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Meu "espírito" ateu não se contém, e ri desabridamente quando vejo algumas frases religiosas expostas em veículos que circulam nas ruas. Alguns bem caros e sofisticados. “Este foi Jesus quem deu", ou: “foi deus quem me deu”. Não imagino até que ponto as pessoas são ingênuas, ou que tipo de mensagem tentam transmitir. São coisas bobas para mim, quem sabe importante para outros. Mas que importância teria isso? Pode ser uma tentativa de demonstrar ser um “escolhido”, ou “predestinado”, algo como para se enganar. Pode ser também uma forma de “desapego”, quem sabe? Seria aquilo um objeto de propriedade divina?
Mas deixemos para lá essas frases engraçadas, e vamos refletir sobre coisas mais sérias. Por exemplo, sobre a necessidade de transformar esse mundo.
Então vamos prá luta, se queremos mudar. Ou nos tornamos monges e monjas, e aí nos limitamos a uma vida contemplativa e reflexiva... E dane-se o mundo.
Quero refletir sobre esse mundo danado, sobre esses hábitos escabrosos, sobre essa cultura mudana, sexista e hipócrita. Sobre como nos traímos até mesmo quando tentamos uma contracultura (e aí vem o mercado e... crau!, transforma a cultracultura em mercadoria), Então não há saída? Claro que sim, várias. Esse é o problema. Até fumar uma maconhazinha, ou cheirar uma pedra de crack é uma saída... Mas ao mesmo tempo a entrada em outros mundos. Quem tá dentro pensa que é o paraíso, quem tá fora vê naquilo um inferno.
Não gosto desta palavra “descarrego”. Lembra-me essas igrejas fundamentalistas, neopentecostais, que se aproveitam das desgraças, dilemas e fragilidade do ser humano para enriquecer alguns oportunistas.
Também não gosto da palavra ÉTICA. Tornou-se suja na boca de uma mídia enlameada, interesseira, conservadora e hipócrita. E dos seus sequazes, falsos, moralistas de araques. Embora seja preciso sempre retornar ao seu valor ontológico. Coisa para os filósofos.
No tempo de meu pai, que recusou um Cartório oferecido por um governador da Bahia para que ele mudasse de partido (ele foi vereador por 16 anos), a palavra que eu me acostumei a ouvir dele era HONESTIDADE. E essa é a palavra. Ele morreu pobre, mas criou seus seis filhos honestamente. Cheio de defeitos, claro, e com muitas virtudes. Mas, acima de tudo: HONESTO. Já minha mãe, tão honesta quanto ele. Mas com mais virtudes. E somente a religião a lhe embalar os sonhos, as crenças, que ajudou no meu caráter. SUA crença, SUA fé, SEUS valores, moldaram nosso caráter. Isso está no coração, mas se apreende desde cedo. É assim mesmo, APREENDE, pois não basta aprender, é preciso assimilar e carregar esses valores no fundo do coração, a sete chaves.
Honestidade que, para mim, não diz respeito somente ao lidar com o patrimônio, com o dinheiro, porque é somente nisso que pensamos. Mas em sermos coerentes, sinceros, justos em nossos julgamentos, desprovidos de vaidades e veleidades.
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Uma luz por dentro é uma pedra de césio que foi engolida por um pobre indivíduo desinformado. A luz brilha por dentro, mas impede de iluminar a escuridão que nos cega por fora.
Não sei o que acontece. Mas às vezes acordo meio "amargo". Não são pelas lembranças e saudades, essas sempre vêm quando me deito. Talvez porque logo cedo fico a ouvir as notícias... Mas prefiro ouvir, me indignar, ser chato nessas palavras, a ficar alienado. Afinal, tão estressante quanto ouvir essas notícias é ter que ouvir as músicas chatas desses cantores midiáticos. Sertanejos, axés, gospels, funks...
Fecham-se as cortinas...
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Prossigo tendo em mente uma dupla direção... absorto, me imagino entregue aos meus pensamentos, negociando com meus botões o que fazer num fim de tarde modorrento, na sequidão do cerrado. Ou, como nos mês de março, nas enxurradas “capitais”.
O que fazer diante de uma encruzilhada?
Para um lado segue um caminho que me leva à sofisticação dos barzinhos e lanchonetes da moda, às livrarias donde posso degustar uma leitura livremente, tomando um café expresso, em um clima ambientalizado por um ar condicionado gostoso. De pessoas benfazejas, em sua maioria, mas vaidosas e egoístas. Estas vivem suas vidas mundanas, mas satisfazem-se sentindo que o mundo é aquele onde ela está e ali se encontra a plena felicidade.
No outro caminho a direção tomada nos leva a uma favela. De palafitas, suponhamos, pode ser uma Brasília Teimosa, por exemplo. De lugares lúgubres, sujos, fétidos, onde mesmo assim as crianças alegres brincam em meio aos restos de bostas e carcaças de animais, carniças jogadas ali há tempos pelas mesmas pessoas que ali habitam. As barriguinhas dos moleques carregam uma multidão de vermes que não os deixarão crescer. Muitos morrerão antes de completarem cinco anos. Mas também, se crescerem, boa parte morrerão antes dos 25 anos. E se passarem disto terão vividos em função de um mundo real de cuja realidade eles não gostariam jamais de ter frequentado. Mas sonham o tempo todo com outro mundo. E se apegam às imagens divinas para que algum dia as coisas possam mudar. Ou quem sabe, outra vida... depois da morte... E são felizes, pelo que acreditam, e pela crença de que em outra vida serão recompensados... e deles será o reino do céu.
À minha frente um mundo diferente. Situado entre um e outro mundo. Um mundo que nos mostra como são os mundos. Ali, entre muros invisíveis, aprendemos a entender esses mundos, seus mecanismos de funcionamento, suas desigualdades, e em que elas estão fundamentadas. E percebemos que nada acontece por acaso nem por obra de um criador. Aliás, o criador é a própria criatura. Ou, mesmo percebendo tudo isso, nos tornamos diletantes, e sentimos a felicidade nos invadir por sermos capazes de nos tornarmos tão sensíveis, mas ao mesmo tempo carregados de uma brutal insensibilidade. Tornamos-nos invisíveis, mas aparecemos para nós mesmos. E somos felizes por isso.
Este mundo, de saberes visíveis e invisíveis nos coloca para fora mais cedo ou mais tarde. Inevitavelmente. Para o mundo real.
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De volta à encruzilhada. Que caminho seguimos? Onde está a felicidade? Quem é mais ou menos feliz? O que é ser feliz? Seguimos cada um de nós para a beira do rio, pescar, e ver o tempo passar... Prosseguimos nossa vida de diletantismo, de reflexões sobre a beleza das estrelas, cantamos a música de Louis Armstrong e enfatizamos para nós mesmos que este é um mundo maravilhoso... Passamos na livraria com ar condicionado ou nas novas temakerias para reforçar nossa vaidade intelectual... Ou vamos meter o pé na merda para saber como o povo lida com "aquela felicidade"?
Quem é mais ou menos felizes nesse mundo de tantos deuses injustos que insistem em manter o mundo desigual?
Às vezes alguns me chamam de católico enrustido, ou de ateu prá inglês ver. Vou falar claramente, e sei que muitos dos que lêem, “crêem”! Não consigo acreditar em algo que não seja perceptível, visível, real. O nome que se dá a isso é ATEU. Mas o fato de ser ateu, cristão, muçulmano, budista, adventista, macumbeiro... e etc, etc, etc, não tem nada a ver com caráter, sensibilidade, bondade... o que seja. Cada um pode ser o que é à sua maneira, o que vai definir seu caráter é o caminho que escolher. Gosto muito desta frase, do filósofo Heráclito de Éfeso: o caminho de um indivíduo é o seu caráter. Ela transmite um sentido dúbio.
E não há somente as pessoas de bom caráter e as de mau caráter. A não ser que sejamos maniqueus, e não consigamos enxergar outras possibilidades para definir a maneira como nos portamos diante do mundo. Porque nós erramos e acertamos permanentemente. Somos capazes de gestos de enorme grandeza moral, mas podemos também cometer canalhices. Orar, rezar, não apaga o que fizemos, só nos deixa tranquilos para “pecar” novamente.
Não é bem o mundo que é metafísico. O mundo tal como existe foi criado pelo ser humano e está impregnado de visões metafísicas, pois esta é a melhor condição para deixar as pessoas inertes, passivas, dominadas, entregues às fantasias que elas imaginam ser delas, mas que são oferecidas por aqueles que constroem este mundo seguindo seus objetivos. Sim, porque este mundo, que não é metafísico, é real, adquiriu esta condição por ter sido arquitetado e edificado segundo determinados interesses.
O que se constrói daí, metafisicamente ou não, decorre de tudo isso. Fantasias, sonhos, deuses, demônios, mitos, celebridades. Nossa formação está umbilicalmente ligada a tudo isso. A um mundo que incorpora as suas próprias contradições e as transformam em mercadorias.
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paisagismobiodinâmico.blogspot |
Falemos do prazer bucólico. Isso que é a felicidade para alguns, quem já a viveu, e para mim, que mesmo interiorano nunca fui roceiro, infelizmente. Todo esse prazer, que queremos ter algum dia, essa fantasia de nos reencontrarmos com a natureza, também virou negócio. O que antes era natural virou artificial. E nós, daqui, nos especializamos também nisso. Como dizia Milton Santos, não há mais natureza natural.
Quanto às certezas, não as temos. Embora tentemos sempre transmitir a impressão de que o que falamos é o definitivo. É o definitivo... até que alguém prove o contrário. E isso, inevitavelmente, sempre termina acontecendo. Porque o que dizemos, o que sentimos, é condicionado pelo momento, o lugar e as circunstâncias. Quando me refiro à noção de felicidade quero dizer exatamente isso, cada um vai se sentir feliz sob determinada circunstâncias, mas sabemos que isso não é definitivo. Sabemos dos ditos populares que falam: "depois da tempestade vem a bonança", ou de que "quando a coisa tá boa demais é sinal de que alguma desgraça vai acontecer". Ou seja, as condições objetivas de cada momento é que vão definir o que significa sentir-se feliz, está satisfeito com a condição dada pelo mundo não somente para si, mas para sua família.
Eu não sou feliz. Sou uma pessoa alegre, animada, enturmada, às vezes mal humorada, já sofri na vida dores profundas, mas não mais do que milhares de outras pessoas. Amo as pessoas que me amam, ignoro as que não gostam de mim. Sei que devo aproveitar, sempre, o momento que nós vivemos da melhor maneira possível (carpe diem!), mas não sou egoísta. Meus momentos alegres são entrecortados com visões terríveis das condições em que vivem milhares de pessoas. Olhando para elas posso me considerar uma pessoa feliz? Mas não vou fazer voto de pobreza, e deixar de sonhar com meu sitiozinho confortável, com internet e wireless para ler o que eu quiser deitado numa rede. Algum dia materializo isso.
Isso não são certezas. São convicções. E o meu amargor vem da impossibilidade, como D. Quixote de La Mancha, de encontrar mecanismos verdadeiramente adequados para lutar por tudo isso, ou contra tudo isso. Daí, às vezes a amargura, a angústia... mas sei que nada do que está aí é eterno. Ou, como diz o poeta, “é eterno enquanto dure”. Inclusive nós mesmos.
Carol, com 8 anos de idade. Saudades! |
Cabe a cada um a iniciativa de buscar esses caminhos, ou seguir com a construção adequada aos vários significados que vamos dando, de acordo com a escolha de vida que fazemos, ou das direções que na encruzilhada optamos por seguir. Ou – o que não é uma escolha – como lidamos com as tragédias que o acaso produz e determinam que, independente dos caminhos que existam à nossa frente, superar as adversidades é parte do cotidiano da vida. Assim é o que acontece, vivemos para superar adversidades.
É verdade. Temos deus dentro de nós. Ele está no coração de cada um. Ou melhor, pode estar. É dele que emanam todos os sentimentos. Então, o que temos não nos foi dado, foi conquistado. Ou, às vezes, tomado, arrancado.
E o coração pulsa, acelera seus batimentos no ritmo da intensidade emotiva: ódio, amor, inveja, raiva... saudades! “Bate, bate, coração, dentro desse velho peito, você já está acostumado a ser maltratado a não ter direito”.
Na vida são muitas as impertinências. Mas ser impertinente é meio chato. Entendam como um desabafo, uma contrariedade com a vida e na aversão a como os deuses que criamos constroem um mundo desigual e acomodado. E de como nos desiludimos no caminhar dessa vida com as perdas que arrancam pedaços no coração. É nele que se encontra o poder da divindade, o sentimento do mundo, a frustração da dor, a angústia da impotência humana diante da irreversibilidade da morte. É dele que em alguns momentos extraímos um pouco da nossa impertinência.
“Mesmo que o tempo e a distância digam não, mesmo esquecendo a canção, o que importa é ouvir a voz que vem do coração”!
É ele quem comanda nosso cérebro.
“As águas deságuam para o mar, meus olhos vivem cheios d´água, chorando, molhando o meu rosto de tanto desgosto, me causando mágoa. Mas meu coração só tem amor, e amor tivera mesmo pra valer, por isso a gente pena, sofre e chora coração... E morre todo dia sem saber.”
Às vezes, em alguns momentos, cada um de nós se torna um pouco (ou muito) impertinente.
Esse é o meu momento. Mas...
“Bate, bate, bate coração, não ligue deixe quem quiser falar. Porque o que se leva dessa vida coração, é o amor que a gente tem pra dar”
Músicas citadas nessa crônica:
Criamos um Deus que nos satisfaz, esse é o mal...
ResponderExcluirNão somente um, mas são vários os deuses, criados por povos e culturas diferentes. O deus do islã, do cristianismo, do judaísmo, e de uma infinidade de outras religiões e seitas espalhadas pela Ásia e África. A não aceitação do deus do outro, ou da indiferença perante eles, são combustíveis que sempre têm trazidos guerras e genocídios à humanidade. Aliado à disputa pelo poder e controle de grandes riquezas. Tudo isso compõem a intolerância que torna o outro inimigo, por não aceitar imposições sobre sua maneira de pensar e de crer ou não crer.
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