Passados 40
anos do maior movimento guerrilheiro que aconteceu em nosso país, a Guerrilha
do Araguaia, continuamos acompanhando a situação da região onde se desenrolou o
conflito. Prossigo atento ao que
acontece numa região que se tornou emblemática, e se mantém assim, pela
importância histórica adquirida e porquanto durar as buscas para identificar
restos mortais dos guerrilheiros que ali foram mortos. Bem como enquanto se
repetir por ali as mesmas injustiças que há décadas impedem que as grandes
riquezas ali existentes sejam distribuídas para o povo pobre e humilde que ali habita.
Vivemos
tempos diferentes. Nosso país tem passado por transformações importantes,
embora lentas, mas que são visíveis aos olhos daqueles que estão atentos às
mudanças e que focam esses olhares ao seu redor, ao invés de fazer uma visão
meramente introspectiva.
Mas que
mudanças são essas?
Saímos nas quatro
últimas décadas de uma ditadura militar para um processo, ainda lento, de
transformações democráticas. Obviamente
que não são mudanças revolucionárias. Elas acontecem seguindo a mesma lógica
sistêmica, contudo por meio de um regime político aonde as liberdades
democráticas permitem a livre participação de todos nos movimentos sociais e
nas dezenas de partidos políticos que existem com diferenciadas matizes.
Mas, ao
contrário do que se possa imaginar, embora os conflitos sejam atenuados em suas
gravidades, em termos de confrontos com a estrutura do Estado é na democracia
que as contradições afloram com muito mais clareza, e em algumas vezes assume
um grau elevado de radicalidade, como o ocorrido no massacre em Eldorado do
Carajás, ocorrido há 16 anos, sem que até hoje os responsáveis tenham sido
devidamente punidos.
Muito embora
o próprio Estado utilize da democracia, através de mecanismos variados
(cooptação de lideranças populares, manipulação da informação, atendimentos
parciais das demandas sociais, naquilo que não afeta a lógica do sistema, etc.)
com o claro objetivo de reduzir o grau dessas revoltas e jogar para os
parlamentos as principais batalhas que envolvem essas contradições.
Ocorre que no
âmbito da democracia, se o movimento popular não estiver forte e organizado, e
ciente de que a luta se enquadra como confronto de classes sociais antagônicas
e inconciliáveis, prevalecerá sempre o poder do mais forte. E a defesa da
democracia passa a ser assumida por quem não possui autoridade moral para tal,
a classe dominante que detém a riqueza e procura expandi-la cada vez mais, à
custa da exploração e da violência contra a população pobre. Ela mantém sempre
uma maioria parlamentar, e controla a estrutura judiciária.
Nessas quatro
últimas décadas não foi somente o Brasil que mudou. O mundo no geral passou por
transformações muito aceleradas. Perdemos por certo tempo, a bandeira do
socialismo, como principal instrumento a se contrapor ao capitalismo, e com
isso a convicção de que a luta coletiva é determinante para resolver os
problemas sociais do povo em geral. E a partir de então a lógica que passou a
movimentar o mundo foi a da visão de progresso e desenvolvimento fortalecida
internacionalmente no processo de globalização através de políticas
neoliberais.
Isso veio
como uma ideologia do sucesso individual e a condição para que cada um,
individualmente, se sagrasse vitorioso em um mundo marcado por uma ferrenha
competição. Esse passou a ser o tom dado inclusive por governos à esquerda.
Países como o Brasil e China, assumiram a vanguarda dessas novas
transformações, após o retumbante fracasso da globalização neoliberal.
Mas, apesar
de políticas progressistas, paradoxalmente permaneceram resquícios neoliberal
na macro economia. Assim como na manutenção e fortalecimento de certas
estruturas patrimonialistas, desta feita embaladas com fortes investimentos em
tecnologia. Embora uma inegável verdade, os mecanismos que passaram a ser
utilizados para isso, mesmo com uma forte concentração do poder do Estado,
desconsiderou a necessidade de que a única maneira de se efetivar mudanças que
sejam estruturais e consolidadas é atacar com coragem mecanismos arcaicos de
controle da propriedade e o modelo concentrador de riqueza e renda.
Em não sendo
isso feito, no âmbito da política e da democracia, prevalecem os interesses dos
mais fortes, naquilo que o Padre e professor da UFRJ, Ricardo Rezende de
Figueira, denominou de A Justiça do Lobo. Agora sem a ditadura militar, mas contando
com os mecanismos institucionais e jurídicos do Estado, enquanto um instrumento
de controle de uma classe social, como bem determinou Engels no livro a Origem
da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Ou, como na abordagem de Michel
Foucaul, em “O Olho do poder”.
Assim, pelos
mecanismos democráticos impõe-se às camadas mais frágeis da sociedade a lógica
de desenvolvimento capitalista e a noção de progresso, passando-se a uma
aceitação dos mecanismos de controle e concentradores de renda.
Em uma região
historicamente marcada pela presença de grandes grupos econômicos nacionais e
internacionais, da grilagem sistemática de terras, do grande latifúndio como
modelo de propriedade e pelo abuso do poder determinado pelos canos fumegantes
das armas de pistoleiros e policiais corruptos, as transformações vêm muito
mais fortemente marcadas pelas contradições a que me referi.
Os programas
sociais, bem intencionados não restam dúvidas, e até mesmo necessários, penso
eu, para minimizar a gravidade de uma situação de extrema pobreza, terminam em outro
extremo conformando as pessoas diante de sua pobreza e criando expectativas de
melhorias de vida a partir desse mecanismo. Apesar de ser um passo para dar a
essas pessoas cidadania e melhorar suas autoestimas retira-as do eito da luta e
reforçam a fé de transformações sociais através da noção de progresso vinculada
à da melhoria da economia. O movimento camponês se ressente disso.
Assim, diante
dessa nova realidade, pela qual, aliás, nós sempre lutamos, de garantir a
democracia, a insistência dos movimentos sociais em perseguir a luta cotidiana
e ativa passa a ser tratada como ações criminosas. Claro que isso não chega a
ser novidade, haja vista que os militantes comunistas que chegaram à região do
Araguaia para ali combater a ditadura, eram chamados de terroristas e
subversivos. Bem como a atuação de padres e missionários, a partir da leitura
dos evangelhos como uma opção preferencial pelos pobres, no que se tornou a
Teologia da Libertação, era combatida como ações de comunistas e também de
subversivos.
Só que agora,
embora a luta seja a mesma, o direito a terra e o combate à grilagem e ao poder
do grande latifúndio em uma região marcada por uma intensa pobreza, a bandeira
da democracia assume outra conotação e inverte-se os papéis. Sob a direção
ultraconservadora da CNA – Confederação Nacional da Agricultura, que assim
substitui a UDR – União Democrática Ruralista (que ironicamente carrega o nome
democracia em sua sigla), esse setor escora-se na forte influência que detém no
poder judiciário e age rapidamente, contando com a repercussão de uma mídia
fortemente conservadora, com ações que visam transmitir à opinião pública uma
imagem criminalizada dos movimentos sociais no campo.
Por trás
desse forte embate, encontram-se os interesses de grandes grupos, corporações
gigantescas nacionais e multinacionais. No final de 2010 a CPT do Pará
distribuiu nota sobre os problemas fundiários naquele Estado, denunciando a
empresa mineradora VALE, uma das maiores do mundo, e citando inclusive o
banqueiro Daniel Dantas, que nos últimos anos adquiriu, segundo a nota, mais de
50 fazendas, somando-se mais de 600 mil hectares de terras a um patrimônio
suspeito de ter sido adquirido mediante lavagem de dinheiro com as
privatizações de empresas estatais. Contudo, esse bandoleiro, cujos crimes
foram fartamente identificados na Operação Satiagraha, da Polícia Federal,
livrou-se das acusações mediante uma forte influência no aparato judiciário,
desde bancas fortíssimas de advogados, até o Supremo Tribunal Federal, conforme
denunciado pela revista Carta Capital.
Pode-se ver
que o deslocamento de pessoas por toda essa região, uma imensidão de terras que
margeia dois dos principais rios brasileiros (o Araguaia e o Tocantins), não se
reduziu nas últimas décadas. Mas assume outras formas. Uma grande quantidade
delas que vem reforçar a mão de obra agora em fazendas, principalmente de
criação de gado (algumas ainda utilizando o trabalho escravo), e um enorme
número de pessoas que são deslocadas da área rural para as cidades, ampliando
um cinturão de pobreza que potencializa outros tipos de violências e
degradações humanas. Uma parte dela é absorvida em projetos infraestruturais
importantes, como a Ferrovia Norte-Sul, que será ela mais um paradoxo, pois
expandirá a fronteira agrícola como consequência de melhoria no escoamento da
produção e elevará os investimentos do grande agronegócio. Algo que já está
acontecendo, inclusive com aquisição de terras por grupos estrangeiros.
O que a
paisagem nos indica, na linha dessa visão de progresso e desenvolvimento, e é o
que a economia com seus dados estatísticos também vai nos mostrar, é que essa
região está passando por grandes transformações. Como de resto todo o país.
Eu diria que essa é uma meia verdade. Porque, ao não romper com o modelo de
desenvolvimento, concentrador de rendas e baseado na grande propriedade de
monocultura e latifundiária, mantém-se no país as enormes desigualdades
sociais. Embora melhore as condições daqueles que vivem em situação de
pobreza, aumenta despudoradamente a concentração de riquezas nas mãos de uma
minoria, seguindo a lógica e a essência que aprofundam as contradições do
capitalismo. Não se alterou substancialmente aquilo que existia na época da
guerrilha, cujas análises contidas nos documentos da União para a Liberdade e
os Direitos do Povo (ULDP) se mantém em muitos aspectos.
Contudo,
faz-se necessário, não nos deixarmos levar pelo comodismo nem com as migalhas
que esse padrão de desenvolvimento impõe, porque cresce o fosso entre ricos e
pobres e o sentido de democracia pelo qual tanto lutamos é exatamente a
inversão dessa lógica. E não deixar que caia no esquecimento as lutas que são
travadas todos os dias por centenas de milhares de famílias expulsas de suas
terras, bem como daquelas que marcaram a nossa história. É nossa
responsabilidade impedir que o Estado brasileiro, pelo qual lutamos para se
tornar democrático, continue a servir aos interesses de uma minoria de
sanguessugas - corruptos e corruptores - detentores de imensas fortunas e cujas
riquezas foram construídas escoradas nas costas do povo pobre desse país.
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