Já não é mais tão
fácil, ou talvez nunca tenha sido, produzir conhecimentos sobre a realidade
vivida, ou compreender os fatos que nos cercam e nos afetam direta ou
indiretamente, em um mundo conectado onde as pessoas julgam saber de tudo, por
meio de informações superficiais e abstratas.
Por essa razão, e
por poder ver tantas opiniões se multiplicando aceleradamente pelos canais
virtuais, blogs, sites, aplicativos, de forma resumida, e acintosamente
antidialética, que me recolhi à minha insignificância. Ser observador em um
mundo de “gênios”, conhecedores rasos de políticas e geopolíticas, nos angustia,
isso é inegável. Mas, pelo menos evitamos ser afrontados tanto pelo maniqueísmo
que impera resolutamente nos tempos atuais, mais do que em outros tempos, ou
não; bem como não somos alvos de “cancelamentos”, ou de ataques estúpidos, por
quem só deseja ler e ouvir aquilo que quer, nesse tempo alguns anos atrás já
denominado de “era da pós-verdade”.
Mas resolvi
retornar, e produzir um artigo na linha de outros que já escrevi em meu blog,
com um título parecido com esse que uso neste: “Crônicas de um mundo em transe”.[1] Talvez essa minha
publicação possa vir a despertar alguns desses sentimentos, e eu venha a sofrer
os ataques de milícias virtuais, pérfidos vigilantes da estupidez que grassa e
faz reacender as fúrias neonazistas e neofacistas. Mas também posso ser afetado
pela reação ferina de uma esquerda que atualmente se equilibra entre os
discursos identitários e a visão maniqueísta de mundo. Numa estranha fuga da
realidade e da compreensão dialética de analisar e perceber as sociedades em
meio a todas as suas contradições, e do entendimento que muito nos ensinou o
legado marxista, de que devemos partir da observação da totalidade das coisas,
e que, por meio das análises das partes que a compõem, e da necessária vinculação
entre elas, só assim, podemos compreender o todo dentro de uma visão concreta, materialista
e dialética de como esse mundo foi sendo construído e da sua existência real
nos tempos atuais.
Elevar alguma
dessas partes a condição de elemento prioritário no enfrentamento dessa
realidade social, nos impede de compreender e de ter a noção exata da existência
de classes sociais, de um sistema dominado por uma dessas classes e de uma
estrutura que vai muito além dos embates específicos, e deve, sempre, nos levar
diretamente para a compreensão das raízes de como toda essa estrutura foi sendo
construída. E, se quisermos destruí-la, e queremos, porque é abjeta em sua
lógica desigual, precisamos abalar os seus alicerces, e transmitir às novas
gerações as observações sobre como as colunas que sustentam todo esse arcabouço
de uma sociedade perversa na consolidação e na defesa de um sistema injusto e deformado,
estão construídas sobre fundamentos ideológicos rasos, frágeis, manipuladores,
mas que se sustentam no medo, na fé e religiosidade das pessoas, na ganância,
na usura e no individualismo que explora o trabalho alheio e sobre ele eleva
suas riquezas e as transmitem por gerações e gerações, pela perversão meritocrática
do direito de heranças.
“O MUNDO É MUITO
MAIS COMPLEXO DO QUE QUEREM NOS FAZER CRER”[2]
A pior coisa que
podemos fazer, na busca pela compreensão da realidade, é simplificarmos o
olhar, ou o entendimento, de como é o mundo. Infelizmente, atravessamos um
momento da história que inevitavelmente tem formado as novas gerações, onde a
informação transborda como um líquido gaseificado após ser sacudido, mas que o
conhecimento se dissipa como uma neblina.
Ou seja, temos
muita informação, que nos são apresentadas na absoluta maioria de forma rápida
e superficial, e carecemos de um conhecimento aprofundado sobre a realidade.
Isso nos leva desastrosamente ao crescimento da estupidez, da idiotização e da
alienação política. E, por óbvio, torna-se difícil a condução de qualquer
debate, quando o expositor olha para uma plateia, ansiosa por compreender cada
palavra dita por meio do acesso rápido ao Google – e agora ao ChatGPT – e a
intervir com a idólatra sabedoria abstrata, ou na apostasia daquilo que lhe
guiava até pouco tempo. Evidente que isso também não deixa de ser a dialética,
ou a negação da negação, mas que devemos ver pelos caminhos oblíquos de uma
sociedade que se guia por referências tais quais como uma biruta de aeroporto,
que se deixa levar ao sabor do vento.
Mas pelo menos
esse instrumento, de antanho, que sobrevive até hoje, tem a função de indicar a
direção do vento. Já o sapiente ignorante se deixa levar pelas informações
fáceis, aleatoriamente, em muitos casos, falsas, e se identifica com elas na
conjunção com as circunstâncias de suas vidas, chatas, ressentidas, conflituosas,
inexpressivas, cheias de rancores, desequilibradas, ou que se originam nas
pregações dos púlpitos, mas cujas razões para explicar cada uma dessas
situações não são compreendidas dialeticamente, e por isso, na busca pela razão
rasa, com perdão da quase redundância, se (des)equilibram na adesão àquelas informações
que lhes são mais convenientes às condições em que vive num dado momento. Dessa
forma se tornam presas fáceis dos movimentos de uma extrema-direita que se
dedicou nos últimos tempos a buscar nessas contradições o seu crescimento, e a
adesão dessas pessoas, presas pela ignorância, pelo fundamentalismo religioso e
pela alienação política.
Qual o risco no
qual estamos metidos? É que essa situação não nos parece ser de uma passagem
rápida. Possivelmente viveremos ainda por um bom tempo, tentando lidar com uma
realidade tóxica, contaminada por discursos que inspiram o rancor, o ódio, a
estupidez. A desinformação será a arma principal nas lutas políticas,
principalmente por meio da destruição de reputação. Da mesma forma o uso e
abuso da fé, partindo das pregações odientas de pastores sanguessugas e demais
religiosos que fincam seus pés e seus valores na rigidez anacrônica de costumes
ultrapassados, completamente distanciado da realidade atual.
Por esse meio, no
entanto, seguirá acontecendo o recrutamento de uma população marcada pela baixa
autoestima, e fragilizada por condições sociais desequilibradas, bem como pelo
medo gerado pelo avanço da violência em um modelo de mundo perverso, mas onde
essas pessoas se deslocam na direção de seus algozes. A compreensão de um mundo
que se explica pela luta de classes sequer passa perto do entendimento da
realidade como eles próprios se veem. São, assim, reféns do discurso
conservador, pautado pelos costumes de eras passadas, pela hipocrisia de apóstatas
que se desviam de princípios basilares do cristianismo. Estão à mercê do
fascismo e do neonazismo, ou, da extrema-direita radicalizada.
Os desafios para
quem lê, estuda e analisa o que está acontecendo no Brasil e no mundo, com um
olhar estratégico, dentro de uma metodologia que prime pela compreensão
dialética da realidade, são enormes. Porque as gerações atuais não têm mais a
paciência de se aprofundar nos temas necessários ao entendimento da complexidade
do mundo. São premidas por um tempo marcado pelo excesso de informação e a
necessidade de ler sobre muitas coisas em um curto período. É a geração Tik-Tok.
O DESAFIO DE
ENFRENTRAR A REALIDADE, NUMA ÉPOCA DE PÓS-VERDADE
Como alterar isso?
Esse é o dilema. Ou seja, é preciso explicar as coisas com clareza, mas com
objetividade, sem ser prolixo, mas também sem ser superficial. Encontrar a
medida exata para chegar a uma pedagogia consistente, que prenda a atenção dessa
geração não é tarefa fácil. Pois que não podemos renunciar ao aprofundamento
nas questões objetivas, que nos levam a compreender as complexidades de um
mundo confuso. Este meu texto, por exemplo, já extrapolou, pelo tamanho, o
limite da paciência dessas novas gerações. Espero que, com essas provocações,
os que estiverem lendo se sintam provocados para chegar até ao final.
Já as pessoas mais
velhas, sucumbem ao medo, potencializado pelo uso que alguns pregadores fazem
da religião. Saudosos de um tempo em que a violência não era tão explícita, ou
que estavam distantes de suas realidades, as gerações mais antigas são
induzidas por velhos discursos, como se a mudança nos costumes não pudesse ser
responsabilizada pelas crises sistêmicas e mudanças no comportamento humano,
cada vez mais insensíveis e desprovido de empatia. Mas, contraditoriamente, ao
agir dessa maneira, terminam por seguir na direção do mesmo comportamento em
que criticam, e são alimentados pelo discurso do ódio e da intolerância. Só que
eles não têm essa percepção, seduzidos por essa estratégia perversa, pela qual
a extrema direita conseguiu se aproveitar da alienação, do medo, da crença e da
fé dessas pessoas.
Enquanto isso, os
segmentos mais politizados se apegam a discursos identitários como bandeiras
principais de suas lutas, se distanciam da compreensão de que a construção
desse mundo se deu como base na expropriação dos sentimentos, e do desconhecimento
da realidade. E que, os discursos preconceituosos, machistas e misóginos,
representam, em realidade a conjunção de diversos fatores, que explicam como é,
como surgiu e como foi se revelando em toda a sua perversão o sistema
capitalista, trazendo marcas de um passado perverso, principalmente (como
sempre) para as mulheres. E se é verdade que essas questões estão enraizadas
numa construção de estruturas e instituições que mantém permanentemente um desequilíbrio
social e uma sociedade etnicamente desigual em suas oportunidades e respeito aos
diferentes, como acredito que seja, o fundamental é a compreensão de como isso
se estruturou, como essa sociedade foi edificada, como esses valores se
incorporaram nas mentes das pessoas, dentro de uma noção de abrangência de como
tudo isso foi construído. Uma noção de totalidade, e um entendimento dialético
das contradições que fundamentam, inclusive, esses comportamentos que as lutas
identitárias combatem, com justeza e com justiça.
Mas, como se diz
no ditado popular, que é necessário cortar o mal pela raiz, a luta nessas
particularidades, descoladas de uma visão de totalidade e compreensão das
origens dessas desigualdades, apresenta-se de forma incorreta, muito embora ser
necessária. Ocorre que discurso e palavras de ordens, ditas sem o necessário
processo educativo, de demonstração das raízes dessas perversidades, só alimentam
as concepções reacionárias, que se protegem nos discursos hipócritas de falsos
líderes e mitos desequilibrados, desviando as atenções para uma pretensa defesa
de valores conservadores, reproduzidos de livros ditos sagrados e escritos há
milênios.
Enfim, a defesa de
valores conservadores, que inspiram a extrema-direita, bem como as lutas
identitárias, que têm mobilizado setores mais à esquerda, se constituíram no
embate mais visível desses tempos, denominada – com a minha contrariedade – de “guerra
cultural”. Por paradoxo, mas não assim se nos aprofundamos no entendimento da
composição e das mentes das pessoas que formam a nossa sociedade, esse caminho
nos levou a um tempo em que vivemos o crescimento de uma extrema-direita raivosa
e, por consequência de sua ascensão ao Poder até recentemente, a propagação e
organização de ideias neonazistas, seduzindo parcela significativa da juventude.
Ao direcionar para
o campo da “cultura”, o que é ideológico, a extrema-direita fez um movimento
estratégico que emparedou a esquerda, e levou a essa polarização praticamente
inédita dentro da realidade política brasileira em tempos democráticos. Como,
pelo relato feito, o tempo é de informações fúteis, simplificadas, resumidas e,
na maioria das vezes, falseadas, o caminho ficou pavimentado para que nosso
país se visse às voltas de uma transformação radical na política, com duas décadas
em um curto século em que transitamos da esquerda à extrema-direita, e de volta
a uma esquerda escorada em segmentos da centro-direita e centro-esquerda, numa
necessária composição para retirar o nosso país do limbo em que se encontrava.
A ESPERANÇA, NUMA
REALIDADE TÓXICA
Não posso dizer,
em minha compreensão, que as perspectivas são boas, mas não desejo me azedar em
um pensamento pessimista, de que as coisas não irão melhorar. Para isso, sigo a
máxima que sempre procuro repetir, do saudoso Ariano Suassuna: “O pessimista é
um chato; o otimista um tolo. Melhor mesmo é ser um realista esperançoso”.
Mas, adepto da
dialética como melhor filosofia de compreender o mundo real, tenho a percepção
que estamos vivendo um período de transição, com dificuldade de entendermos
para onde e qual tipo de sistemas podemos construir, na substituição do caquético
e perverso capitalismo. Até sabe-se lá por quantas gerações, essa será uma
transição lenta e marcada por muitas guerras, porque essa tem sido a
alternativa para potências em crises: a economia de guerra, com a
intensificação do comércio de armas cada vez mais sofisticadas. Os
trabalhadores e trabalhadoras sofrerão com a redução de seus salários, como
efeito do aumento de mão de obra disponível no mercado, como consequência do
avanço de novas tecnologias, da robotização e da inteligência artificial. Portanto,
será um mundo com fortes tensões e embates, que precisam ser direcionados para
um enfrentamento de classes. É inadmissível que os mais pobres e as camadas
médias baixas se coloquem em lados opostos, quando pela lógica sistêmicas são
peças descartáveis pela burguesia e pelos novos ricos rentistas. Será assim no
mundo... e será assim também no Brasil.
Então, na medida
em que tomamos da extrema-direita o controle do Estado brasileiro, é mister que
isso se mantenha pelo menos por mais uma década, ao tempo em que a prioridade
deve ser trabalhar na conscientização de um enorme contingente de pessoas que
foram seduzidas pela mentira, pelo medo e pelo ódio. Politizar essas pessoas
pela qualificação de suas capacidades críticas de compreensão da realidade e
pela necessidade de aglutinação em entidades, associações e sindicatos que
lutam por seus direitos. Demonstrando que os representantes da extrema-direita,
por seus atos óbvios, representam aquela camada social dominante que os
exploram e se enriquecem mesmo em meio às piores crises.
A esquerda não
deve disputar entre si esse processo com o afã de recrutar pessoas somente
dentro de suas visões dogmáticas do mundo. É preciso amplitude, organicidade e
unificação de setores que carregam um mesmo objetivo, a construção de uma
sociedade em que se possa viver pelo bem comum, na consolidação de um estado de
bem-estar social, no caminho do socialismo, evitando-se repetir os erros que o
capitalismo e a burguesia prometeram corrigir, quando hipocritamente levantaram-se
a bandeira de “igualdade, fraternidade e liberdade”. O que se viu foi a
construção de um mundo em que os muros se multiplicaram, onde 1% controla mais
da metade da riqueza mundial.
Sejamos “realistas
esperançosos”, mas jamais defensores de sociedades fraturadas e de governos autoritários.
Lutemos pela verdadeira democracia, não somente focada no direito de votar, mas
onde a riqueza construída pelo trabalho possa ser distribuída de acordo com as
necessidades de cada família, daqueles trabalhadores e trabalhadoras que
efetivamente constroem o que se convencionou chamar de Produto Interno Bruto. Defendamos
a democracia do PIB, e dessa forma estaremos pavimentando nosso caminho para um
futuro razoável e mais solidário, que bote um fim à pobreza e a miséria. Alguns
dirão que isso é utopia, mas recordo a fala de Eduardo Galeano, que sempre lembrava
de uma frase que ele diz ter visto em um muro, de que a utopia é um ponto
distante, e quanto mais nos direcionamos em direção a ele, mas ele se distancia.
Concluindo, por isso, que a utopia nos serve para que não paremos de caminhar.
Em direção àquele ponto distante que imaginamos como sendo uma sociedade mais
humana, sensível, empática, e baseada na comum união.
Esperança, apesar de tudo, é resistência
ResponderExcluir