a dedicatória à minha querida Carol: “À memória de minha filha, Ana Carolina Oliveira Campos. Parte de mim que se foi, em 2007, aos dez anos de idade, vítima de leucemia. Seu nascimento se deu no mesmo ano de lançamento da primeira edição desse livro, que ela sempre pedia para presentear suas professoras”.
Divino - o Nunes - filho de
D. Santinha
Por duas vezes, em lançamentos realizados em São Paulo e Goiânia, sucumbi às saudades e a emoção falou mais forte. Percebi o quanto essa ligação, entre a guerrilha e a minha vida, estava definitivamente amarrada pelas lembranças de minha filha. E me fez recordar de uma pessoa maravilhosa, D. Maria Gomes dos Santos – D. Santinha – mãe de um dos guerrilheiros, o goiano Divino Ferreira de Souza (Nunes). Com a Carol e Iago, mas principalmente com ela, por diversas vezes visitamos D. Santinha, seja para conversarmos sobre sua luta em busca de informações a respeito do paradeiro de seu filho, ou até mesmo para tomarmos um cafezinho, aos sábados, quando ela se dispunha a preparar uns pãezinhos de queijo.
Com sua simplicidade costumeira ela aproveitava para nos mostrar os recortes dos jornais, contando sua via crúcis, em busca de notícias sobre o seu filho. Rotina que se repetia na vida de centenas de outras mães e pais, à procura dos filhos, cujos paradeiros eram e permanecem incertos, devido aos comportamentos psicopatas de cruéis criminosos de guerra, que sempre se recusaram a dar informações que aliviassem suas angústias e sofrimentos. Eu conversava com D. Santinha tendo ao lado minha filha, e acompanhava sua dor pela perda de um filho, agravada pelo fato não saber onde estava o seu corpo. Uma dor potencializada pelo silêncio dos algozes. Mal sabia eu, que o destino me reservava para o resto da vida, aquele mesmo sentimento que eu buscava compartilhar, na solidariedade a D. Santinha. A dor da perda de uma filha.
Ela e a Carol, de idades diferenciadas por um tempo longo, partiram em épocas próximas, e me deixaram a juntar suas lembranças no tema da guerrilha do Araguaia. Cada vez que olho para o meu livro, lembro-me delas. Eu já havia feito uma dedicatória à D. Santinha na primeira edição, e naturalmente, a mantive nesta reedição. Mas nesse meio tempo, entre as duas edições, eu as vi partir, deixando em minhas lembranças na junção de suas duas imagens a história de outras vidas que se foram nas matas do Araguaia.
Os dias e meses que se seguiram à preparação para a segunda edição do meu livro, o envolvimento agora com o lançamento por vários Estados, as lembranças revividas, me jogaram definitivamente de volta ao tema, não me restando outra saída que não voltar ao leito natural de minhas pesquisas, reincorporando isso agora ao meu doutorado.
Mudei o meu projeto de pesquisa e volto a me dedicar a um acontecimento do qual eu comecei pesquisando para registrá-lo na história, mas que pelas razões citadas me vi envolvido diretamente com ele e ao mergulhar de corpo e alma não pude submergir sem carregá-lo comigo. Incorporei-me a essa história, me sinto dentro dela e busco agora compreender as transformações de uma região marcada por conflitos, e as ações que causaram profundas mudanças nas vidas dos camponeses e dos lugares por onde se desenvolveu a Guerrilha do Araguaia.
Ao retornar ao ambiente onde se desenrolou esse conflito, me acompanhará, sempre, as lembranças dessas duas personagens, de gerações distintas, mas que não estão mais entre nós. Elas serão o incentivo mais importante a me empurrar em busca de outras respostas. Quiçá me fosse permitido estar presente quando porventura pudéssemos ter informações sobre o filho de D. Santinha, o Nunes, cujo corpo certamente se encontra em algum lugar das matas do Araguaia. Tenho certeza que nesse dia meu coração sentirá mais forte, se isso for possível, a dor da perda de uma filha, e me deixará mais triste saber que D. Santinha partiu sem que a ela fosse dado pelo menos o direito de uma inversão da lógica natural da vida, poder enterrar o corpo de um filho que se foi.
Em tempos de tentativa de fazer com que nos reencontremos com nossa história, com a criação da Comissão da Verdade, esses sentimentos me dão força e ânimo para transformar as lágrimas em disposição e vontade de não permitir que a memória seja apagada.
Sigo, então, adiante, resgatando a história dos que lutaram no Araguaia, da vida dos camponeses tornados invisíveis por tanto tempo e daquelas pessoas que não me deixam esquecer que das matas do Araguaia se incorporaram definitivamente em minha vida uma história de amor, determinação, coragem e de uma luta incansável pela verdade.
Além de minha filha e de D. Santinha, dedicarei todos esses próximos momentos aos parentes dos guerrilheiros, incansáveis na busca por informações sobre os corpos de seus entes queridos. E aos camponeses do Araguaia, para que a história não lhes relegue somente pequenas notas aos pés das páginas.



No dia 17 de outubro, na Livraria FNAC, no Flamboyant Shopping Center, estarei lançando o meu livro. Também será lançado o livro de Liniane Haag Brum, "Antes do Passado", sobre o seu tio, guerrilheiro no Araguaia, Cilon Cunha Brum.

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