Em cem anos de existência deste que é o mais antigo
partido do Brasil, e um dos mais antigos do mundo, vivi, até aqui, 42 anos na
militância, na luta, na defesa do socialismo e de uma sociedade mais justa,
menos desigual e mais igualitária. Claro que em algumas circunstâncias, e em
alguns de nós, o ímpeto se reduz, afinal, já não carregamos mais a força da
juventude. Mas jamais perdemos a vontade de permanecer lutando por aquilo que
consideramos a sociedade ideal e verdadeiramente democrática. Na comemoração
deste centenário, que se deu em grandes atos no Rio de Janeiro e por todos os
estados brasileiros, aqui em Goiás alguns de nós, militantes, fomos
homenageados. Poderiam ser mais, muito mais. O que nos honra estar entre os
escolhidos.
Denise Carvalho, em ato na Praça Universitária no começo dos anos 1980, à frente da Juventude Viração, que depois viria a ser a UJS. |
Na sessão de homenagens
fomos representados por uma grande liderança, com quem tive o prazer de lutar
lado a lado em um dos momentos mais radiantes do movimento estudantil goiano na
década de 1980. Ao ouvir o discurso de Denise Carvalho, que em outros tempos se
destacou como presidente do DCE-UFG, da UEE-GO, como vereadora, deputada
estadual e secretária de ciência e tecnologia, e se mantém coerente em suas escolhas
e na defesa de seus ideais, não tive dúvidas de que deveria publicá-lo neste
blog, espaço que quase sempre compartilho meus textos, alguns intimistas,
outros políticos e geopolíticos. Mas o discurso elaborado e lido por Denise,
expõe com brilhantismo e competência tudo aquilo pelo qual escolhemos ser e a
correção daquilo que escolhemos defender.
Por essa razão segue abaixo
uma memória precisa, histórica, política e relevante desses tempos em que,
entre altos e baixos, jamais paramos de lutar e desejar transformar esse mundo
e o nosso país. A luta continua!
PRONUNCIAMENTO
À SESSÃO ESPECIAL EM HOMENAGEM AOS 100 ANOS DO PCdoB
Por: Denise Aparecida Carvalho
Sala das sessões: Assembleia Legislativa de Goiás
Denise Carvalho, em pronunciamento durante homenagem aos 100 anos do PCdoB |
Coube-me
a grandiosa e difícil tarefa de falar em nome dos homenageados e homenageadas
nesta solenidade histórica. Sempre esperei conseguir viver esta comemoração,
mas nunca imaginei que aqui chegaria nas atuais circunstâncias: 1º. que as
condições do país seriam tão desafiadoras, pautadas pelo medo e ódio, pelo neofascismo,
pela ferocidade do imperialismo rentista, pelo profundo obscurantismo, pela
consolidação do capitalismo de vigilância e outras mazelas mais; 2º. que seria
chamada a representar pessoas tão diversas e também tão relevantes à sociedade
goiana e às lutas libertárias de nosso povo. Peço de antemão que me perdoem se
meu tom for excessivamente pessoal e não suficientemente analítico. Trilhando
há 16 anos os caminhos da Cultura de Paz e há 4 anos nos passos do Colégio
Internacional de Terapeutas, assumi também um outro olhar que entendo ser
complementar ao que desenvolvi nos muitos anos de minha imersão nos sentidos e
práticas do PCdoB. Aprendi neste novo caminho que as palavras que unem
dialeticamente o analítico e o sintético, ao serem ditas na inteireza e falarem
sobre nossa própria experiência, talvez possam reverberar em outros corações.
Assim espero que o façam.
Minha opção pelo PCdoB veio com a descoberta do lema
da sociedade sem classes que os comunistas almejam que diz assim: “DE cada um
segundo sua CAPACIDADE e A cada um segundo a sua NECESSIDADE”. Que coisa
maravilhosa! Entendi logo a sintonia disso com minha formação cristã e pensava:
“que incrível um mundo abundante e justo assim, onde todos têm acesso a tudo e
ninguém quer ter mais que o outro!” E o melhor: seria possível construí-lo aqui
mesmo na Terra! Para chegar lá haveríamos de percorrer um longo caminho,
cumprindo uma transição chamada Socialismo, onde o Trabalho seria o fator
primordial para a justa distribuição das riquezas. Mas lá na frente, o que
almejávamos, era a sociedade sem classes, de equidade, harmonia e
solidariedade. Eu pensava muito sobre o comunismo e como seria necessário
cultivarmos DESDE JÁ este novo Ser Humano, liberto das ideias tóxicas da
sociedade capitalista e patriarcal, capaz de criar e viver em uma sociedade
livre da opressão. Certamente não conseguiríamos nós mesmos alcançá-la, mas o
importante era o novo sentido que estas ideias ofereciam à existência humana. A
palavra “camarada”, para mim, era uma expressão carregada de significados e
ungida neste espírito mais elevado. Era como dizer “reconheço em você um irmão,
uma irmã de propósito”, referência a uma fraternidade mundial, guiada por um
sonho comum realizável.
Também agíamos muito diante dos desafios concretos
cotidianos. Logo as lutas estudantis me envolveram, a luta democrática tomou as
ruas e, nesta toada, acabei me tornando liderança popular e a representante dos
comunistas no parlamento por 14 anos, 12 deles aqui nesta casa. Cheguei aqui
como a primeira deputada estadual comunista, 43 anos depois de Abrão Isaac Neto
ter tido o mandato cassado em 1948 pela ditadura Vargas.
Mas pulei demais no tempo... vamos voltar lá aos anos
80 em um episódio vivido no aniversário de 60 anos do Partido. No 25 de março
de 1982, passamos o dia todo pendurando bandeiras, vendendo a Tribuna Operária
pelas ruas do centro da cidade e fugindo da polícia pois o Partido era ilegal.
Aos 19 anos de idade, com um barrigão de 9 meses de gestação, cheguei em casa
por volta das 10h da noite e às 11h já estava no hospital em trabalho de parto.
O Fred nasceu pouco depois das 10 da manhã do dia 26.
1982, véspera da eleição do DCE-UFG |
Antes
de terminar o resguardo veio o convite do Partido para que eu participasse de
um “ativo” de mulheres em SP e lá fui eu, com o bebê de 23 dias nos braços,
animadíssima para conhecer o maior comunista do Brasil: João Amazonas! Gente,
eu nunca tinha conhecido alguém que com tão poucas palavras e tanta
inteligência era capaz de pontuar questões complexas e ao mesmo tempo se
expressar com tanta convicção e gentileza. Ele afirmava que a “questão da
mulher” era essencial aos comunistas, que não era um assunto a ser tratado
apenas no socialismo, mas desde já pela sociedade e pelo Partido. Entre os dias
25 de março e 20 de abril de 1982 vivi uma das mais ricas experiências de minha
existência como comunista, mãe e feminista!
Sinto muita falta de João Amazonas. Com sua voz
pausada e firme, sabia colocar limites ao mesmo tempo em que acolhia e ensinava
com grande humildade. Foi um visionário! Em 1989, Lula dizia que quando tinha
apenas 3% das intenções de voto, só duas pessoas acreditavam em sua vitória:
ele e João Amazonas. No início dos anos 90, eu propus conceder-lhe o título de
cidadão goiano por esta casa e ele relutou muito em aceitá-lo. Detestava
manifestações de elogio à sua pessoa, que achava deseducativas, vaidosas.
Com muito custo consegui convencê-lo de que seria
importante para o Partido e prometi que os elogios seriam todos ao coletivo e
nunca à sua pessoa. De fato, aquela sessão ajudou bastante a enfrentarmos o
massacre ideológico que sofríamos com o fim da URSS. De 1989 a 1992 vivemos
anos de intenso bombardeio anticomunista por todo o planeta e muitos partidos
se apressaram em mudar seus nomes e símbolos no esforço para sobreviverem à
avalanche midiática. Parecia que os sonhos de uma nova sociedade ruíam com o muro
de Berlim e que a esperança jamais brotaria novamente naquele solo devastado.
Denise e novas lideranças do PCdoB e da UJS |
O
imperialismo decretava-se eterno e o mundo engolia o engodo, mas nós não! Como
uma pequena comunidade viva em meio a um país continental, ergueu-se o corajoso
PCdoB dizendo em alto e bom tom: “o Tempo não para, o Socialismo vive!” Que
orgulho desta brava resistência! Sem ferramentas para fazer frente à mídia
hegemônica, em uma época em que não existiam as redes sociais, debatíamos o
tempo todo e como podíamos, nas tribunas parlamentares, em nossos jornais, com
megafones nas ruas, nas salas de aulas, nas feiras livres e até dentro dos
ônibus. Nas campanhas um bom tempo das reuniões populares era usado pra
explicarmos o nome do partido.
O que inicialmente era um desafio, por fim ajudava a
elevar o nível de consciência política do povo. O PCdoB emergia assim como
força pensante e desenvolvedora do marxismo. Seus intelectuais orgânicos em sua
Revista Teórica, a “Princípios”, mostraram-se capazes de explicar com rigor
científico as causas daquele fenômeno mundial, as insuficiências das primeiras
experiências socialistas e de apontar alguns caminhos para a não repetição dos
erros.
Romualdo Pessoa e Celma Grace e a homenagem recebida |
Hoje,
30 anos após o fim da Guerra Fria aqui estamos nós, vivendo intensamente a
mesma encruzilhada: OU o socialismo OU a barbárie. Só que agora esta última é
menos hipotética e já sentimos seu hálito podre em nossas nucas e seus coturnos
sujos a chutar as nossas portas. No cristianismo este monstro tem outro nome e
é anunciado, com muito simbolismo no Apocalipse de João, através dos Quatro
Cavaleiros portadores da Guerra, da Peste, da Fome e da Mortandade desenfreada.
O que vivemos hoje? Será este o triste fim da
existência humana na Terra? Ainda há caminho para nossa salvação? Os comunistas
não se rendem ao fatalismo e buscam saídas pela ciência, pela economia
política, pela ética, pelas artes, pelo diálogo com sabedorias ancestrais e continuam
acreditando que sim, a humanidade pode encontrar novos caminhos.
Vi na semana passada na TV a notícia de que mais de
80% dos brasileiros vivem para pagar dívidas com os bancos e lembrei-me do
Ladislau Dowbor a ensinar no Instituto Paulo Freire sobre a “Pedagogia da
Economia: a Era do Capital Improdutivo” e como estamos destruindo o planeta
para favorecer uma extrema minoria. É insano!
Mas afinal, Que Fazer? Hoje a urgência é conter a
extrema direita com seu programa ultraliberal, sua sanha autoritária e
obscurantista, sua escalada de violência, para podermos fazer avançar a
democracia política e econômica. Desde a retomada dos direitos políticos de
Lula em abril do ano passado renovou-se em nosso povo esta Esperança. Temos
força potencial para vencer a grande batalha eleitoral deste ano, mas ela ainda
não está ganha. A amplitude das alianças não é empecilho para as mudanças
profundas que a reconstrução do país requer, ao contrário, é necessária.
Ato pela legalidade do PCdoB. Na foto João Amazonas, José Duarte, Elza Monerat, Haroldo Lima e Aldo Arantes (1985) |
Novamente
ouço João Amazonas nos ensinando sobre a relação dialética entre Radicalidade e
Amplitude: “AMPLIAR RADICALIZANDO E RADICALIZAR AMPLIANDO”, ele dizia. Perfeito!
Mas não nos iludamos, ganhar a eleição é só um passo. O trabalho de
reconstrução nacional será árduo e conflituoso, exigirá muita força, clareza,
paciência e perspicácia. Nada parecido com um mar de rosas. O desmonte foi
grande e rápido, a consciência democrática está bastante fragilizada, as
instituições muito distorcidas e a perversidade à solta por todos os cantos do
país. Se nos anos 80 o espírito da democracia estava em alta e o desafio era a
remoção do entulho autoritário, hoje a necropolítica é forte e fomenta um
entulho ainda mais tóxico, entranhado em nossas águas, nossas matas, nosso solo
e em boa parte da sociedade. O estrago estrutural promovido por estes vendilhões
da pátria é enorme e vai dar um trabalhão libertar o nosso povo de tantas sombras.
Mas sei
que coragem e determinação não nos faltam. Lula resistiu por quase dois anos
nas masmorras de Curitiba e nos deu exemplo. Dilma resistiu a um golpe cruel e
misógino e nos deu exemplo. Os acampados de Curitiba nos deram exemplo, as
Margaridas em marcha nos dão exemplo, o MST que semeia novas formas de viver
nos dá exemplo, a comunidade universitária que não se rende nos dá exemplo, as
comunidades tradicionais nos dão exemplo de sabedoria, as comunidades urbanas
organizadas nos dão exemplo de solidariedade, milhões de artistas por todo país
nos dão seus exemplos e talentos... e nosso povo vai aos poucos se levantando e
mostrando seu lado sadio, o lado daqueles que acreditam na vida, no bem e no
belo.
O
PCdoB apresenta um lema neste centenário: FLORESCE A ESPERANÇA. Gostei muito,
ainda mais por sua sincronicidade com o tema do Calendário “Mandalas da
Esperança” que fizemos para 2022. Neste, propomos “semear” a esperança este
ano. Os comunistas vão adiante e já a veem florescer. Creio que aqui o
movimento comunista, apoiado na rica história de seu primeiro século no Brasil,
já projeta para o próximo o PCdoB+100. E para isso precisaremos de muita
paciência, Paz e Ciência, a “ciência da paz”, que tem seus próprios métodos. Também
precisamos estar “cientes da paz” que já possuímos, para que ela possa florescer.
Uma sociedade desenvolvida não é aquela que produz de forma predatória muitas
riquezas, mas sim aquela que as distribui com justiça, cuidando de sua gente e
de seu equilíbrio ambiental.
Agradeço
mais uma vez a honra de poder deixar aqui este depoimento e estas impressões
sobre tantas coisas e agradeço ainda mais pela escuta de vocês. É um forte
sinal de nosso amadurecimento. O momento é de muito desapego e de colocar-nos a
serviço de coisas bem maiores que nossa própria existência.
Encerro
com um trecho do Poema Invictus de William Henley, que muito inspirava Mandela
e desejo que também nos inspire. Ele diz assim:
“Por
ser estreita a fenda, eu não declino
Nem
por pesada a mão que o mundo espalma,
Eu
sou o senhor do meu destino,
Eu
sou o capitão de minha alma”
Boa caminhada, camaradas!
Vida longa ao Partido Comunista do Brasil!
Goiânia, 04 de abril de 2022.
Excelente texto/discurso. Me vi em muitas dessas passagens e me emocionei. Fizemos as escolhas certas. Em alguns momentos as divergências teóricas e sobre os encaminhamentos nos colocaram em posições diferentes, mas nunca sem perder o objetivo final, a luta pelo Socialismo. Desde a Viração, quando tinha 17 anos até o momento atual, o PCdoB foi a maior escola da minha vida. Aprendi muito. Sou grato as/aos Camaradas, amigos e companheiros que caminhamos na luta pela justiça social e ambiental.Feliz por ler as impressões de Denise Carvalho, uma mulher que lutou e luta bravamente contra todas as formas de opressão em um Goiás regido pelas práticas coronelísticas e autoritárias. Salve o PCdoB! Salve o Socialismo!
ResponderExcluirmaravilha de discurso, parabéns
ResponderExcluirTambém no movimento estudantil tive a oportunidade de iniciar minha militância no PC do B, que realmente foi uma escola para mim. Hoje, respeito demais os amigos que fiz durante esta militância e que me são caros, até hoje! Muitos continuam sendo uma referência para mim! Denise Carvalho é uma destas pessoas: fiquei muito feliz com sua fala representando a todos os homenageados, nesta emocionante e significativa sessão comemorativa dos 100 anos de PC do B! Vida longa ao PC do B!
ResponderExcluirO fazendeiro Afranio Azevedo também foi deputado estadual entre 1947 e 1948,e cassado juntamente com Isaac Abraão, em consequência da cassação do PCB pelo TSE.
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