sexta-feira, 29 de maio de 2015

O MAL DA UNIVERSIDADE: A NORMOSE


“Com esse artigo pretendo demonstrar como o ambiente universitário é marcado por uma certa perversão, onde a competição impõe restrições para a existência de um ambiente fraterno e como, pelos critérios utilizados para avaliação dos docentes, a história daqueles que estão há mais tempo na universidade é relegada a uma nulidade. Sucumbimos diante de um produtivismo exacerbado e deixamos escapar oportunidades de debater temas cruciais para a melhoria da sociedade. Vivemos ensimesmados, metidos em uma redoma e preocupados com o nosso sucesso pessoal, onde a vaidade permeia e somos forçados a seguir regras rígidas que impedem que esse ambiente fuja da normalidade impositiva e nos permita ser criativos, críticos e inovadores. Não avançamos, paramos num tempo que já passou, comandados por uma ideologia neoliberal fracassada


Já abordei aqui nesse blog os mecanismos que impõe, por critérios que não aprecia a qualidade, uma camisa de força aos que porventura tentarem optar por fazer da atividade docente um estímulo à criatividade, ou a garantir que, com liberdade de cátedra, possamos sentir o prazer de inovar, criticar e produzir fora das chatices que nos impõe a rigidez das regras capesianas. E mais, podermos lidar com novas formas de conhecimento, que reflita a amplitude que deve ter, em sua totalidade, ao invés da fragmentada “renovação” pós-moderna, que nos enfiaram goela abaixo os neoliberais que deformaram essa instituição. Tornamos-nos “especialistas”, numa sociedade onde a maioria, de forma obtusa, acredita saber de tudo. E, paradoxalmente, essa mesma sociedade não nos vê como doutores. “Doutores” são outros.
Contudo, esses mecanismos não foram introduzidos de forma aleatória. Isso acompanhou toda uma transformação que levou a todos os cantos do mundo – ou a quase todos – a onda da globalização. Era preciso implementar, dentro da estrutura formadora da “inteligência”, elementos ideológicos que criassem uma geração de novos cientistas, adaptados a uma era movida à tecnologias cada vez mais sofisticadas. A técnica passou a ser o suprassumo que justificava principalmente a transformação da sociedade de rural em urbana. Mais do que isso, acompanhado de tecnologias que nos tornassem dependentes cada vez mais dos objetos, e de uma ideologia que não implicasse com esses novos comportamentos.
Ao contrário, os deslumbramentos gerados por essas mudanças viriam a tornar as novas gerações mais do que receptoras das ideias desse “novo mundo”, eles se tornariam preceptores, espécies de vigilantes do sistema. A Universidade não poderia ser local mais adequado para criar esses novos modelos de jovens pesquisadores, adestrados e adequados a uma lógica neoliberal, escorada no tripé: competência, produtividade e dedicação. A vida passava a ser adaptada a um novo modelo, cartesiano, produtivista e quantitativista. Uma vitória do positivismo.
O sucesso seria acompanhado de números e estatísticas comprobatórias do que seria você nos últimos cinco anos. E seria preciso, a partir de então, reinventar-se a cada ciclo, para não ser ultrapassado numa corrida cuja disputa só nos leva a um pódio, o do primeiro lugar. A competição passou a ser o motor desse novo modelo, mas a ausência de conteúdo e os limites da busca pelo novo, já que o sistema engessa a criatividade, afastou gradativamente a universidade da sociedade, tornando-a uma redoma, cada vez mais insensível aos problemas sociais.* A não ser pelo quantitativismo das análises estatísticas, devidamente comprovadas pelos argumentos de autoridades. Passou-se a repetir, por necessário, o que outras eminências já haviam dito, e assim sucessivamente. Criatividade, quase zero. Mas isso se tornou suficiente para criar “escolas” e a servir-se a si mesmo, enquanto grupos que se bastam, e que repetem seus fundamentos, enchiam-se de vaidades e deslocavam-se em trocas de indicações por ambientes em que se tornam repetitivas as suas presenças. Isso, no entanto, infla o ego e os faz imaginarem-se superiores em suas limitações fragmentadoras.
A maior perversidade, no entanto, é a destruição da história. A onda arrebatadora que pretendia uniformizar o mundo culturalmente, ou o consenso que se tentava impor por todos os cantos, precisava negar tudo o que significava a vida em processo. Com começo, meio e fim. E mais, que os fatos não se explicassem por suas causas, mas pela eminência do que eles poderiam representar no futuro. Mesmo que esse seja, como de fato o é, uma ilusão. Mas, por não ser um fato, abolia-se, assim, a sua história.
Nessa confusão pós-modernista pouco valor se passou a dar ao que construía nossa vida, ao que explicava o que somos, e a somatória de valores que conseguimos construir por décadas e séculos. Aqui se junta ao que já abordamos em relação à ciência e a tecnologia, a informação. O conhecimento passou a ser conduzido por aqueles que buscavam impor essa nova ideologia, e a se limitar às fronteiras do específico, abolindo a totalidade. Era satisfatório tornar-se autoridade em um assunto limitado, muitas vezes buscando-se explicá-lo por si próprio, completamente desprovido de dialética, portanto, alheio às contradições. Esse tipo de conhecimento encerra-se em si mesmo, é fragmentado e fragmenta-se cada vez mais na sequência da aderência de novos discípulos, que devem seguir disciplinadamente seus orientadores. Pode até mesmo dialogar com os mesmos, mas jamais contrariá-los, pois serão destruídos com o velho argumento da autoridade.
Desprovidos de memórias, achincalhando a história, nega-se o passado. Afirma-se um presente tênue, como naturalmente ele é em realidade, só que sua passagem significa também a construção do passado. E é este que pode explicar todas as transformações nas quais estamos envolvidos. Nossa vida no presente só se explica pelo que fomos no passado. Negar isso é abdicar de procurar respostas para as contradições que movem o mundo. Relegar nossa história de vida aos últimos cinco anos é impedir que tenhamos uma visão holística do que somos e do que fizemos. E o que fizemos é o que garante a possibilidade de conhecer o que somos.
A história tem sido negada permanentemente desde que o neoliberalismo se espalhou pelo mundo. E a onda tecnológica, de informações rápidas e resumidas, essência da globalização, produziu uma geração de estúpidos com comportamentos de gênios. Vaidosos, pelo domínio de conhecimentos compartimentados, fragmentados, assumem-se como competentes em seguir rigidamente as regras que lhes são impostas. Isso garante a ascensão na carreira e a condução para um novo patamar de melhores salários, tudo isso resumido em impiedosos adjetivos: competitividade e mérito. É a absoluta vitória da essência do sistema capitalista, a meritocracia como condição de nos elevarmos a posições de destaques e de melhorias sociais. Os que assim não agirem, de forma a atingir esses píncaros da glória, amargarão eternamente a pecha de incompetentes e de acomodados – e por aí se justifica as desigualdades sociais. Muito embora alguns desses carreguem em suas histórias trajetórias que valem muito mais do que as estatísticas quantitativas de produções medíocres. Ou até mesmo de alguma validade, mas que não são compreensíveis dentro de uma noção que nega o processo que a torna parte de um mundo muito mais abrangente.
Prosseguirei nessa inabalada posição crítica, sem, contudo querer negar a importância da Universidade como produtora do conhecimento, da pesquisa e da formação profissional. Mas de uma Universidade que não se descole da sociedade, e que contribua com esta na correção de rumos que aponta a humanidade para um futuro de relações frias, cada vez mais individualistas, porque assentadas na competição. Uma universidade que resgate a capacidade de discutir e debater os problemas sociais não somente identificando as causas de seus desvios sociais, econômicos, éticos e morais, mas apontando, concretamente, formas de romper com o que se apresenta como nosso destino, disseminado por um ideólogo conservador, pelo qual estaríamos fadados a ver no capitalismo o fim da história.[i] Por uma Universidade viva, que não tolha a liberdade de pensamento e a criatividade dos que desejem inovar e produzir de acordo com as metodologias que lhes convier, e não somente aquelas apontadas e indicadas por supostas cabeças ilustres e especialistas que buscam uma visão cada vez mais limitada de seus próprios umbigos. Fecham-se em copas e refugam o novo, a novidade, a crítica e a capacidade de compreender a vida como um processo contínuo e dialético. Aliás, até a própria dialética tem sido questionada como um método de produção do conhecimento.
Há alguns anos, pouco tempo atrás, em meio a conflitos causados por abalos emocionais, de perda de motivação para prosseguir na luta política em função da morte de minha filha querida, para sempre lembrada por mim com muitas saudades, mas também para sempre uma companhia que estará ao meu lado eternamente enquanto eu viver, eu escrevi aqui mesmo neste blog que me afastava dos embates políticos. Creio ter superado aquele momento. Reencontro-me com motivos e razões para retomar aquelas forças perdidas. 
Vivemos um momento de desesperanças e diante de uma crise que afeta o sistema capitalista em todo o mundo, sem muitas perspectivas que não as guerras. Saio de minha posição, de um conforto que me causava incômodo e de uma decisão de me dedicar ao trabalho acadêmico. Percebi que não tenho o perfil de um indivíduo acomodado, neoliberal, disputando a bíceps espaços demarcado pelo produtivismo estéril. Retorno ao ambiente que me formou, abdico de me consumir pela neurastenia que tem impregnado a Universidade, cuja patologia já tem até um nome, normose, pela qual os indivíduos aderem de forma doentia aos valores que se apresentam na sociedade, sem questioná-los, e a incorporarem como normais.[ii] Eu diria que esse é o caminho que a sociedade tem tomado, e a adquirir uma enfermidade perversa, que acomete o sistema cerebral dos indivíduos e os fazem esquecer-se de quem é e de seu passado. A isso eu dei um nome: “mal de Alzheimer social”.
Contra esse perfil de Universidade, e a fim de combater a mesmice e os que se julgam suprassumos desse sistema marcado pela perversão, volto a me engajar numa luta que já travo desde os tempos de estudante, em um momento de profunda crise, em que perdemos direitos, redução de verbas e vemos avançar medidas que retroagem no tempo. A Universidade precisa estar atenta a essas transformações, e por isso torna-se necessário quebrarmos a redoma na qual a universidade brasileira se fechou e enfrentarmos o desafio de lutar por mudanças mais uma vez, mesmo que de imediato tenhamos apenas que manter aquilo que conquistamos nos últimos anos.

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NOTAS:
* Universidades ou fábricas? - http://www.cartacapital.com.br/revista/850/universidades-ou-fabricas-253.html
[i] Fukuyama, Francis. O Fim da História. Rio de Janeiro: Rocco, 1992

3 comentários:

  1. Romualdo, não consigo colocar meu comentário! Escreva que mando o texto completo: sperb.leite@gmail.com

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  2. Professor, um texto magnífico, assim como os outros artigos!! Como docente da educação básica, penso que na universidade a disputa de egos é ainda mais acirrada... Talvez pela necessidade de se ter o nome em contínua evidência...
    Abraços e mais uma vez parabéns pelo brilhante artigo!!!!!!

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  3. CORRETO, MUITO TÍTULO E POUCA HUMANIDADE...FALTA HISTÓRIA E A DIALÉTICA NUM MUNDO CADA DIA MAIS PRESO E INDIVIDUALISTA...

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