Há uma música, cantada por Geraldo Azevedo,
feita em parceria com Fausto Nilo, que incluo entre as mais belas da MPB, e ela
faz me lembrar de tempos agitados em meu período de militância política estudantil
e das odisseias nas quais me envolvia, aos finais de semana, percorrendo bares
onde amigos musicais cantavam. Essa era, seguramente, uma das músicas mais
pedidas: Chorando e Cantando. “Quando Fevereiro chegar/ Saudade já não mata a
gente/ A chama continua/ No ar/ O fogo vai deixar semente/ A gente ri a gente
chora...”. Some-se a isso o fato de eu ter nascido no mês de fevereiro, e eu me
deparava com a música que mexia comigo, sob vários aspectos. O tempo passou, e
essa música permanece, mais ainda, a mexer com meus sentimentos, e acentua as
minhas lembranças. Consequentemente a saudade de um tempo que, naturalmente,
não volta mais. A não ser em nossa memória.
Desde há oito anos, quando perdi
minha filha, num fatídico dia 13 de dezembro, muita coisa mudou. Por mais de
três anos, a dor profunda gerou angústia, depressão, tristeza, um enorme vazio
como se um pedaço de mim tivesse se separado – e foi –, me manteve anestesiado.
A perda de uma filha gera uma dor que não tem cura. Carregamos para o resto da
vida.
Foram dez anos que não se apagam, o
tempo em que ela viveu, e se manifestam de formas diferentes em uma infinidade
de lembranças. As músicas, os programas de TV, as fotografias, o quarto, a casa
como um todo por onde a alegria, e a bagunça, sempre são marcas de crianças,
tudo isso são situações, objetos e instantes que agem como flashes em nossa
memória.
Nada, contudo se compara ao se
aproximar do mês de dezembro. Daí a relação com a música de Fausto Nilo e
Geraldo Azevedo. Parafraseio, inverto a letra, e aplico-a na realidade que
vivemos todos os anos: “quando dezembro chegar, saudade já não mata a gente, a
gente ri, a gente chora, a chama continua, no ar”.
Dezembro é um mês torturante para
mim. Para nós, que perdemos Carol nessa data, mas, creio, para todos que passam
por situação semelhante a nossa. Porque dezembro não é um mês comum, como
fevereiro, embora tenha sido esse o mês que nasci, e que tem um simbolismo
pessoal presente nele. Até porque nasci no dia em que meu pai fazia
aniversário.
Mas o mês de dezembro carrega todo
um simbolismo, reforçado por uma cultura consumista, mas cujos valores e
tradição já vêm de outros séculos, ou milênios. O capitalismo potencializa
isso, e mexe estressantemente com os desejos, criados pela necessidade do
mercado em fazer explodir a explosão de consumo. Um frenesi toma conta das
pessoas, liberando uma alegria naqueles que conseguem se enquadrar nessa lógica
e fazer realizar seus desejos de gastança. Mas, por outro lado, gera um enorme
desconforto, e causa depressão, quando esse sentimento é tolhido
impossibilidade de gastar, ou, mesmo que movido por um sentimento honesto,
compartilhar presentes entre as pessoas das quais se gostam.
Essa realidade presente nesse mês
transformou-se em um imenso vazio. Dezembro não desaparece, seria impossível
isso, mesmo se o desejássemos, mas ele tornou-se torturante em nossas vidas, e
para mim ele não se faz, se desfaz. A cada dia que se aproxima da data em que
minha filha morreu, sinto aumentar minha tristeza. O dia 13 deixou de existir
por todos os anos que se seguem à sua morte. Ele sempre será aquele 13 de
dezembro de 2007, quando de forma brutal pudemos observar pela última vez,
materialmente, nossa pequena Carol. A sua última imagem, em vida, a qual não
gostaria jamais de lembrar, e por muito tempo apaguei de minha memória, embora
ela sempre volte à minha lembrança, foi em seus últimos momentos e suspiros,
num leito da UTI do Hospital da Criança. A leucemia ceifara sua vida, sem que
lhe fosse dado tempo para lutar e tentar reverter uma situação pela qual muitas
crianças passam e conseguem superar. Mas, no caso dela, foi fulminante. E
apagou para sempre o dia 13.
Eu já não me empolgava muito com as
festividades deste mês, embora me envolvesse em comemorações com familiares e
amigos. Depois da morte da Carol dezembro tornou-se um mês chato, insuportável,
triste e depressivo. Nos três anos em que me vi tolhido por uma depressão, meu
comportamento era sofrível, e me via acuado pelos cantos a chorar, revoltava-me
com a vida e com a insuportável inversão de ter visto minha filha ser
sepultada. Superei isso, me recuperei da depressão, mas não da tristeza que me
invade o coração nessa época, mais do que nos demais meses do ano. Talvez mais
próximo da tristeza que sinto no mês de março, quando ela nasceu.
O que mudou foi a forma de
explicitar isso. Com o tempo, as lembranças vão ficando somente nossas, alguns parentes,
amigos e amigas, que naturalmente vivem suas rotinas e realidades pessoais e
familiares, já não compartilham como antes esses momentos tristes que sentimos.
Isso torna mais silenciosa a nossa dor. Mas ela não é menor, apenas sabemos
melhor controlá-la, por entender que nossa vida continua. Contudo, a tristeza,
que não pode ser confundida com depressão, é um sentimento que carregamos
sempre que perdemos alguém que amamos muito. Mas a dor de perder um filho ou
uma filha é muito profunda, somente quem passa por um trauma desses tem a noção
de tamanha dor. E isso é algo que não imaginamos para ninguém.
Por isso a contradição presente
nesse mês torna-o muito amargo. Se não posso apagá-lo, não desejo sua
proximidade, e desejaria que o tempo que o faz passar fosse mais acelerado do
que para os demais. E se o dia 13 é tão somente uma repetição de um único, que
não se apagará jamais de nossa memória, o dezembro e suas festas consumistas
capitalistas, é torturante. Não há alegria para mim, por esses dias. Sinto-me
mal quando circulo pelas ruas, repletas de correrias das pessoas ávidas por
consumirem. Sou tomado por mais contradições, pois sinto ser um pouco egoísta
na minha dor. É como se eu invejasse a alegria desses momentos que tomam conta
delas.
Mas não é o que eu desejo. Cada um
vive a sua vida, a sua maneira, com seus valores culturais, impulsionados pela
religiosidade, ou pela lógica que o sistema capitalista impõe. E é preciso
vivê-la, intensamente, malgrado as circunstâncias e a lógica que nos move. A
minha dor não pode ser sentida por outros, não posso desejar isso, e não
desejo. Apenas preciso desabafar. A proximidade com a data da morte de minha
filha me angustia e me entristece. Conviver com isso, em meio a uma data que
resplandece, por qualquer que seja a razão, alegria e outros sentimentos
positivos, só faz aumentar esse dilema e tornar dezembro um mês insuportável.
Por isso digo sempre aos amigos,
que o ano acaba para mim, sempre, quando começa dezembro. Desejo que ele
se encerre o mais rápido possível, embora isso não resolva o problema das lembranças, das saudades, e da falta que sinto da Carol.
Só é algo irrefreável em meus sentimentos. Por mais que em determinados
momentos eu procure me cercar de amigos, e demonstrar alegrias, o recolhimento
em minha casa, onde por todos os cantos suas lembranças estão
presente, faz com que em me transporte para aquele mês de 2007, quando em seu
começo os dias de minha filha foram se encurtando, até desaparecer
definitivamente no dia 13.
Foi sozinho em minha casa
em um domingo chuvoso e escuro, quando escrevi essas palavras, e isso era o que me povoava a mente. Vejo em minha frente o retrato de minha filha, mas a reforma em minha casa impede que uma árvore de
natal que ela ajudava a montar desde quando meu pai era vivo, até 2001, possa nos animar um pouco. Sempre seguimos a tradição de montar a velha árvore mesmo depois da morte dele, e
jamais desejei substituí-la. E, em seguida, após a morte dela mantivemos o hábito. Procuro ainda algum canto para colocá-la. Porque, mais do que a mística que cerca esse
objeto, e com todas as minhas objeções, para mim ela representa a alegria que
minha filhinha sentia ao montá-la. Por isso ela esteve sempre enfeitando nossa
casa, nesse mês que não mais acontece, mas existe, por quanto tempo for isso
possível.
2ª Edição, lançada em 13/12/2014 |
Finalizo me lembrando de mais uma música:
Ao final,
acrescento um dos poucos vídeo que tenho gravado, de minha filha, em um momento
descontraído ao lado de uma tia, também já falecida, na cidade de Salvador, no
verão de 2006, em nossa última viagem antes de sua morte. É a primeira vez que
compartilho esse vídeo. Por muito tempo, custava-me assisti-lo. E sempre
lamentei não ter outros que pudesse me fazer aplacar a saudade que sentimos da
pequena Carol.
* Esse artigo foi publicado no final de novembro de 2014. Reedito agora, em dezembro de 2015, com algumas pequenas atualizações.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirProfessor Romualdo: um texto brilhante que mexe com os sentimentos do leitor! Obrigado por compartilhar conosco o desabafo de um pai saudoso de sua filhinha e o vídeo. Confesso que não contive as lágrimas. Abraços!!!!!!!
ResponderExcluirObrigado Fernando. Tem sido assim minha maneira de suportar as saudades. Abraços.
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