sábado, 17 de março de 2012

A GEOGRAFIA SERVE NÃO SOMENTE PARA FAZER A GUERRA

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Para o meu orgulho e enorme satisfação recebo, mais uma vez, homenagem de uma turma de formandos da Geografia. Há dezesseis anos leciono para jovens que escolheram para sua profissão tornar-se Geógrafos(as). Para mim, historiador que se apaixonou pelo conhecimento geográfico através das obras instigantes de um conterrâneo, Milton Santos, sempre foi um desafio utilizar de minha formação para contribuir com a ampliação do horizonte geográfico, estabelecendo uma necessária relação entre o tempo e o espaço.
Como o rito da formatura não inclui o uso da palavra pelo homenageado, resolvi transmitir através do Blog Gramática do Mundo, meu canal de expressão nos últimos anos, o que eu falaria caso me fosse permitido. Uma retribuição a essa elogiosa deferência que me é feita por ex-alunos.
Geografia, em sua significação literal compreende o Estudo da Terra, advém das palavras gregas “geo”, significando terra e “graphia”, estudo ou leitura. Mas a amplitude dessa palavra combina com a dimensão que tomou nossa vida na terra. Mais do que o simples estudo de um complexo planeta, ou do que o cerca e da enorme biodiversidade que reside nele, a Geografia se depara com a imensa responsabilidade de compreender a complexidade em que ele se transformou pela ação humana.
Formandos de Geografia 2012
Não que ele fosse, ou seja, estático, muito pelo contrário. Independente do papel que o homem tem desempenhado, ao longo de um pequeno tempo da sua existência, a Terra, por si só é pleno movimento. A vida sempre pulsou e evoluiu dialeticamente, ao longo de milhões de anos. Certamente, nossa espécie não pode ser responsabilizada pelas constantes idas e vindas, de aquecimentos e esfriamentos, choques térmicos e tectônicos, desertificação e inundações, terremotos e tsunamis, aparecimento e desaparecimento - vida e morte - de milhares de espécies que vivem em luta contínua pela sobrevivência. Uns sobrevivem, preservam seus genes e os aperfeiçoam. Outros, pelas dificuldades de adaptações sucumbem. Alguns porque suas próprias vidas decorrem da necessidade de sobrevivência de outras. Muito embora nos últimos cinquenta anos, nós, seres humanos, tenhamos acelerado muitas dessas mudanças naturais.
Nesse maravilhoso mundo, vasto mundo, como dizia o poeta, nos destacamos pela capacidade de produzir socialmente, pela habilidade com as mãos e o desenvolvimento do cérebro. Homens e mulheres, ao longo da história de vida desse imenso planeta Terra passaram a intervir diferentemente dos demais animais, e pelo uso racional construiram maravilhas que tornaram possíveis a vida humana prolongar-se cada vez mais. E transferiu para as cidades, imensas selvas de concretos e de estressantes veículos, toda a nossa lógica e estilo de viver.
Construímos pela razão e pela lógica uma forma de vida irracional e ilógica, quando olhamos para o depósito que nos fornecem as matérias primas utilizadas para nos tornar, aparentemente, senhores e condutores dos destinos do mundo. Transformamos-nos em escravos de uma cultura do desperdício, da destruição, dos objetos tornados sofisticados por nós próprios, da mercadoria.
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Extraímos e destruímos o ambiente em que vivemos, a natureza, para construir um estilo de vida cada vez mais dominado pela técnica, pela tecnologia, pela virtualidade. O poder do dinheiro, instrumento a atiçar a cobiça e tornado indispensável no cotidiano das cidades, passou a conduzir nossos destinos, a determinar quem pode ou não se considerar cidadão, e eleito para desfrutar desse banquete fantástico. Poucos usufruem, se considerarmos a imensa população de 7 bilhões de pessoas que atualmente vivem em nosso planeta. Em sua imensa maioria, travam uma batalha desigual pela sobrevivência, e o objetivo primeiro nessa guerra é obter dinheiro.
E assim somos motivados a nos especializar, a especialização é tudo, para podermos nos inserir em meio aquela camada que tem acesso ao que a nossa capacidade e inteligência possibilitou construir. Alguns conseguem pelas oportunidades chegar a cursos cujos profissionais são mais “disputados” pelo Mercado, esse ente invisível, abstrato, onipotente e onipresente, um verdadeiro deus, segundo a lógica que conduz o sistema no qual estamos forçados a viver.
Pelo dinheiro, a usura e a ganância se tornaram elementos motivadores que definiram a cultura da nossa sociedade. Para possuí-lo, e não bastava somente o suficiente para sobrevivermos, todos os golpes, astúcias e disputas ferozes, no âmbito de uma empresa ou entre Estados-Nações, foram tentados, testados e aplicados. Disso resultou um mundo em agonia, em meio a uma complexidade que é ideologicamente partilhada, pelos que defendem esse estilo de vida, e por aqueles que já percebem termos chegado ao limite dessas contradições.
Por séculos ampliaram-se os conflitos e guerras de todos os tipos, conduzidas com o intuito de garantir o poder crescente para dominar os mercados e difundir mercadorias pelo mundo, hoje dominado por grandes corporações, imensos conglomerados financeiros, industriais e comerciais, de tentáculos enormes, mas que pouco conhecemos, por se tornarem sociedades anônimas e imensos paquidermes difíceis de serem investigados. São eles, e os senhores que os controlam, que dominam o mundo.
Para isso, a Geografia constituiu-se em um instrumento importante. Sem ela seria impossível o conhecimento em larga escala e a localização das riquezas que definiriam a capacidade de poder das Nações. Da mesma forma, se era preciso dominar pela força territórios donde se pudessem extrair matérias-primas necessárias para construir impérios, também se fazia imprescindível conhecer os espaços a serem conquistados, os territórios e suas riquezas a serem possuídos, mas também as características de cada lugar. Principalmente, para a utilização de táticas de dominação e para a construção de estratégias que permitissem o controle desses territórios pela guerra. Assim como era também necessário saber que tipo de população existe ali, suas condições de vida, cultura e hábitos religiosos e familiares. Pela Geografia, tornou-se possível a um Estado poderoso, exercer o domínio, o controle e forçar outras nações à submissão e a aceitação do poder imperial. A Geografia tornou-se um instrumento para a guerra.

Mas a complexa transformação que o mundo foi passando, de forma acelerada para atender à ganância dos que o dominam, trouxe em si contradições que constroem situações, aleatórias ou não, que possibilitam a uma mesma ciência tornar-se instrumento de dominação, mas também de libertação.
A Geografia não serve só para fazer a guerra.
A possibilidade de conhecimento do Geógrafo, mesmo numa época em que a multidisciplinaridade tornou-se uma obrigação, é infinitamente superior a de diversas outras áreas. O Geógrafo, se não se especializar precocemente, um equívoco que se comete nos dias atuais, tem a chance de acumular um conhecimento diverso do mundo, como nenhum outro profissional. A Geografia é a ciência do mundo, embora seja essa uma polêmica interminável, quanto ao seu caráter científico. Mas não somente do mundo, e aqui eu me refiro à terra, enquanto seus aspectos físicos, mas de um mundo tornado humano por essa ação espetacular da espécie mais vitoriosa da natureza. Embora não se saiba até quando.
Se é correto afirmar, como dizia Ratzel, que o ambiente define as condições de vida do indivíduo, também se deve considerar que ele adquire, pela sua relação com o meio, a possibilidade de transformá-lo, como dizia La Blache. E a História confirma essas duas concepções, e nos mostram ao longo do tempo de existência, adaptação e transformação do ser humano, como o nosso habitat foi sendo gradativamente mudado, sempre numa espiral superior, suplantando adversidades e adquirindo novas capacidades de dominação das demais espécies da natureza. Mas, paradoxalmente, destruindo-a, como forma de colocar em prática suas ambições, desde as mais idílicas às mais perversas.
Para ser herdeiro daqueles geógrafos que se preocuparam em entender o papel definidor da geografia, e a importância que a profissão possui em um mundo desigual e perverso socialmente, somente com uma capacidade crítica, só possível de ser obtida com o conhecimento da política, e dos artifícios utilizados para se conquistar o poder, o grande Poder. Refutar a política é reforçar um erro que transformou a Geografia num mero instrumento decoratório de aspectos físicos, pouco relevantes se não houver a preocupação em saber o significado que eles possuem em um mundo complexo cujo motor principal está regulado para identificar riquezas e torná-las mercadorias. E também porque esse conhecimento é adquirido e serve ao próprio ser humano.
Mas o conhecimento da política pressupõe também identificar as contradições que cercam as cidades, ambientes diversos repletos de significados, mas ao mesmo tempo de profundas injustiças e de espaços construídos de forma segregadora, discriminatória, e que se repetem ao longo das administrações públicas, sem planejamentos ou feitos de forma a atender somente a espaços privilegiados dos que possuem riquezas. Todos aqueles que se formam em Geografia, por todo o tempo de suas vidas, convivem cotidianamente com essa realidade. Mas, infelizmente, parece que elas tornam-se distantes quando do exercício profissional que se dispõe a atender aos interesses que o mercado exige.
Planejar virou sinônimo de construir ambiente agradáveis aos possuidores do dinheiro. Os pobres convivem em estruturas frágeis, insalubres, sem saneamento, quando muito com construções de praças que terminam se constituindo num único espaço de prazer em suas vidas. Apartados e apertados em habitações distantes dos centros vivos das metrópoles, em bairros que se assemelham a pequenas e pobres cidades interioranas. Sobram-lhes a alienação dos templos e da televisão.
O geógrafo deve saber usar seu conhecimento para contribuir com as transformações sociais. Deve tornar a Geografia um instrumento que sirva para corrigir distorções em um mundo construído com valores individualistas, gananciosos e egoístas. Ela pode tornar visível uma população que não usufrui das enormes conquistas que a espécie humana obteve, não somente no Brasil, mas no mundo, em regiões desprovidas de condições dignas de vida. A Geografia, que serve para fazer a guerra, deve também servir para combater as desigualdades sociais. Tornar visível o que o sistema procura esconder.
Aziz Ab'Sáber  (1924-2012)
Essa é a essência da mensagem que passo aos formandos em Geografia, inspirado em Yves Lacoste, Milton Santos, David Harvey, e, em uma homenagem especial, a esse que considero um dos maiores geógrafos brasileiros, falecido no dia 16 deste mês, Aziz Ab’Sáber.
Sejam bons profissionais, mestres ou bacharéis, mas imbuídos de um espírito de justiça que lhes possibilitem resistir às idolatrias de uma sociedade egoísta, em que se finge estar bem em meio a situações caóticas, preconceituosas e de uma violência gerada em seu próprio seio, pela cultura individualista da sobrevivência dos mais capazes, num perverso sistema meritocrático mas com oportunidades para poucos.
Mas não sejam amargos por isso, encarem a vida com a serenidade dos sábios, e não esqueçam jamais que o saber nós conquistamos com os mestres, mas a sabedoria advém da experiência de vida e da humildade.
Carpe Diem!

3 comentários:

  1. A homenagem é digna de você. Seus alunos só estão confirmando o grande potencial que você tem, tanto pelo senso crítico como também pelo conhecimento, obtido através de muita dedicação e disciplina. Acredito que a sua contribuição deve ter sido fundamental para formar profissionais que não só valorizem a inserção no mercado de trabalho, mas também a utilização de sua formação para contribuir para um mundo melhor e mais justo.

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  2. Parabéns meu querido e amado ex-professor, por mais essa merecida homenagem. Tenho certeza que todos(as) alunos(as) irão levar para sempre, os valorosos ensinamentos do grande mestre Romualdo.
    Grande beijo com muito orgulho de ser sua companheira!

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  3. Finalmente o Poder nos foi transferido com a chegada de nossos títulos, porém a sabedoria de como usa-lo dependerá das nossas futuras escolhas, acredito que seremos geógrafos obedientes ao saber mediado pelo mestre Romualdo, foi um prazer ser seu aluno professor, abraços.

    Geógrafo André Gomes.

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