24 de junho de 2015.
Completaram-se 14 anos da morte de meu pai (2001). Foi em seu velório, em meio
à dor que eu sentia, que fiquei sabendo da morte de outro baiano ilustre, na
mesma data. Este um conhecido cidadão do mundo: Milton Santos. Com esse artigo
homenageio Milton Santos, por sua dimensão histórica-geográfica mundial, e por
extensão, meu pai, cujo papel político se restringiu ao seu Estado e a sua
sempre querida cidade natal, Alagoinhas, onde foi vereador por quatro
mandatos(*).
Meu pai, Romualdo, com minha mãe, Maura. Foto de 1991 |
Meu pai faleceu no mesmo dia que meu Milton Santos. Romualdo Pessoa Campos, também baiano, vereador por 16 anos pelo PTB, na cidade de Alagoinhas, e por várias vezes secretário da mesa diretora do legislativo daquela cidade, até ser preso em 1964 e ter desistido da política, tornando-se funcionário público do DNER até se aposentar. A altivez e o orgulho pelo seu trabalho alimentavam uma esperança de que o nosso país desse certo pelo esforço de cada um, como ele fazia.
24 de junho, dia de São João, tão lembrado pelos nordestinos. Um dia para ficar para sempre guardado na minha memória.
Um, cidadão do lugar, incorporado na força dos lentos, baiano do interior, embora quase anônimo me alimentou o orgulho de ser seu homônimo. O outro, também baiano, cidadão do mundo (embora ele não gostasse dessa expressão), esgrimindo na força de seus argumentos, de suas criações e elaborações intelectuais a esperança de um outro mundo, de uma outra globalização. E a morte, a igualá-los na eternidade do meu pensamento, na afinidade dos meus sonhos, na consolidação das minhas crenças, e na afirmação das certezas de que embora curta a nossa vida nessa imensidão de tempo que gesta e desenvolve a humanidade, vale a pena lutar, mesmo sendo ela, a morte, a única certeza do porvir. Mas ela não deve nos desanimar, e sim nos reconfortar, na medida em que escapemos da nossa individualidade e possamos transferir nossos sentimentos humanistas para a construção de uma utopia, sem a qual a nossa existência não teria sentido.
MILTON SANTOS: DA BAHIA PARA O MUNDO
CIDADÃO DO MUNDO
Conheci Milton Santos, em 1996
no Simpósio realizado na USP em sua homenagem: “O mundo do cidadão -
cidadão do mundo”. Tempo suficiente para aprender a respeitá-lo e
admirá-lo, e a me tornar leitor ardoroso de seus textos e livros.
Também baiano, como ele, formado em
História, com pós-graduação nessa mesma área, entrei na Universidade Federal de
Goiás em um concurso realizado no curso de Geografia, em 1995 para ministrar
aulas de Formação Econômica e Social, também dentro da minha área de formação.
Ao final do primeiro ano eu tinha uma firme convicção da importância dessa
disciplina, por ser ela fundamental para o entendimento da relação
tempo-espaço. Afinal, nada se dá fora do tempo, nem ocorre no vazio, senão num
determinado espaço. Além da fundamental compreensão de que nada acontece
isoladamente, somente este ou aquele fato podendo ser explicado dentro de um
processo que aponte as causas e nos dê a dimensão de um presente que nada mais
é do que a somatória de tempos passados. A junção e conjunção de espaços que se
transformam num acumulo incessante de novos objetos, gerados por outros, que,
outrora novos, foram envelhecidos pelo tempo.
Milton Santos passou a ser um referencial
para um redirecionamento das minhas dimensões intelectuais. Primeiro, por uma
iniciativa própria, senti a necessidade de buscar nas leituras da Geografia a
condição necessária para me dar a compreensão de que eu estava ali para ajudar
na formação de Geógrafos. Nada mais justo, e coerente, que procurasse aliar os
meus conhecimentos historiográficos, à noção e dimensão do pensar geográfico.
Senão me perderia num emaranhado de conceitos e categorias, vendo-os de maneira
formal, como se vê habitualmente no senso comum, e banalizando a importância do
conhecimento geográfico para o entendimento das relações humanas. É preciso bem
mais do que uma mera análise da superfície terrestre; dos cursos dos rios; dos
afluentes das margens esquerdas e das margens direitas; da localização
cartográfica; das capitais e de seus estados; dos tipos de solo e da qualidade
da água. Questões importantíssimas para entender o todo que abrange o nosso
planeta, mas insuficientes se desconsiderarmos o principal elemento de ligação:
o ser humano, razão primeira e última da existência de todo conhecimento, pois
é por ele que todo o saber é gerado.
GEOGRAFANDO O HUMANO
O viés humano da Geografia transportava-a,
do sentido estrategicamente imposto por séculos, desde os seus primórdios, que
visava facilitar (e guardar) a localização de fronteiras dos nascentes Estados
absolutistas, ou desde já o desenvolvimento cartográfico para tal fim,
objetivando encontrar mercadorias e mercados, para uma visão mais ampla e
racional, no entendimento de que era preciso inseri-la como uma ciência humana.
O lugar, o território, o
espaço, a paisagem, as cidades, o urbano e o rural; a cultura, as tradições,
enfim a busca de conhecimentos não mecanicamente estabelecidos, mas numa
interação dialética que aponta claramente as relações entre o planeta e a
sociedade, visualizando as “heranças sociais materiais e o presente social”[1]. Sem se
limitar, contudo, à simples constatação de uma determinada realidade, mas
procurando soluções que dêem conta de resolver os problemas da imensa maioria
da população.
A Geografia mudou, num percurso oposto
àquele tomado pela História. Enquanto aquela buscava abranger o todo numa
abordagem dialética, encontrando no marxismo os elementos basilares para o
entendimento da racionalidade e das contradições que moviam as sociedades
humanas, o conhecimento histórico tomava outro rumo, caracterizando-se pela
fragmentação. A História fragmentara-se e aprofundara-se no localismo, no
cotidiano e nas mentalidades, e à medida que aprofundava-se em suas
especificidades, afastava-se do presente e da noção de totalidade, mesmo
procurando evitar os riscos do anacronismo.
Apesar de Braudel, que soube trabalhar
brilhantemente as noções de espaço e espacialidade, e via tempo-espaço como
inseparável, o enfoque dialético que ligará os restos do passado à
inexorabilidade das explicações do presente, transfere-se para a Geografia,
aproximando-a cada vez mais da sociologia, da filosofia, da economia e da
própria história.
E ninguém melhor do que Milton Santos soube
compreender o momento da Geografia, direcionando seus olhares para o fazer, na
maneira como o homem no presente constrói o seu futuro sobre os restos do
passado. Vendo nas técnicas, e em seus usos, as respostas para o entendimento
das complexas relações sociais, como “um dado fundamental da explicação
histórica, já que a técnica invadiu todos os aspectos da vida humana, em todos
os lugares”.[2] Mas,
mesmo com tais considerações, ele via a vida “não como um produto da técnica,
mas da política, a ação que dá sentido à materialidade”[3]
Surpreendentemente, se considerarmos os
direcionamentos dos fatos históricos das duas últimas décadas do Século XX, a
produção intelectual do professor Milton Santos avançou na contramão de idéias
hegemônicas que procuravam colocar-se como esclarecedoras e definidoras de um
fatalismo, que nos impunha a crença em um fim do qual não poderíamos escapar. A
“globalização” colocava-se como inevitável, e a sociedade futura como um
deslumbramento da vitória do “livre-mercado” sobre o “leviatã”, inoperante
máquina do Estado a entravar o progresso. Não somente o neoliberalismo
despontava como o ápice das liberdades, como o pós-modernismo surgia para por
fim à uma época que se caracterizou pela consolidação dos Estados-Nações e que
alcançou seu auge, e também os limites de suas contradições, com o Welfare-State.
A crise do socialismo dava um ar de déjà-vu, de estancamento de uma
utopia cujo “fracasso” só confirmava a convicção de ser o capitalismo e a
economia de livre-mercado o futuro incontestável da humanidade.
Não foi essa a análise que fez Milton
Santos em 1993, momento máximo da euforia neoliberal, no 3° Simpósio Nacional
de Geografia Urbana, realizada no Rio de Janeiro, quando apontava as principais
tendências dos anos 90:
“Na hora atual, e para a maior parte da
humanidade a globalização é sobretudo fábula e perversidade: fábula porque os
gigantescos recursos de uma informação globalizada são utilizados mais para
confundir do que para esclarecer: a transferência não passa de uma promessa.
(...) Perversidade, porque as formas concretas dominantes de realização da
globalidade são o vício, a violência, o empobrecimento material, cultural e
moral, possibilitados pelo discurso e pela prática da competitividade em todos
os níveis. O que se tem buscado não é a união, mas antes a unificação”.[4]
Contudo, apesar da acidez das suas críticas
quanto ao processo da globalização, da destruição de valores e do encolhimento
do indivíduo à superficialidade de suas relações, gerado pelo enorme poder da
massificação midiática, Milton Santos apontava na contradição de ser este mundo
três em um só, o elemento motivador da crença de que a globalização não passa
de uma percepção enganosa onde se impõe a informação, alicerçada na produção de
imagens e do imaginário. “O primeiro é o mundo tal como nos fazem vê-lo: a
globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como ele é: a
globalização como perversidade; e o terceiro, o mundo como ele pode ser: uma
outra globalização”[5].
Assim, direcionou seus últimos
escritos na contraposição do discurso hegemônico, caracterizado como “Consenso
de Washington”, e se tornou uma das vozes mais importantes na abordagem do
processo que atravessa a humanidade nas últimas duas décadas do século passado.
“Ao contrário do que se disse antes, a história não acabou; ela apenas começa.
Antes o que havia era uma história de lugares, regiões, países. (...) O que até
então se chamava de história universal era a visão pretensiosa de um país ou
continente sobre os outros, considerados bárbaros ou irrelevantes”.[6]
Acreditando na força do pobre e do lugar,
Milton Santos enfatizava, utilizando-se de uma expressão da professora Maria
Adélia de Souza, que “todos os lugares são virtualmente mundiais”,[7] o próprio
sentido da globalidade corresponderia a uma maior individualidade, e nessa
relação unicidade-totalidade acreditava que tornava-se necessário encontrar os
novos significados do mundo atual redescobrindo o lugar.
Aos pobres ele concedia a primazia de
situar-se num ponto de intersecção com o futuro. Acreditava que o
distanciamento ao totalitarismo da racionalidade transformava as imagens do
conforto, da modernidade tecnológica, em miragens para aqueles que por não estarem
inseridos nessa aceleração contemporânea, nesse mundo da profusão de sempre
novos objetos, eram por ele caracterizados como “homens lentos”. E por assim
ser, por escaparem dessa ventura vedada aos ricos e às classes médias, é que os
pobres podem esquadrinhar as cidades e ver na diversidade a necessidade de
transformação.
FILOSÓFO DA GEOGRAFIA
“Trata-se, para eles, da busca do futuro
sonhado com carência a satisfazer -carência de todos os tipos de consumo,
consumo material e imaterial, também carência do consumo político, carência de
participação e de cidadania. Esse futuro é imaginado ou entrevisto na
abundância do outro e entrevisto, como contrapartida, nas possibilidades
apresentadas pelo Mundo e percebidas no lugar”.[8]
Como afirmou o geógrafo e
ex-presidente da SBPC, Aziz Ab’Saber, Milton Santos foi um filósofo da
Geografia. Procurou incorporar a crítica aos seus estudos geográficos num
crescente resgate da concepção humanista, fundamentada na dialética marxista e
no existencialismo sartriano. E assim, ele se impôs perante a Geografia
mundial, e no Brasil se tornou um dos mais citados intelectuais das três
últimas décadas. Para confirmar a exceção, numa regra caracterizada pela
formação cultural dominada por uma elite branca e “estrangeirizada”, a sua cor
negra não foi barreira para que se consolidasse como uma das vozes
altissonantes da universidade brasileira, e de nossa cultura de uma maneira
geral. Autoridade que lhe permitia, inclusive, cobrar coerência de seus colegas
de Academia, e a ser duro nas críticas à apatia em que vivia a universidade.
No seu último escrito, um artigo publicado
pelo jornal Correio Braziliense, afirma que “por definição, vida intelectual e
recusa a assumir idéias não combinam. Esse, aliás, é um traço distintivo entre
os verdadeiros intelectuais e aqueles letrados que não precisam, não podem ou
não querem mostrar, à luz do dia, o que pensam. (...) A apatia ainda está
presente na maior parte do corpo professoral e estudantil, o que é sinal nada
animador do estado de saúde cívico dessa camada social cuja primeira obrigação
é constituir, como porta-voz, a vanguarda de uma atitude de inconformismo com
os rumos atuais da vida pública”[9].
***
Quando escrevi esse artigo minha filha
ainda estava viva. Em 2007 ela também se foi, para ficar para sempre na
memória. Certamente a palavra que usei no parágrafo anterior – reconfortar
- passou a ter um peso maior com a morte dela. Sigo tentando, mas é muito
difícil, afinal, embora seja mais fácil nos conformarmos com a morte de nossos
pais, pela ordem natural quando chegada a velhice - assim imaginamos – é
diferente quando perdemos um filho ou uma filha. Mas, sim, a morte não pode
desanimar aqueles que ainda não sucumbiram a ela e que carregam consigo a
utopia de um outro mundo, mais justo e solidário. Apesar das evidências
apontarem para o contrário, no coração da maioria prevalece esse sentimento que
embalou a vida dos que aqui homenageamos. Inclusive minha filha, que como canta
Gonzaguinha, carregava essa certeza na pureza de ser criança. A vida, ela
segue, a não ser para aqueles que já passaram por ela e nos esperam em algum
lugar.
(*) Este artigo foi escrito no mês de
junho de 2001, duas semanas após a morte de meu pai e de Milton Santos, um ano
de perdas pessoais e de abalos geopolíticos mundiais com o ataque terrorista ao
World Trade Center. Foi publicado nesse mesmo ano no Jornal Opção, de Goiânia,
no Jornal A Tarde, de Salvador em um suplemento cultural especial sobre Milton
Santos. Depois inseri o texto, com alguns reparos no Boletim Goiano de
Geografia, Vol. 21, n. 1. Em 2010 postei um resumo dele neste Blog. Agora
resolvi publicá-lo na íntegra para lembrar os 10 anos da morte desses dois
baianos que de maneiras diferentes foram personagens importantes em minha vida.
Um me fez gente como sou, o outro me aproximou da Geografia para sempre.
(**) 24 de junho de 2015. Volto a publicar
este artigo, quatorze anos depois da morte de meu pai, e de Milton Santos. O que
está dito aí não pode ser apagado. Eu relembrarei sempre nesta data.
Imagem 2 - www.tuliodiasartes.kit.net
Imagem 3 - obaudoconhecimento.blogspot.com
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