Assisti
com profundo sentimento de revolta, mas não de surpresa, as notícias sobre o
leilão da obra “O Grito”, do pintor expressionista norueguês, Edvard Munch. Não
vou entrar aqui no mérito da qualidade da obra, mas sei que essa à qual me
refiro aqui é sem dúvida uma obra-prima, embora eu seja leigo no assunto.
Contudo os valores atribuídos a essas obras ofendem a dignidade humana. Não
pode ser visto como normal a atribuição de um valor completamente abstrato, já
que impossível de ser mensurado, principalmente em um momento pelo qual o mundo
passa por uma crise econômica que se estende por vários anos e sem perspectivas
de solução.
O Grito Vendido por US$ 119.922,500 |
Pior do que isso é a nossa
curiosidade crítica nos alertar para uma comparação escandalosa: esse valor
corresponde a cerca de 340.000 salários pago ao trabalhador que recebe um salário mínimo por mês. Mas há ainda uma parcela enorme da
população brasileira, e também a milhões de outros, na América Latina, Ásia e,
principalmente, África, que sobrevivem com valores irrisórios, bem menores do
que o salário mínimo brasileiro. Poder-se-ia contar meio milhão de pessoas
nessa situação, cuja soma de seus rendimentos valem menos do que o quadro em
análise.
Mas porque valores assim,
superlativos, são aceitos sem nenhuma contestação? Mesmo por aqueles que
porventura liderem manifestações contra as absurdas concentrações de renda e as
desigualdades sociais? O que se percebe é a forma como as pessoas se enquadram
no sistema capitalista, e aceitam como normais condições aberrantes e geradoras
das próprias desigualdades que são motivos de preocupações e manifestações
públicas.
As normas e leis construídas ao
longo do processo de consolidação do sistema capitalista acomodou a percepção
das pessoas, fazendo-as ver como corriqueiros atos que muitas vezes denotam
profundo desrespeito pela condição humana, pela situação de milhões de pessoas
que vivem à míngua e de crianças que morrem aos milhares pelas péssimas
condições de pobreza a que estão submetidas.
Escultura de Bronze, "L'homme
qui marche I", do suiço Giacometti
vendida por US$104,3 milhões.
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Porque é aceitável punir um
parlamentar por ter aceitado doações não contabilizadas de trinta mil reais,
para uma campanha política, mas se vê como normal a aquisição de um quadro
por 120 milhões de dólares? Claro, eu sei que o proprietário não é brasileiro,
mas isso não vem ao caso. Permito-me aqui desvendar a forma como a hipocrisia
se esconde por trás de comportamentos dúbios. Ambos os casos são condenáveis, e
mereceria repulsa parecida. Embora somente um dos casos permita punição, já que o sistema garante a uma pessoa liberdade para usufruir de sua riqueza. Mas deveria ser moralmente condenável, e socialmente inaceitável.
O comparativo aqui se pode
considerar sem muita lógica, mas obedece simplesmente ao objetivo de demonstrar
que a cultura imposta, e que compõe a nossa superestrutura, tem o claro intuito
de tornar aceitáveis as desigualdades sociais, a ponto de tornar um indivíduo
como esse, certamente, em um exemplo da capacidade em acumular riqueza. E isso
o tornará conhecido como vitorioso, superior, espécime rara, mas que serve de
exemplo, mediante a lógica sistêmica, para quem deseja “vencer” em um mundo de
competição e de ferrenha disputa pelo dinheiro.
Não há indignação, portanto, pois se
pressupõe que tal dinheiro tenha sido fruto dessa capacidade adquirida
inteligentemente pelo esforço pessoal. Pois assim, nos fazem crer, é como
funciona o sistema capitalista, em meio a sua “liberdade” de premiar os que “por
esforço individual” se destacam dentre os milhões de pobres mortais. Aberração
é a pequenina e teimosa ilha de Cuba não aceitar essa “liberdade” capitalista.
Mas não há dinheiro, notadamente
milhões, que não sejam acumulados mediante a expropriação, exploração e
ludibriação dos trabalhadores. O dinheiro não surge por geração espontânea, e
os valores atribuídos, inclusive a uma obra de arte, compõem um universo fetichista
– conforme disse Karl Marx – indecifrável pelo senso comum, esse exposto às
manipulações dos que controlam a informação. Como, então, avaliar obras de
artes que são únicas? O que as fazem custar valores tão absurdos? Por que se
pode gastar tanto com tão pouco, enquanto milhões morrem de fome e desnutrição?
Por que esses questionamentos não fazem parte do nosso cotidiano, embora
fiquemos por todo o tempo indignados com os impostos que pagamos e com os
baixos salários que recebemos?
Pintura de Pablo Picasso
"O menino com cachimbo"
vendida por US$104,1 milhões
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Quem dera isso fosse uma exceção.
Mas valores pagos a quadros, peças e joias, que ultrapassam centenas de milhões
de dólares repetem-se todas as semanas e transformam-se em manchetes que visam
muito mais transmitir uma sensação de euforia por algo mostrado como
espetacular, do que possibilitar a que as pessoas se sintam indignadas por isso
acontecer em meio a tamanhas desproporções.
Sentados em nossas poltronas,
assistimos a esses espetáculos de acinte à nossa indignação pelas desigualdades
que cercam o mundo, mas impotentes diante de uma sociedade cuja indignação é
direcionada para fatos momentâneos, espetacularizados pela mídia, e muito pouco
se diz ou se faz sobre a maneira estúpida e indecente como as mazelas que
exalam odores fétidos movimentam e dão vida a um sistema social profundamente
injusto, mas aceito em meio a uma indiferença em relação à essas distorções. Não
se combate, enfim, a causa, mas o substrato, as consequências geradas pelos
mecanismos de funcionamento do sistema. Falta a verdadeira radicalidade, aquela
que nos leva ao sentido etimológico da palavra, oriunda de raiz, aqui no
entendimento da base que dá sustentação a um estilo de vida somente possível de
ser alcançado por uma minoria. Ser radical, verdadeiramente, é combater essa
estrutura que gera as desigualdades sociais.
Um grito que deveria ser de rebeldia contra o sistema, em toda a sua
essência, fica sufocado pela maneira como a alienação e a manipulação conduz a
cultura e a obsessão pela riqueza disputada por todos, mas somente alcançada
por poucos.
Acampamento de refugiados no Sudão |
Numa representação de angústia e
desespero, que marcou a própria vida do autor e a sua relação conflituosa com
um pai autoritário, e ressentindo-se da morte da mãe e da irmã, a expressão de
horror, ou de espanto, pode também representar situações de demências coletivas
e do medo que incorpora o cotidiano. Este não só decorrente da própria
realidade, mas estimulado por diversos segmentos midiáticos e religiosos, como
parte do funcionamento do sistema, para manter as pessoas alienadas, horrorizadas
e domesticadas. Mas, principalmente, com suas atenções voltadas para o que é periférico e jamais se aprofundar em
questões que coloquem em xeque o mundo real.
Os gritos que ecoam da multidão
assemelham-se à ingenuidade retratada pelo cinema, no comportamento do personagem
que dá título ao filme: O Mundo de Andy.
Repito aqui uma frase que inseri em
um artigo publicado em julho do ano passado neste mesmo blog (http://www.gramaticadomundo.com/2011/07/tudo-que-e-solido-desmancha-no-ar.html):
“Enquanto isso se marcha contra
tudo, menos contra aquilo que é, em essência, responsável pelas condições que
tornam a sociedade insegura e refém de seus medos e individualidades. Muito
embora todo um aparato repressivo seja mobilizado para conter isso, por uma
necessidade de não se perder o controle do poder bem como para se impor a
autoridade, não são essas as formas de lutas, nem o conteúdo que as movem, que
irão fazer com que a burguesia perca o seu sono".
Afinal, como disse Marx: “Tudo que
é sólido desmancha no ar”.
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