segunda-feira, 16 de abril de 2012

A REVISTA VEJA, O BARÃO DE MUNCHAUSEN E A ANENCEFALIA

Peter Pan, da “terra do nunca”; Alice, do “país das maravilhas”; Dom Quixote de La Mancha, o cavaleiro da triste figura com o seu leal Sancho Pança e o fiel cavalo Rocinante. Desses quase todos nós temos um mínimo conhecimento, já que em algum momento de nossas infâncias esses personagens fizeram parte do universo juvenil. Mas o que dizer do exagerado Barão de Münchhausen? Poucos o conhecem, mas suas fantásticas aventuras seguramente encontram forte concorrência quando no final de semana buscamos jornais e revistas para nos informarmos. Registre-se que isso se torna cada vez mais difícil.
Para os que ainda não conhecem, Karl Hieronymus, um ex-oficial alemão, o famoso Barão de Münchhausen teve suas fantásticas aventuras, fantásticas e terrivelmente exageradas, retratadas por Rudolph Erich Raspe, e publicadas em Londres no ano de 1785. Também o cinema o imortalizou com o filme “As aventuras do Barão de Münchhausen”, por sinal uma comédia no estilo Monte Pyton, bastante divertida. Um de seus feitos mais hilários, e escandalosamente mentiroso, contados sempre a partir dos relatos de suas aventuras, se deu quando ele inadvertidamente se viu, juntamente com o seu cavalo, preso a um banco de areia movediça; sem se desesperar, apesar de estar afundando lentamente e sem perspectiva de ajuda próxima, só lhe restou um aguçado estado de espírito bastante equilibrado e uma esperteza inédita. Sem vacilar, quando já próximo de ser coberto pela areia, trançou suas pernas na barriga do cavalo, ergueu as mãos sobre a cabeça, puxou o cabelo em forma de trança para cima, e usou de toda a sua força, para não se sabe como, ir sendo içado lentamente até se ver livre do infortúnio movediço.
Seguramente não dá para acreditar, mas o famoso Barão fez um enorme sucesso entre o público juvenil contando essas suas histórias. Claro, uma platéia sempre receptiva às fantasias, sendo uma época de nossas vidas que imaginamos uma vastidão de mundos, todos construídos virtualmente. Ninguém pretendia investigar as lorotas do Barão, mas ouvi-las era um divertimento.
Ao ver a capa da revista Veja desta semana veio-me a mente as lembranças das fantasias espetaculares do Barão. Mas, é claro que se podíamos enxergar em suas divertidas histórias contos desprovidos de más intenções, mas somente divertimentos, não podemos dizer o mesmo em relação a essa publicação. Porta-voz do que há de mais reacionário na sociedade brasileira, essa revista se escora no fato de contar com leitores assíduos gente em sua maioria oriunda das classes médias altas e da elite, cujo comportamento é marcado por um discurso moralista e hipócrita, que esconde uma prática oposta, como no caso Cachoeira-Demosthenes Torres.
As escutas da Operação Monte Carlo denunciaram uma articulação entre o chefe da sucursal da Veja em Brasília e Carlinhos Cachoeira, mostrando que praticamente todas as denúncias apontadas por essa revista nos últimos anos teve nesse mafioso a principal fonte. Percebia-se que o objetivo era desestabilizar o governo federal, mas não somente este, como outros governos vinculados a partidos de esquerda. Como no caso de Goiânia, cujas articulações demonstram que era Cachoeira o grande artífice das denúncias de supostas irregularidades no Parque Mutirama. O que se pretendia, logicamente, era fragilizar esses governos e possibilitar a ascensão de políticos ligados a essa máfia.
É histórico, faz parte da memória política no Brasil, a maneira como o discurso moralista impregnou a política brasileira. É fato, contudo, que a corrupção está entranhada nas estruturas do Estado brasileiro, e na verdade é um componente da maneira de funcionamento de todos os estados, principalmente no capitalismo, onde a ganância é um fator estimulante para os desvios éticos e a desonestidade.
Aqui, em particular, origina-se no período colonial, naquilo que Darcy Ribeiro identificou como o compadrio, fortalecido com a maneira como no império o poder político foi dividido, e os interesses do Estado confundia-se com a influência do grande chefe político regional, para quem todos passavam a clamar por favores. Sempre resolvidos mediante a expropriação dos cofres públicos. O povo acostumava-se sempre a buscar esses favores, e entregar seus filhos para o apadrinhamento dos “coronéis”. Historicamente permanece uma cultura em que se procura obter benefícios mediante o assalto ao tesouro público, desviando-se verbas que deveriam ser devidamente aplicadas em áreas extremamente deficitárias, como saúde e educação.
Mas não se imagine que esse discurso moralista tem como objetivo acabar a corrupção. Essa é uma forma hipócrita da mídia conservadora e dos partidos as quais ela apoia enfraquecer seus adversários e atingir o poder, para fazer mais do mesmo. O discurso moralista sempre foi um instrumento de manipulação das massas. Essas despolitizadas, ou completamente alienadas quanto aos conteúdos ideológicos que movimentam a política, são extremamente sensíveis a essa defesa da moral, principalmente devido a formação religiosa. É comum ver algumas pessoas falarem que a sociedade depende da religião para manter os valores da honestidade. Ora, mas essas pessoas flagradas em corrupção e até mesmo em outros crimes mais hediondos têm, todas elas, suas crenças religiosas.
A questão não é essa, da formação da moral religiosa como alternativa, porque foi exatamente o protestantismo que abriu espaços para isso, na tentativa de expandir as possibilidades de enriquecimento que antes do capitalismo era uma espécie de concessão da igreja católica. Abriu-se a ganância mediante a crença de não ser pecado a busca pelo enriquecimento, e aí foi impossível controlar a usura e o oportunismo político para se atingir tal objetivo.
Logicamente os setores reacionários sempre serão beneficiados, na medida em que os partidos políticos são rejeitados, a exemplo de uma frase exposta em uma faixa na manifestação que pedia o afastamento do governador de Goiás: “o povo unido, não precisa de partido”. Aparentemente pode ser visto como anarquismo, mas na essência constitui-se em um comportamento que historicamente possibilitou, no acirramento das crises, condições para o surgimento de regimes totalitários, pois aumentam o desânimo das pessoas. Afinal, os partidos políticos compõem a essência da democracia ocidental, e não parece que, mesmo diante de fatos graves de corrupção endêmica, existam modelos alternativos que possam garantir liberdades individuais e coletivas à população. Sequer há a possibilidade de acontecerem mudanças que não tenham nos partidos políticos o protagonismo necessário. Assim são facilmente iludidas e transformam a política em um ambiente que iguala a todos, mas deixa caminho aberto para a fascistização da sociedade .
Exatamente por isso revistas como a Veja apostam na espetacularização dessas notícias, e utilizam, como a resgatar o velho “lacerdismo”, essas denúncias como fator de desestabilização política. Mais do que isso, no entanto, usa de farsas e das estruturas mafiosas para confundir a opinião pública. O que se vê na matéria da revista é a complementação de uma estratégia que já estava explícita em outros órgãos da mídia conservadora, como o Estadão e O Globo. Uma tentativa de estabelecer uma relação entre o julgamento das denúncias do Caixa 2, apelidado por essa mesma mídia como “mensalão”. Denúncias que, aliás, começaram com uma gravação feita pelo próprio Carlinhos Cachoeira, demonstrando que há anos essa figura passeia fantasmagoricamente pelo submundo da política.
Mas qual a razão, verdadeiramente da estratégia aparentemente ofensiva da Veja? Ora, o fato de o chefe da sucursal de Brasília ter sido flagrado nas conversas com Carlinhos Cachoeira, pois ele era a principal fonte dos “escândalos”, muitos deles fabricados para atender interesses escusos.
Mas se percorrermos os jornais, grandes e micros, dessa última semana, ver-se-á uma reação semelhante. Ocorre que boa parte das “fontes” desses órgãos são, quase todas, suspeitas. A maioria repassam informações porque ou estão sendo investigados, ou porque foram menosprezados em alguma transação política. Alguns são elementos completamente comprometidos com o submundo da política e do crime, como no caso citado. De certa forma agem como fazem os “alcaguetes” da polícia, marginais infiltrados na própria marginalidade. A diferença é que no caso das fontes policiais o marginal sabe que não pode enganar (embora isso aconteça) e a polícia tem dados e provas que podem checar a informação.
No caso de uma mídia mal intencionada, cujo intuito é “detonar” adversários, a “fonte”, omitida sempre, passa a se constituir em personagens insuspeitas, pelo fato de escondê-las sob o argumento de “sigilo da fonte”. A priori ela é “honesta”. Às vezes, mentiras deslavadas, em situações que pequenas informações transformam-se em acusações escandalosas, tornam-se manchetes bombásticas, que após cair no senso comum espalha-se tal qual rastilho de provas, e as deduções assumem forma de provas incontestes. Como nas caças às bruxas, a histeria coletiva assume a proporção de ato condenatório e dissemina-se de maneira descontrolada, saindo de especificidades – em casos em que verdadeiramente há crimes – para condenações não mais dos políticos envolvidos, mas de todos os políticos, e, o que é pior, da própria política. Paradoxalmente, torna-se uma arma política.
A generalização cria uma crescente aversão à atividade política e deixa um vazio que não pode ser preenchido, causando uma situação que abre a possibilidade de ascensão de governos cada vez mais reacionários, “caçadores de marajás”, e indivíduos que se escondem por trás de um discurso que foi construído pela estratégia da desilusão. O povo, revoltado, sai da situação de agente de transformação progressista e constitui-se em massa de manobra, contribuindo para o aparecimento de regimes totalitários e fascistas. O discurso hipócrita pode, dessa forma, sagrar-se vitorioso, muito embora não o seja a população.
Tudo isso é devidamente planejado e tem um objetivo definido, a construção de um país que atenda aos interesses corporativos midiáticos e de uma estrutura de poder conservadora que represente a ganância de grandes corporações, principalmente aquelas vinculadas principalmente aos Estados Unidos. Por isso, sempre, a difusão de um permanente provincianismo, de eterna valorização do estrangeiro e de desmoralização dos valores nacionais.
A capa da revista Veja desta semana representa, em essência, essa calhordice dos trópicos e o saudosismo de épocas de trevas políticas e de falta de democracia. Na medida em que histrionicamente busca confundir a opinião pública, com o intuito de ver-se livre das investigações que a colocam na mesma cachoeira de lamas que há um mês foi descoberta pela Polícia Federal. É sintomático o fato de essa ter sido uma investigação que não foi antecipada pela mídia, simplesmente porque quem estava sendo investigado era sua própria fonte, e ela própria, essa mídia pode se constituir em ré no processo, na medida em que estabelecia uma relação imoral, amoral, antiético e cúmplice, em um esquema mafioso que se apresenta com tentáculos surpreendentes. E, creiam, não atinge somente a Veja.
Mas as lorotas da Veja deixariam, caso vivesse nos dias de hoje, o nosso personagem citado no início do texto, o Barão de Munchausen, como um reles contador de histórias. Ele próprio, talvez não se desse mais ao ânimo de prosseguir com seus contos fantásticos, se envergonharia de ver como a concorrência se beneficiava de certa falta de massa encefálica em leitores descerebrados e alienados, mas que juram serem dotados de capacidades midiáticas investigativas. Fica a dúvida: será que daqui em diante, com a decisão do STF em permitir o aborto nos casos de anencefalia, diminuirá o número daqueles que acreditam nas lorotas da Veja?

3 comentários:

  1. Não, não diminuirá, a Veja é revista de salão e consultório, você lê sem saber exatamente o que leu.
    Também não acho que a Veja deva ser vista no contexto da bipolaridade, a Guerra Fria já acabou e ela tem uma única função, desorientar podendo pra isso lançar mão, inclusive, da bipolidade, mas acho mesmo que a missão dela é confundir, apenas isso.
    E se não houvesse a veja? Como seria a política naiconal?
    Abraços

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    1. Tenho certeza de que a "política nacional" não precisa da VEJA como meio de expressão de qualquer forma de oposição. A Veja não informa, ela deforma toda e qualquer informação que vai de encontro aos seus conceitos. Não é só porque é oposição que tem que ser desleal, não há nada que justifique a desonestidade.

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  2. E como é fácil ter acesso a Veja, qualquer banca de jornal ou até mesmo na fila de um supermercado vai estar ela lá, pronto para te vender notícias mascaradas e fantasiadas e querendo a qualquer custo defender interesses próprios.
    Como foi dito pelo professor Romualdo, está edição semanal mostrou a preocupação da revista em tentar "abafar" os escândalos envolvendo os partidos da direita, para isso ela revive temas dito como esquecidos, como o mensalão. Para não dizer que estou sendo injusto julgando a revista nessa semana, confere as ultimas edições da veja, não tem nenhuma matéria de capa sobre o escândalo, por que será??
    Então pelo meus primórdios conhecimentos, se não houvesse a veja provavelmente teria outra revista com tamanho poder(politico e financeiro) para contar lorotas para os seus leitores, pois como disse o Romualdo, eles são de classe alta e elitizado.
    Agora e se não houvesse revista de esquerda, como a Carta Capital, que desde começo dos escândalos está divulgando o que acontece? Numa sociedade capitalista como seria a politica nacional?

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