sábado, 5 de maio de 2012

O GRITO!!!!

Assisti com profundo sentimento de revolta, mas não de surpresa, as notícias sobre o leilão da obra “O Grito”, do pintor expressionista norueguês, Edvard Munch. Não vou entrar aqui no mérito da qualidade da obra, mas sei que essa à qual me refiro aqui é sem dúvida uma obra-prima, embora eu seja leigo no assunto. Contudo os valores atribuídos a essas obras ofendem a dignidade humana. Não pode ser visto como normal a atribuição de um valor completamente abstrato, já que impossível de ser mensurado, principalmente em um momento pelo qual o mundo passa por uma crise econômica que se estende por vários anos e sem perspectivas de solução. 
O Grito
Vendido por US$ 119.922,500
Pior do que isso é a nossa curiosidade crítica nos alertar para uma comparação escandalosa: esse valor corresponde a cerca de 340.000 salários pago ao trabalhador que recebe um salário mínimo por mês. Mas há ainda uma parcela enorme da população brasileira, e também a milhões de outros, na América Latina, Ásia e, principalmente, África, que sobrevivem com valores irrisórios, bem menores do que o salário mínimo brasileiro. Poder-se-ia contar meio milhão de pessoas nessa situação, cuja soma de seus rendimentos valem menos do que o quadro em análise.
Mas porque valores assim, superlativos, são aceitos sem nenhuma contestação? Mesmo por aqueles que porventura liderem manifestações contra as absurdas concentrações de renda e as desigualdades sociais? O que se percebe é a forma como as pessoas se enquadram no sistema capitalista, e aceitam como normais condições aberrantes e geradoras das próprias desigualdades que são motivos de preocupações e manifestações públicas.
As normas e leis construídas ao longo do processo de consolidação do sistema capitalista acomodou a percepção das pessoas, fazendo-as ver como corriqueiros atos que muitas vezes denotam profundo desrespeito pela condição humana, pela situação de milhões de pessoas que vivem à míngua e de crianças que morrem aos milhares pelas péssimas condições de pobreza a que estão submetidas.
Escultura de Bronze, "L'homme
qui marche I", do suiço Giacometti
vendida por US$104,3 milhões.
Porque é aceitável punir um parlamentar por ter aceitado doações não contabilizadas de trinta mil reais, para uma campanha política, mas se vê como normal a aquisição de um quadro por 120 milhões de dólares? Claro, eu sei que o proprietário não é brasileiro, mas isso não vem ao caso. Permito-me aqui desvendar a forma como a hipocrisia se esconde por trás de comportamentos dúbios. Ambos os casos são condenáveis, e mereceria repulsa parecida. Embora somente um dos casos permita punição, já que o sistema garante a uma pessoa liberdade para usufruir de sua riqueza. Mas deveria ser moralmente condenável, e socialmente inaceitável.
O comparativo aqui se pode considerar sem muita lógica, mas obedece simplesmente ao objetivo de demonstrar que a cultura imposta, e que compõe a nossa superestrutura, tem o claro intuito de tornar aceitáveis as desigualdades sociais, a ponto de tornar um indivíduo como esse, certamente, em um exemplo da capacidade em acumular riqueza. E isso o tornará conhecido como vitorioso, superior, espécime rara, mas que serve de exemplo, mediante a lógica sistêmica, para quem deseja “vencer” em um mundo de competição e de ferrenha disputa pelo dinheiro.
Não há indignação, portanto, pois se pressupõe que tal dinheiro tenha sido fruto dessa capacidade adquirida inteligentemente pelo esforço pessoal. Pois assim, nos fazem crer, é como funciona o sistema capitalista, em meio a sua “liberdade” de premiar os que “por esforço individual” se destacam dentre os milhões de pobres mortais. Aberração é a pequenina e teimosa ilha de Cuba não aceitar essa “liberdade” capitalista.
Mas não há dinheiro, notadamente milhões, que não sejam acumulados mediante a expropriação, exploração e ludibriação dos trabalhadores. O dinheiro não surge por geração espontânea, e os valores atribuídos, inclusive a uma obra de arte, compõem um universo fetichista – conforme disse Karl Marx – indecifrável pelo senso comum, esse exposto às manipulações dos que controlam a informação. Como, então, avaliar obras de artes que são únicas? O que as fazem custar valores tão absurdos? Por que se pode gastar tanto com tão pouco, enquanto milhões morrem de fome e desnutrição? Por que esses questionamentos não fazem parte do nosso cotidiano, embora fiquemos por todo o tempo indignados com os impostos que pagamos e com os baixos salários que recebemos?
Pintura de Pablo Picasso
"O menino com cachimbo"
vendida por US$104,1 milhões
Quem dera isso fosse uma exceção. Mas valores pagos a quadros, peças e joias, que ultrapassam centenas de milhões de dólares repetem-se todas as semanas e transformam-se em manchetes que visam muito mais transmitir uma sensação de euforia por algo mostrado como espetacular, do que possibilitar a que as pessoas se sintam indignadas por isso acontecer em meio a tamanhas desproporções.
Sentados em nossas poltronas, assistimos a esses espetáculos de acinte à nossa indignação pelas desigualdades que cercam o mundo, mas impotentes diante de uma sociedade cuja indignação é direcionada para fatos momentâneos, espetacularizados pela mídia, e muito pouco se diz ou se faz sobre a maneira estúpida e indecente como as mazelas que exalam odores fétidos movimentam e dão vida a um sistema social profundamente injusto, mas aceito em meio a uma indiferença em relação à essas distorções. Não se combate, enfim, a causa, mas o substrato, as consequências geradas pelos mecanismos de funcionamento do sistema. Falta a verdadeira radicalidade, aquela que nos leva ao sentido etimológico da palavra, oriunda de raiz, aqui no entendimento da base que dá sustentação a um estilo de vida somente possível de ser alcançado por uma minoria. Ser radical, verdadeiramente, é combater essa estrutura que gera as desigualdades sociais.
Um grito que deveria ser de rebeldia contra o sistema, em toda a sua essência, fica sufocado pela maneira como a alienação e a manipulação conduz a cultura e a obsessão pela riqueza disputada por todos, mas somente alcançada por poucos.
Acampamento de refugiados no Sudão
Numa representação de angústia e desespero, que marcou a própria vida do autor e a sua relação conflituosa com um pai autoritário, e ressentindo-se da morte da mãe e da irmã, a expressão de horror, ou de espanto, pode também representar situações de demências coletivas e do medo que incorpora o cotidiano. Este não só decorrente da própria realidade, mas estimulado por diversos segmentos midiáticos e religiosos, como parte do funcionamento do sistema, para manter as pessoas alienadas, horrorizadas e domesticadas. Mas, principalmente, com suas atenções voltadas para  o que é periférico e jamais se aprofundar em questões que coloquem em xeque o mundo real.
Os gritos que ecoam da multidão assemelham-se à ingenuidade retratada pelo cinema, no comportamento do personagem que dá título ao filme: O Mundo de Andy.
Repito aqui uma frase que inseri em um artigo publicado em julho do ano passado neste mesmo blog (http://www.gramaticadomundo.com/2011/07/tudo-que-e-solido-desmancha-no-ar.html):
“Enquanto isso se marcha contra tudo, menos contra aquilo que é, em essência, responsável pelas condições que tornam a sociedade insegura e refém de seus medos e individualidades. Muito embora todo um aparato repressivo seja mobilizado para conter isso, por uma necessidade de não se perder o controle do poder bem como para se impor a autoridade, não são essas as formas de lutas, nem o conteúdo que as movem, que irão fazer com que a burguesia perca o seu sono".
Afinal, como disse Marx: “Tudo que é sólido desmancha no ar”.

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