sábado, 21 de abril de 2012

ESTADO, PODER E VIOLÊNCIA NO NORTE DO BRASIL

Passados 40 anos do maior movimento guerrilheiro que aconteceu em nosso país, a Guerrilha do Araguaia, continuamos acompanhando a situação da região onde se desenrolou o conflito.  Prossigo atento ao que acontece numa região que se tornou emblemática, e se mantém assim, pela importância histórica adquirida e porquanto durar as buscas para identificar restos mortais dos guerrilheiros que ali foram mortos. Bem como enquanto se repetir por ali as mesmas injustiças que há décadas impedem que as grandes riquezas ali existentes sejam distribuídas para o povo pobre e humilde que ali habita.
Vivemos tempos diferentes. Nosso país tem passado por transformações importantes, embora lentas, mas que são visíveis aos olhos daqueles que estão atentos às mudanças e que focam esses olhares ao seu redor, ao invés de fazer uma visão meramente introspectiva.
Mas que mudanças são essas?
Saímos nas quatro últimas décadas de uma ditadura militar para um processo, ainda lento, de transformações democráticas.  Obviamente que não são mudanças revolucionárias. Elas acontecem seguindo a mesma lógica sistêmica, contudo por meio de um regime político aonde as liberdades democráticas permitem a livre participação de todos nos movimentos sociais e nas dezenas de partidos políticos que existem com diferenciadas matizes.
Mas, ao contrário do que se possa imaginar, embora os conflitos sejam atenuados em suas gravidades, em termos de confrontos com a estrutura do Estado é na democracia que as contradições afloram com muito mais clareza, e em algumas vezes assume um grau elevado de radicalidade, como o ocorrido no massacre em Eldorado do Carajás, ocorrido há 16 anos, sem que até hoje os responsáveis tenham sido devidamente punidos.
Muito embora o próprio Estado utilize da democracia, através de mecanismos variados (cooptação de lideranças populares, manipulação da informação, atendimentos parciais das demandas sociais, naquilo que não afeta a lógica do sistema, etc.) com o claro objetivo de reduzir o grau dessas revoltas e jogar para os parlamentos as principais batalhas que envolvem essas contradições.
Ocorre que no âmbito da democracia, se o movimento popular não estiver forte e organizado, e ciente de que a luta se enquadra como confronto de classes sociais antagônicas e inconciliáveis, prevalecerá sempre o poder do mais forte. E a defesa da democracia passa a ser assumida por quem não possui autoridade moral para tal, a classe dominante que detém a riqueza e procura expandi-la cada vez mais, à custa da exploração e da violência contra a população pobre. Ela mantém sempre uma maioria parlamentar, e controla a estrutura judiciária.
Nessas quatro últimas décadas não foi somente o Brasil que mudou. O mundo no geral passou por transformações muito aceleradas. Perdemos por certo tempo, a bandeira do socialismo, como principal instrumento a se contrapor ao capitalismo, e com isso a convicção de que a luta coletiva é determinante para resolver os problemas sociais do povo em geral. E a partir de então a lógica que passou a movimentar o mundo foi a da visão de progresso e desenvolvimento fortalecida internacionalmente no processo de globalização através de políticas neoliberais.
Isso veio como uma ideologia do sucesso individual e a condição para que cada um, individualmente, se sagrasse vitorioso em um mundo marcado por uma ferrenha competição. Esse passou a ser o tom dado inclusive por governos à esquerda. Países como o Brasil e China, assumiram a vanguarda dessas novas transformações, após o retumbante fracasso da globalização neoliberal.
Mas, apesar de políticas progressistas, paradoxalmente permaneceram resquícios neoliberal na macro economia. Assim como na manutenção e fortalecimento de certas estruturas patrimonialistas, desta feita embaladas com fortes investimentos em tecnologia. Embora uma inegável verdade, os mecanismos que passaram a ser utilizados para isso, mesmo com uma forte concentração do poder do Estado, desconsiderou a necessidade de que a única maneira de se efetivar mudanças que sejam estruturais e consolidadas é atacar com coragem mecanismos arcaicos de controle da propriedade e o modelo concentrador de riqueza e renda.
Em não sendo isso feito, no âmbito da política e da democracia, prevalecem os interesses dos mais fortes, naquilo que o Padre e professor da UFRJ, Ricardo Rezende de Figueira, denominou de A Justiça do Lobo. Agora sem a ditadura militar, mas contando com os mecanismos institucionais e jurídicos do Estado, enquanto um instrumento de controle de uma classe social, como bem determinou Engels no livro a Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Ou, como na abordagem de Michel Foucaul, em “O Olho do poder”.
Assim, pelos mecanismos democráticos impõe-se às camadas mais frágeis da sociedade a lógica de desenvolvimento capitalista e a noção de progresso, passando-se a uma aceitação dos mecanismos de controle e concentradores de renda.
Em uma região historicamente marcada pela presença de grandes grupos econômicos nacionais e internacionais, da grilagem sistemática de terras, do grande latifúndio como modelo de propriedade e pelo abuso do poder determinado pelos canos fumegantes das armas de pistoleiros e policiais corruptos, as transformações vêm muito mais fortemente marcadas pelas contradições a que me referi.
Os programas sociais, bem intencionados não restam dúvidas, e até mesmo necessários, penso eu, para minimizar a gravidade de uma situação de extrema pobreza, terminam em outro extremo conformando as pessoas diante de sua pobreza e criando expectativas de melhorias de vida a partir desse mecanismo. Apesar de ser um passo para dar a essas pessoas cidadania e melhorar suas autoestimas retira-as do eito da luta e reforçam a fé de transformações sociais através da noção de progresso vinculada à da melhoria da economia. O movimento camponês se ressente disso.
Assim, diante dessa nova realidade, pela qual, aliás, nós sempre lutamos, de garantir a democracia, a insistência dos movimentos sociais em perseguir a luta cotidiana e ativa passa a ser tratada como ações criminosas. Claro que isso não chega a ser novidade, haja vista que os militantes comunistas que chegaram à região do Araguaia para ali combater a ditadura, eram chamados de terroristas e subversivos. Bem como a atuação de padres e missionários, a partir da leitura dos evangelhos como uma opção preferencial pelos pobres, no que se tornou a Teologia da Libertação, era combatida como ações de comunistas e também de subversivos.
Só que agora, embora a luta seja a mesma, o direito a terra e o combate à grilagem e ao poder do grande latifúndio em uma região marcada por uma intensa pobreza, a bandeira da democracia assume outra conotação e inverte-se os papéis. Sob a direção ultraconservadora da CNA – Confederação Nacional da Agricultura, que assim substitui a UDR – União Democrática Ruralista (que ironicamente carrega o nome democracia em sua sigla), esse setor escora-se na forte influência que detém no poder judiciário e age rapidamente, contando com a repercussão de uma mídia fortemente conservadora, com ações que visam transmitir à opinião pública uma imagem criminalizada dos movimentos sociais no campo.
Por trás desse forte embate, encontram-se os interesses de grandes grupos, corporações gigantescas nacionais e multinacionais. No final de 2010 a CPT do Pará distribuiu nota sobre os problemas fundiários naquele Estado, denunciando a empresa mineradora VALE, uma das maiores do mundo, e citando inclusive o banqueiro Daniel Dantas, que nos últimos anos adquiriu, segundo a nota, mais de 50 fazendas, somando-se mais de 600 mil hectares de terras a um patrimônio suspeito de ter sido adquirido mediante lavagem de dinheiro com as privatizações de empresas estatais. Contudo, esse bandoleiro, cujos crimes foram fartamente identificados na Operação Satiagraha, da Polícia Federal, livrou-se das acusações mediante uma forte influência no aparato judiciário, desde bancas fortíssimas de advogados, até o Supremo Tribunal Federal, conforme denunciado pela revista Carta Capital.
Pode-se ver que o deslocamento de pessoas por toda essa região, uma imensidão de terras que margeia dois dos principais rios brasileiros (o Araguaia e o Tocantins), não se reduziu nas últimas décadas. Mas assume outras formas. Uma grande quantidade delas que vem reforçar a mão de obra agora em fazendas, principalmente de criação de gado (algumas ainda utilizando o trabalho escravo), e um enorme número de pessoas que são deslocadas da área rural para as cidades, ampliando um cinturão de pobreza que potencializa outros tipos de violências e degradações humanas. Uma parte dela é absorvida em projetos infraestruturais importantes, como a Ferrovia Norte-Sul, que será ela mais um paradoxo, pois expandirá a fronteira agrícola como consequência de melhoria no escoamento da produção e elevará os investimentos do grande agronegócio. Algo que já está acontecendo, inclusive com aquisição de terras por grupos estrangeiros.
O que a paisagem nos indica, na linha dessa visão de progresso e desenvolvimento, e é o que a economia com seus dados estatísticos também vai nos mostrar, é que essa região está passando por grandes transformações. Como de resto todo o país.
Eu diria que essa é uma meia verdade. Porque, ao não romper com o modelo de desenvolvimento, concentrador de rendas e baseado na grande propriedade de monocultura e latifundiária, mantém-se no país as enormes desigualdades sociais. Embora melhore as condições daqueles que vivem em situação de pobreza, aumenta despudoradamente a concentração de riquezas nas mãos de uma minoria, seguindo a lógica e a essência que aprofundam as contradições do capitalismo. Não se alterou substancialmente aquilo que existia na época da guerrilha, cujas análises contidas nos documentos da União para a Liberdade e os Direitos do Povo (ULDP) se mantém em muitos aspectos.
Contudo, faz-se necessário, não nos deixarmos levar pelo comodismo nem com as migalhas que esse padrão de desenvolvimento impõe, porque cresce o fosso entre ricos e pobres e o sentido de democracia pelo qual tanto lutamos é exatamente a inversão dessa lógica. E não deixar que caia no esquecimento as lutas que são travadas todos os dias por centenas de milhares de famílias expulsas de suas terras, bem como daquelas que marcaram a nossa história. É nossa responsabilidade impedir que o Estado brasileiro, pelo qual lutamos para se tornar democrático, continue a servir aos interesses de uma minoria de sanguessugas - corruptos e corruptores - detentores de imensas fortunas e cujas riquezas foram construídas escoradas nas costas do povo pobre desse país.



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