Estamos vivendo
um momento político carregado de enormes contradições, o que, aliás, não é
novidade na vida, muito menos na política. Para introduzir o assunto, apontemos
algumas raízes da confusão. O PSDB que surgiu das entranhas do PMDB,
aglutinando o que havia de progressista à época naquele partido (década de
1980), optando pela social democracia de estilo europeu, se vê hoje como
coadjuvante das ações de setores fascistas e da direita mais raivosa e
preconceituosa, tanto no DEM, como no PMDB. Mas também abriu as portas para
elementos desse tipo em suas fileiras. O que era social democracia virou uma
agremiação insonsa, sem passado e sem futuro.
O PT, também de
origem social democrata, com posturas sempre progressistas, rendeu-se ao
pragmatismo político típico de quem chega ao poder e tudo faz para não
perdê-lo. Abdicou de embates ideológicos mais profundos, passou a negar a luta
de classes e imaginou poder seduzir a burguesia jogando o jogo sujo que sempre
caracterizou a classe dominante capitalista. Ou as classes
dominantes. Cedeu aos setores empresariais, compactuou com as falcatruas
das grandes empresas e corporações, alimentou o veneno dos grandes
latifundiários do agronegócio e inchou as burras dos banqueiros. Da mesma
maneira, abriu as portas ao fisiologismo e perdeu quadros importantes que
mantinham posturas coerentes com sua história.
O resultado
desse "samba do crioulo doido", para usar uma expressão usada pelo
famoso humorista e político Sérgio (Stanislaw) Ponte Preta,[1]
popularizada na música cantada pelo Quarteto em Cy, e Demônios da Garoa, é que
tornou-se impossível prever para onde aponta as mudanças políticas no Brasil,
uma vez que esses dois mais importantes partidos perderam completamente suas
identidades, muito embora ainda possuam em suas fileiras e em seus programas
elementos que os identificam.
O trágico disso
tudo, para aqueles que lutaram por um país progressista e apto a disputar o
protagonismo da geopolítica regional e mundial, é verificar que estamos à beira
de um precipício, e em vias de marcharmos para a eleição de governantes
comprometidos com o fundamentalismo religioso, com ameaças reais e já em curso,
de fragilizar o estado de direito e com adoção de uma legislação fascista,
marcada pela intolerância e ataque às liberdades individuais.
O retrocesso já
está acontecendo, além da ameaça permanente de impeachment que paira sobre a cabeça
da presidenta Dilma Roussef. E pelo grau que atingimos, uma das formas de
conter essa degringolada seria apostando numa volta à razão desses dois
principais partidos. Algo absolutamente difícil, devido ao abismo que se criou
entre eles, fruto dos embates travados nos últimos anos e pela deformação de
suas fileiras, principalmente no PSDB, onde setores de direita passam a ter
atuação destacada, principalmente no Congresso Nacional. Ao contrário, o que se
vê é setores do PMDB flertando com o PSDB com o intuito de aplicar um golpe
mortal, destituindo a presidenta e apostando num governo do insosso Michel
Temer. Para delírio da direita.
Se a análise que
aqui faço for correta, e diante da impossibilidade de se concretizar um
reencontro desses dois partidos com os seus passados, só restará aos setores
progressistas prepararem se para um embate duro, semelhante ao que o país viveu
durante o período da Constituinte, em meados da década de1980.
Nas últimas
semanas tem sido articulada uma frente que visa aglutinar os partidos progressistas,
ou, além disso, até mesmo parlamentares ou militantes que se sintam
desconfortável com os rumos políticos de seus partidos. Isso por si só,
representa um fracasso, embora a medida seja necessária e importante.
Pois demonstra que os rumos que seguíamos foi bloqueado, e os desvios que se
apresentam à nossa frente nos encaminham para uma região pantanosa ou abissal.
Mas, evidente, não se pode ficar parado diante do que se avizinha e dos
retrocessos em curso, por isso a iniciativa é louvável, e quiçá possa seguir
adiante e se fortalecer.
Por isso do que
trato aqui é de reconstrução. Numa realidade absolutamente adversa, pois
a "opinião pública", se tornou adepta e defensora das pautas
reacionárias, abrindo espaço para retirar dos sarcófagos sicofantas que até
então encontravam-se no limbo, recuados, preparando suas oferendas para que
demônios os ajudassem a levar o país para o caos. Não foi preciso
demônios para isso. A crise era eminente, e sistêmica, e o governo ignorava que
seria impossível passarmos ao largo dela imune.
O tsunami que
atingiu o capitalismo em 2008 deixou aos escombros a maioria dos Estados Nação,
notadamente aqueles que rasparam fundo seus tesouros para livrar suas
corporações financeiras de uma possível hecatombe, o que poderia varrer todo o
sistema financeiro de maneira global. Com raras exceções, mas que mesmo assim
tiveram seus crescimentos reduzidos.
O Brasil surfou
bem na onda da crise, por causa de uma forte demanda interna, aquecida por
programas sociais e incentivos do Estado. Mas a redução das exportações, como
consequência da crise internacional, afetou o desempenho econômico brasileiro,
agravado pelo pessimismo criado por uma mídia que ao mesmo tempo omitia a
dimensão da crise, criando na opinião pública a sensação de incompetência do
governo federal independente dos problemas mundiais. Tudo isso se complicou com
as denúncias de corrupção envolvendo a maior empresa brasileira e uma das
maiores do mundo no campo da pesquisa e prospecção de petróleo. Devidamente
explorado pela mídia e setores oposicionistas, como deveria ser esperado.
A junção da
crise econômica mundial com a crise política brasileira teve acrescido outro ingrediente,
o descontrole das contas públicas, levando à necessidade de um ajuste que
afetou praticamente todos os avanços obtidos nos últimos anos.
A partir daí a
caixa de Pandora[2]
foi aberta e deixou-se retida a esperança, acabrunhada e reprimida, sem
perspectiva de se manifestar diante do pessimismo produzido pelos arautos do
caos e perversores da humanidade.
É preciso agora
resgatá-la, libertar a esperança antes que seja limitada e aprisionada, senão
como uma ditadura, mas com uma enorme probabilidade da ascensão de um regime
totalitário baseado em fundamentalismos religiosos fundado em um fascismo
moderno.
Mais do que um
enfrentamento político o que é preciso fazer é se bater de frente, em um
confronto ideológico, corajoso e imprescindível, demarcando campos e
esclarecendo a população sobre os riscos que se escondem por trás das ações
demagógicas de raposas que se disfarçam de pastores, com perdão do trocadilho.
Naturalmente o
rumo em que eu iniciei esse artigo se desfaz, simplesmente porque os que seriam
os protagonistas principais, pela força que detinham, perderam-se em meio às
suas crises identitárias. Ainda podem colaborar, mas no momento não se apresentam
como alternativas para nos conduzir a um outro patamar, com novos
posicionamentos políticos, diante da complexidade da atual crise. No caso do
Partido dos Trabalhadores, a existência de uma liderança inegavelmente
ainda com forte influência em meio às camadas populares, talvez não seja
suficiente para refazer seu caminho.
Não basta, nas
atuais circunstâncias eleger um ungido para impedir a vitória da direita
raivosa. É preciso mais do que isso, até porque é preciso garantir que não haja
golpe a té lá. Torna-se fundamental resgatar a credibilidade da esquerda,
reconstruir a esperança e apresentar elementos seguros, para a população, que o
caminho percorrido até aqui não pode ser bloqueado por comportamentos
retrógrados e elitistas. Retornar ao meio do povo, no entanto, implica em
convencê-lo que as medidas tomadas pelo governo não lhes afetará. Uma tarefa
bastante difícil, devido ao que se propõe o ajuste fiscal, além das taxas
estratosféricas dos juros, com a adoção de um remédio que fatalmente levará à
UTI o enfermo.
Estamos tal qual
um indivíduo posto em um enorme labirinto. Falta-nos o fio de Ariadne[3]
que nos garanta encontrar a saída com segurança. Até porque o governo
brasileiro está longe de ter a coragem que tem apresentado o governo grego,
batendo-se de frente contra a poderosa troika, que vem a ser o FMI, o Banco
Central Europeu e a Comissão Europeia, e evitando persistir em políticas
econômicas mais danosas aos cidadãos gregos.
Ademais, o
partido que dá sustentação à presidenta, encontra-se acuado, encostado na
parede por conta da incompetência em saber lidar com as enormes adversidades
existentes na sociedade brasileira, potencializadas pelas manifestações
populares desde 2013, alimentadas pela direita e por setores estrangeiros
vinculados às grandes corporações internacionais, principalmente aos Estados
Unidos. Mas, inegavelmente, por ter-se enredado nas mesmas contradições, como
dito anteriormente, o que significaria ter que cortar na própria carne e
refazer-se. Convenhamos, para um partido que está no poder isso significa uma
tarefa extremamente difícil, praticamente impossível.
Daí porque a
frente de esquerda que está sendo articulada pode vir a representar uma válvula
de escape para uma situação sem muitas alternativas. Com isso pode-se pensar
numa estratégia voltada para recuperar a credibilidade junto às camadas
populares e à juventude, mas não sem adotar uma postura aguerrida, ofensiva e
disposta a elevar o tom dos embates ideológicos, única condição de retomar o
caminho de esquerda que na primeira década deste século transformou a América
Latina.
Se vai ser
possível seguir esse caminho é difícil saber. Mas, retomar as ações que sempre
caracterizaram a esquerda brasileira e ter coragem de adotar atitudes firmes
frente à ofensiva reacionária, já podem significar passos importantes para
reverter a situação atual, e, acima de tudo, reconquistar apoio popular. Caso
contrário, o golpe que está sendo gestado desde o começo do ano será
concretizado, jogando o país em um enorme retrocesso e certamente em um maior
acirramento da política no Brasil. Tempos sombrios estão a nos ameaçar.
NOTAS
[1] Para
entender melhor o significado da expressão, e a composição de Stanislaw Ponte
Preta, recomendo o texto no link a seguir: http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S23.0275.pdf
O Samba do Crioulo Doido: a
carnavalização do samba-enredo e da História oficial do Brasil. Profa. Dra. Dislane Zerbinatti Moraes – USP.
[3] “Conforme
a mitologia Teseu, um jovem herói ateniense, sabendo que a sua cidade deveria
pagar a Creta um tributo anual, sete rapazes e sete moças, para serem entregues
ao insaciável Minotauro que se alimentava de carne humana, solicitou ser
incluído entre eles. Em Creta, encontrando-se com Ariadne, a filha do rei
Minos, recebeu dela um novelo que deveria desenrolar ao entrar no labirinto,
onde o Minotauro vivia encerrado, para encontrar a saída. Teseu adentrou o
labirinto, matou o Minotauro e, com a ajuda do fio que desenrolara, encontrou o
caminho de volta. Retornando a Atenas levou consigo a princesa”. (Desenrolando o fio de Ariadne: http://www.unicamp.br/~hans/mh/fio.html)
"Tristes Trópicos"! Rs
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