“Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu”
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu”
Vinicius de Moraes – “Como dizia o Poeta”
Quem de nós não chegou a certo tempo de sua vida e não precisou olhar para trás, a fim de poder refletir sobre o presente e indagar o que pode reservar o futuro? São momentos em que precisamos tomar decisões que são baseadas em múltiplas complexidades vividas no presente, verdadeiros turbilhões de sensações e sentimentos que afetam e alteram nossas vidas. Quase sempre, nessas circunstâncias o impulso de todos é olhar para o futuro, diz-se sempre que “é preciso olhar para frente”. A meu ver um equívoco. O futuro é uma construção, ele existirá de conformidade com as decisões que tomarmos no presente.
Há uma música belíssima, de Paulinho da Viola, em cuja frase ele sintetiza esses elementos que para mim são fundamentais para a construção que pretendo fazer nessa crônica: “meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado, quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado” (Dança da Solidão).
Ainda buscando uma referência de qualidade neste mesmo compositor, do qual eu sou um grande admirador ele diz, ao final do DVD “Paulinho da Viola – Meu tempo é hoje” (espetacular!): “Wilson Batista é um dos meus compositores preferidos. Ele tem um samba com um verso que diz, ‘meu mundo é hoje não existe amanhã para mim’. Eu costumo dizer, que meu tempo é hoje, eu não vivo no passado, o passado vive em mim”.
Vivi momentos intensos em minha vida. Às vezes por impulso, influenciado por amigos (bons amigos, razão pela qual não me arrependo de suas influências), e ressalto que uma das qualidades que me orgulho é de sempre ter escolhido bons amigos.
Suas influências, portanto, foram positivas. Mas, sempre tive a capacidade de tomar posição, de criticamente analisar cada situação e assumir sem receios decisões que definiram um lado a me situar. Nunca tive receios em assumir tais responsabilidades e de torná-las públicas. Por muitas vezes fui criticado por isso, mas fazia parte de minha personalidade. Nunca me acovardei diante das idéias e posições que tinha que assumir e procurei esgrimir, sempre, aqueles argumentos que para mim eram definidores dos meus posicionamentos. Isso tanto no cotidiano de minhas relações afetivas e pessoais, quanto da minha escolha e militância política. Os que me conhecem podem atestar isso. Mas aqui separarei esses dois momentos, primeiro o político, depois o pessoal e afetivo.
Mas, depois de 30 anos de militância política, sempre num mesmo partido, e diante das circunstâncias criadas pelas complexidades da vida, algumas naturais, outras porque nós mesmos as complicamos, pelas escolhas que fazemos, algumas dúvidas e questionamentos se avolumam e nos deixam em permanente conflito. Isso nos leva a tomar posição. Algo que, como eu disse anteriormente, jamais deixei de fazer.
Isso me permite dizer, com segurança, que meus tempos de militância política se esgotaram. Não sei se pelos percalços deixados pelos acontecimentos que afetaram minha vida, pelos desânimos e/ou decepções causadas por determinadas frustrações sobre os rumos daquilo que sempre acreditei, ou quem sabe por uma somatória de tudo isso.
Mas desde algum tempo tenho sido fortemente influenciado por um dos maiores intelecuais brasileiros, que aprendi a admirar quando passei a ter contato com o mundo dos geógrafos, Milton Santos. Sempre me martelou uma de suas frases para mim mais significativas na definição da intelectualidade, dentre tantas outras: “Ser intelectual é exercer diariamente rebeldia contra conceitos assentados, tornados respeitáveis, mas falsos. É, também, aceitar o papel de criador e propagador do desassossego e o papel de produtor do escândalo, se necessário” (Revista Adusp, outubro de 1997).
Não que eu queira me incluir arbitrariamente como intelectual, mas acredito freqüentar esse ambiente formador dessas definições, e exercer eventualmente determinadas situações que podem me condicionar para tal, independente do grau de qualificação que me seja dado.
É assim, então, seguindo os exemplos de Milton Santos, que pretendo me posicionar. Sem jamais abdicar de meus posicionamentos ideológicos, forjados após anos de militância marxista, que encontra na dialética e no materialismo as respostas para o entendimento do mundo e da complexidade que o forma e o cerca.
Declaro, portanto, a partir deste momento, encerrada a minha militância político-partidária, sem me arrepender em um momento sequer de minhas escolhas e dos embates nos quais me envolvi, sempre com muita paixão, dedicação e garra. Nesta encruzilhada, o caminho que escolho é o da independência partidária, mas seguirei firme no rumo da minha definição ideológica: marxista e materialista.
Mas nossos destinos não são traçados apenas por decisões políticas. Talvez mais complexas do que essas são as que construímos em nossas relações pessoais, mas também igualmente carregadas de contradições. E as alterações desses rumos são muito mais complicadas e não dependem de simples escolhas, de qual o caminho temos de seguir quando nos deparamos em uma encruzilhada.
Aqui as decisões dependem muito de uma série de fatores, e quaisquer que sejam elas possibilitam desencadear uma infinidade de conseqüências porque enredam nossas vidas em tantas outras. Vividas desde o passado, construídas por paixões, amizades, amores possíveis e impossíveis. Mas envolvem valores culturais, tradições e rotinas que estabelecemos ao longo de décadas em que formamos nossos ambientes familiares, ou dos quais não pudemos nos afastar muito.
Contudo, não há nada mais passível de alterar nossas vidas, seja em relação à nossa personalidade, ou na formação de nossa família, do que a perda de uma filha. A partir disso há uma desconstrução e reconstrução forçosa de nossas vidas. Perder um filho, como já disse em outras oportunidades, é perder a perspectiva do futuro, pois é nele que construímos nosso amanhã, vivemos para isso a partir de suas existências. Não existimos mais para nós, individualmente, mas para eles. O eu desaparece, quando aparecem os filhos. Somos nós, são partes de nós mesmos. Ao perdê-los, por morte, antes que partamos, perdemos por certo tempo os rumos que sempre imaginamos para nossas vidas.
Mas, conta-se na vida também não somente as partidas. Mas ao seguirmos em frente, apesar das adversidades, das frustrações, dos momentos depressivos pela perda de um filho, nossas vidas vão adiante, em ritmos e sensações diferentes. Mas o universo ao nosso redor não muda tanto quanto sentimos intimamente. Nossos amigos, as pessoas que nos cercam e convivem conosco a rotina de um cotidiano do qual não podemos sempre fugir, seguem nos observando com olhares sutis, companheiros, às vezes, dependendo da sensibilidade de cada um, com carinho e admiração diante do enfrentamento de determinada tragédia.
As pessoas têm olhares diferentes para o mundo. Às vezes não têm sequer dimensão do que acontece ao seu redor. Algumas se entregam ao sobrenatural, às crenças jamais improváveis, mas cuja fé as deixam plenamente cientes de que não há fantasia, há realidade. Confunde-se, então, o irreal com o real, e transpõe-se para um mundo distante daquele que o cerca.
Há, contudo, outras pessoas, cujos sentimentos são plenamente incorporados de amor e carinho, e transferem isso muitas vezes para quem luta, sofregamente, por sobreviver após tragédias que alteram não somente vidas, mas também individualmente, pessoas.
Ao invadir nossas vidas, com esses sentimentos, essas pessoas também afetam sobremaneira nossa relação com a vida e com as pessoas que nos cercam. Vivi e vivo isso intensamente.
Busquei no ambiente do meu trabalho, seja com alunos ou colegas, suportar todos esses conflitos gerados pela perda de minha filha. Tornei-me mais tolerante na relação com meus “discípulos”, para usar uma expressão muito comum na época de Karl Marx. Procurei compreender as dificuldades que cada um de meus alunos carrega, porque são seres humanos, e tanto quanto no meu caso, sujeitos a se depararem com momentos de conflitos e sofrimentos. Mas, mesmo nos momentos mais difíceis em que vivi, sem jamais abdicar da seriedade e responsabilidade que me é dado como mestre.
Em alguns casos, no entanto, as relações confundem-se, da amizade para sentimentos mais complexos, embora carregados de nobreza, e muitas vezes nos colocam frente à dilemas que não dizem respeito somente às nossas escolhas, ou à decisões individuais, mas afetam sentimentos fortes, paixões, que mexem com nossas rotinas e maneiras de ser e viver. Põem-nos diante de muros, muralhas, que transpô-las pode significar surpresas às vezes indigestas, ou quem sabe, não, mas indecifráveis.
Os sofrimentos, ou sacrifícios, fazem parte da cultura judaico-cristâ. Assim se conta a história dos mitos que definiram a maneira de ser do mundo ocidental. Por isso o sofrimento atrai as pessoas e estimulam sentimentos de compaixão e solidariedade. Assim, nos tornamos reféns de nossas próprias tragédias, e muitas vezes não sabemos discernir quando nos confrontamos com determinadas situações em que paixões e compaixões confundem-se, ou nós mesmos confundimos porque não sabemos identificá-las.
E, fragilizados, diante das circunstâncias que nos cercam e tornam nosso futuro indecifrável, sucumbimos às sensações motivadas por amores e carinhos determinados por essas identidades. Mas isso muitas vezes nos coloca diante de outra encruzilhada. Já não se trata de uma escolha política, mas de uma decisão movida tanto pela racionalidade como também pelo coração. São razão e emoção, definindo as escolhas que selam nosso destino.
Cabe-nos então, retornar às questões postas no início dessa crônica, e relembrar a frase de Paulinho da Viola, “não vivo do passado, o passado vive em mim”. Isso torna difícil qualquer escolha que queiramos fazer, porque representaria retirar o passado de dentro de nós, e dificultaria a definição sobre qual caminho devemos seguir nessa encruzilhada que, permanentemente, a vida prepara para cada um de nós.
Por fim, uma dúvida que surgiu no decorrer da elaboração desse texto. Acredito ou não no destino? Para mim o destino é o acaso. Portanto, considero natural que o acaso seja considerado quando pensamos na maneira como nossa vida vai sendo delineada.
Ora, não vivemos sozinhos, isolados, no mundo. Fazemos parte de uma realidade extremamente complexa, onde vidas se entrecruzam permanentemente. Seria improvável acreditar que em meio às redes que determinam as rotas que seguem nossas vidas, nada pudesse se “enredar” de tal maneira que não fosse suficiente para alterar esses rumos, independente de nossa vontade.
Temos nossas escolhas, inegavelmente. Mas a vida, às vezes, prepara armadilhas das quais temos dificuldades de nos desvencilharmos. Aí, nesse embate entre razão e emoção, podemos sucumbir ao destino, ou ao acaso, que a vida nos reserva, e perdemos a condição de traçá-lo. Somos carregados por ele.
Para finalizar, ainda inspirado em Paulinho da Viola, cito uma frase de uma belíssima música dele, como tantas outras, para resumir essa relação com o destino: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”.
Muca,
ResponderExcluirMeu amigo, imagino o quanto você deve ter lutado com a consciência para chegar às conclusões que chegou. Você, com toda certeza, não abdicou do seu passado. Ele está tatuado na memória. Mimetiza-se na pele. Assim sendo, é a tua matéria.
Você tomou consciência de um ciclo que se encerrou. É preciso coragem para reconhê-lo. É muito cômodo permanecermos na zona do conforto. Ultrapassar pontes gera ansiedade, medo. Parte-se em busca do desconhecido. É como se fôssemos palmilhar novos territórios, virgens e inexplorados.
E a vida segue. Muitas vezes nos pregando peças. Não podemos ser meros observadores passivos. Esse figurino não nos serve. É por isso que nos insurgimos contra "destinos previamente traçados". Guimarães Rosa nos alertava: "Viver é perigoso". Temos que driblar os perigos da vida.
Temos a mesma afinidade musical. Não me canso de ouvir Paulinho da Viola. É o esteta do samba. Diria mais: é o filósofo do samba. "Não sou eu que me navega, quem me navega é o mar". A isso, acrescento o verso de Fernando Pessoa: "Navegar é preciso. Viver não é preciso".
Quantas possibilidades deixaríamos de concretizar se nos contentássemos apenas com os portos seguros. Bem-vindo ao mar. É chegada a hora de novas aventuras. Pode olhar para o retrovisor. Mas o horizonte é desafiador. Viver, sem medo, vale a pena.
Um abraço do amigo,
Francisco Barros
Amigo Romualdo, li atentamente seu texto desabafo, sei da dor e de sua dificuldade. Sei o quando difícil foi para terminar concluindo com essa sua decisão. Mas acho que esse pode acabar sendo um caminho natural.A vida é muito dura e difícil para quem não quer passar pelo mundo só de passagem.
ResponderExcluirVocês sofrem sobremaneira a perda da pequena Carol e não poderia ser diferente devido sua ida ter invertido a ordem natural das coisas, mas, como já lhe disse; repito, maior que a dor sofrida, você (s) devem realizar esforço maior ainda para superá-la, a vida tem que seguir seu curso, amigo.
Referente a sua militância, conhecendo como lhe conheço há muito, o formalismo fica apenas no comunicado, porque a militância está na sua pele, lhe é inerente, é como arroz e feijão, como Pedro Rocha e Mirandinha; não dão certo separados, por um fato simples,porque você não admite injustiça e não foge de uma boa ou má discussão política ideológica com amigos ou adversários.
Estamos sempre presentes e a disposição. Apesar da calvice cada dia mais acentuada rsrsrsrsrs.... Arriba baiano porreta.
Carlinhos/Patrícia
Muca....
ResponderExcluirToda minha energia positiva pra vc e Celminha e Iago... Amo muito vcs...
Bjs Adriana
Faço minhas as palavras de Carlinhos.
ResponderExcluirCaro "Mukail", o calor de suas palavras diante de um debate fervoroso, jamais deixará de existir.
A militância política pode parar, mas o ideal que você defende, não.
Bj.
Ana Cristina
Romualdo, meu querido,ainda que não-cotidiano amigo, imagino o processo intensamente amoroso, reflexivo e impactante em sua vida que precedeu a postagem deste texto.
ResponderExcluirSe me permite dizer, sua assinatura está e estará sempre em cada prato de alimento, cada nova casa, cada formatura, cada situação de respeito à diversidade humana, cada lei que reflita caminhos para novos movimentos democráticos, cada sorriso de novas perspectivas no mundo... porque por onde sua preferência traçar seus caminhos, ali está e estará uma pessoa incansavelmente generosa!
beijos
Marina Sant'Anna