
Eu destacaria a palestra da Profª Ana Fani Alessandri, que soube tratar bem o tema proposto e procurou construir sua intervenção dentro de uma linha que pudesse nos fazer entender todo o processo de transformação das metrópoles, partindo de uma abordagem do espaço, numa compreensão marxista e lefebvriana, mas indo além e construindo novos caminhos interpretativos para além do economicismo e resgatando aspectos esquecidos em Marx que dizem respeito às questões sociais. Principalmente, apresentando uma conceituação mais trabalhada da categoria lugar, utilizando para isso de releituras de Marx e Lefebvre sem simplesmente repeti-los, mas criando uma nova conceituação que possa melhor equilibrar as abordagens economicistas e de análises do cotidiano, possibilitando uma ênfase maior ao social.
Mas não é propriamente sobre a palestra de Ana Fani que quero analisar neste blog. Mas sobre a conferência proferida pelo Prof. da UFRJ, Marcelo Lopes, com a temática bastante sugestiva intitulada: “Desafiando a militarização do espaço urbano: Práticas espaciais insurgentes versus espaços-prisão no capitalismo en fin de siécle". Em primeiro lugar quero elogiar o trabalho investigativo apresentado pelo Prof. Marcelo, com dados importantes que demonstram uma competência indiscutível na identificação dos problemas que hoje afetam as metrópoles com as pessoas aprisionadas a um medo generalizado que força-as a buscarem apoio na estrutura policial do Estado, fortalecendo dialeticamente os mecanismos tradicionais de controle. Ao mesmo tempo ele busca identificar as alternativas encontradas pelos movimentos sociais no sentido de se contrapor aos mecanismos adotados pelo Estado que privilegia a especulação imobiliária em detrimento dos princípios básicos, inclusive constitucionais, que garantem a cada cidadão o direito à moradia.

Mas minhas divergências às concepções apresentadas pelo prof. Marcelo Lopes aparecem na medida em que seus estudos apresentam muito mais um caráter crítico, embora com um diagnóstico preciso, sem, contudo, apresentar alternativas aos problemas indicados em sua exposição. Algo, aliás, bem peculiar na Academia, onde se julga ser suficiente a abordagem investigativa crítica, cujos projetos indicam o problema, mas se abstêm de apontar soluções para os mesmos.
Ademais falta em suas exposições uma clareza mais processual de toda a complexidade que envolve a maneira como as cidades foram sendo segmentadas, separadas em territórios primeiro seguindo a natural lógica da luta de classes, e a partir daí a ocupação pela marginalidade de áreas abandonadas pelo poder público, na medida em que não atendiam aos interesses especulativos da indústria imobiliária. Nada de novo, se considerarmos a história das cidades, e principalmente se nos concentrarmos no momento em que as transformações urbanas atendem aos novos interesses capitalistas, mais especificamente do século XIX em diante.
Tenho em minhas participações nos eventos mais recentes, indagado com ênfase sobre quais seriam as alternativas que teríamos aos problemas que apresentamos naqueles trabalhos que estamos desenvolvendo. Evidentemente que nossas pesquisas buscam um diagnóstico, a confirmação de hipóteses que levantamos nos objetos das pesquisas que investigamos. Queremos saber o porquê desses problemas e, portanto, identificamos hipóteses que nos cabe no decorrer de nosso trabalho comprová-las. Ou não. Às vezes pode ocorrer de nos depararmos com algumas complexidades que tendem a redirecionar o nosso olhar e terminamos por avançar em outras direções, comprovando outros elementos que inicialmente não estavam bem clarificados.
Contudo, quando lidamos com problemas urbanos – e poderiam ser tantos outros relacionados à cidade – até mesmo pelo próprio caráter da formação do geógrafo, nos cabe muito mais do que o mero estudo e a identificação do problema. Na medida em que analisamos situações que envolvem populações, no caso específico historicamente situadas em condições periféricas (e aqui não importa se as favelas do Rio estão situadas entre bairros nobres centrais, o sentido de periférico diz respeito à marginalização a que sempre foram submetidas pelo poder público), é fundamental que não nos prendamos no discurso fácil, da crítica pela crítica, da arrogância intelectual para o qual determinados problemas terminam por constituir-se em ótimas oportunidades de desfilarmos nossa empáfia acadêmica.
É nesse laboratório sobre o qual nos debruçamos e produzimos uma infinidade de textos e livros. Mas sem sequer apresentar uma única alternativa aos projetos e programas do Estado que estão sendo criticados. Satisfaz-se, assim, com os tradicionais aplausos e a orgulho envaidecido e esquerdista de haver sido contundente na crítica ao Estado, algo que faz muito sucesso na academia. Mas, o que fazer?
Assim se comportou o professor Marcelo Lopes, quando levantei alguns pontos falhos em sua exposição e o questionei sobre qual alternativa ele apontaria às UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora), visto por ele como mera ação militar, o que é apenas parte da verdade. Sua resposta à minha intervenção demonstrou uma incapacidade em lidar com o contraditório, em aceitar a crítica, bem como o seu despreparo em apontar outros caminhos que possam ser utilizados pelo aparelho estatal, de forma a evitar os desatinos, comuns quando se trata de reprimir populações. O que é comum não significa dizer que seja aceitável, mas representa a lógica sistêmica de estrutura que existem para tal fim.
Por essa razão quis incluir na estrutura do raciocínio do professor, um pouco de dialética, que embora citada por ele não fora implementada em seu discurso. Bem como a necessidade de se buscar na história o sentido de tudo aquilo que está por trás de ações dos aparelhos militares. O que eu pretendia era reforçar a necessidade de sempre compreendermos que existe uma lógica sistêmica que responde pelo nome de capitalismo. E que, apesar de no título de sua conferência constar a expressão “capitalismo fin-de-siècle” faltou a ele explicar com clareza que nada disso é novidade, salvo as novas estratégias adotadas para reocupar ou retomar territórios urbanos dominados seja por gangs de traficantes, de grupos étnicos imigrantes, de prostituições, ou simplesmente por pobres que “enfeiam” a paisagem das cidades, principalmente em zonas centrais ou próximos à áreas de interesses turísticos. O que impedem a valorização e especulação imobiliária.
O capitalismo de fim de século (muito embora já estejamos no início do século XXI) pode ser reportado à maneira como na segunda metade do século XIX as metrópoles se redefiniam, de forma a ficarem mais funcionais dentro do interesse do capitalismo. E o interesse, naturalmente, era porque o novo sistema se realiza exatamente nas cidades, palco de consumo e de consolidação de enormes feiras e praças comerciais cada vez mais sofisticadas.

Com os impostos acrescidos não restavam aos pobres outra alternativa a não ser mudarem-se para bairros mais afastados do centro comercial e bancário. Até que novas intervenções chegassem, muitas vezes solicitadas por eles próprios, e tudo se repetia, com os mais pobres sendo deslocados para periferias cada vez mais distantes. Até constituírem-se o que passa a se chamar de conglomerado urbano, envolvendo várias cidades dormitórios nas periferias das metrópoles. Isso se repetiu ao longo dos séculos até os dias atuais, e seguem a lógica determinada pela transformação urbana dentro dos interesses do sistema que a molda.

Esse território agora retomado já era militarizado, por outra força que não estatal, mas de grupos que tinham o domínio territorial de complexos de favelas e detinham o controle das ações da população, envolvendo, inclusive, muitos jovens filhos daqueles que praticamente eram, e ainda são, mantidos como reféns dessa bandidagem. Seus armamentos, em alguns casos, são mais sofisticados do que das polícias militares e civis, dificultando quaisquer ações que não sejam coordenadas com as forças militares federais que possuem armamentos mais pesados, em condições de se contrapor ao poderio bélico existentes nessas fortalezas.

Ora essa era uma realidade do Complexo do Alemão, da Vila Cruzeiro, naqueles bairros já “pacificados” pelas UPPs, e em tantos outros, centenas, que ainda encontram-se sob o domínio de grupos marginais. A minha crítica reside exatamente no fato de as abordagens analisarem as “reconquistas” desses territórios, como se a história daqueles bairros começassem a partir do momento que o Estado retoma o seu controle.
Não há dúvidas que os abusos policiais devam ser combatidos e denunciados, permanentemente, não somente nesses casos específicos. Contudo há que conscientizar as pessoas que tal situação decorre da própria essência do Estado no capitalismo, qual seja, assegurar o controle efetivo da propriedade privada, dos meios de produção e garantir a reprodução do capital seguindo a lógica da busca permanente do lucro e, naquilo que nos cabe aqui analisar com a reterritorialização em curso, possibilitar que a valorização da propriedade atenda aos interesses da acumulação capitalista, que também decorre da renda do solo urbano.
Não se pode, simplesmente, alardear a injustiça que ocorre como decorrência da busca pela justiça. Não é chavão, nem muito menos, redundância. Ao libertar esses territórios do jugo da bandidagem, seguindo a uma efetiva ação do Estado na remodelação daqueles espaços urbanos, a tendência natural na cidade do capital, para usar uma expressão lefebvriana, é a valorização daquelas propriedades e a conseqüente especulação imobiliária. Ato contínuo, alguns novos empreendimentos tendem a ampliar essa nova característica desses bairros e, seja para atender uma necessidade imediata, ou para fugir do aumento dos impostos que certamente advirá, boa parcela das pessoas dessas comunidades tendem a vender seus imóveis, deslocando-se para lugares mais longínquos onde possam pagar por aluguéis e serviços mais baratos.
Tal qual Marx já identificava no século XIX. Diga-se de passagem, que, tanto a ação militar, quanto a melhoria em suas estruturas, são medidas louvadas pela comunidade e esperada com ansiedade pela maioria. São contradições que permeiam o sistema capitalista e devem ser repetidas ad nausean, para que as pessoas saibam que não há alternativas igualitárias nos marcos de um sistema que transforma tudo em lucro, até mesmo as piores misérias criadas por ele próprio.

Também isso, como bem exigiu Yves Lacoste num movimento que resgatou a geografia crítica e a necessidade de fazer com que a política voltasse ao centro das caracterizações geográficas. Mas, como ele frisou para estabelecer um novo caminho para a Geografia, é necessário mais do que tentar compreender esses fenômenos em todas as suas dimensões dialéticas, sendo também preciso o engajamento dos geógrafos para contribuir com as transformações sociais.
Disso se depreende haver a necessidade de, ao nos colocarmos criticamente sobre a maneira como o Estado age, sempre de forma a beneficiar os detentores do capital e na defesa da propriedade dos meios de produção, possamos também indicar os instrumentos possíveis de se contrapor às injustiças sociais e apontar os caminhos alternativos que levem às mudanças estruturais na sociedade capitalista. Não há outro caminho se queremos nos insurgir contra a maneira como o povo pobre é tratado.
Mas é preciso que não se crie nenhuma ilusão em relação às conquistas. Elas são fruto da luta organizada, e assim tem sido historicamente, portanto, não são concessões da classe dominante, contudo representam verniz na aparência do sistema capitalista. Segue uma lógica permanente, de sempre buscar a partir dessas conquistas a cooptação de lideranças, o apoio vicioso no processo eleitoral e a difusão de idéias que tudo se resolverá na medida em que as ações do Estado possibilitem o surgimento de novas territorialidades.

Ora, se essa é a aspiração dos moradores, indicada já em algumas pesquisas e citadas na própria explanação do professor Marcelo Lopes (registrando-se, inclusive, que o medo da maioria é do retorno do tráfico), que alternativa se pode apresentar aos que criticam as UPPs? A esse questionamento o professor respondeu simplesmente que não cabia a ele indicar isso, pois não era especialista em segurança pública.
Estupefato, fiquei a escutar sem ter a possibilidade de retrucar tamanha aberração. Daí me veio imediatamente a expressão, parafraseada de Yves Lacoste: AFINAL, PARA QUE SERVE A GEOGRAFIA?
Não têm também a função de planejador urbano os geógrafos bacharéis? Não devemos, para sermos honestos intelectualmente, e moralmente éticos, apontar sempre alternativas às nossas críticas? Senão corremos o risco de nos transformarmos em charlatões letrados, aptos a apontar o dedo a toda e qualquer ato que consideremos errados, mas a agir como um velho vira-lata a correr atrás das rodas dos automóveis, sem saber o que fazer quando os mesmos param à sua frente.
A partir de então, para ser politicamente correto na universidade, deve-se evitar apontar caminhos alternativos ao capitalismo. Muito embora eu tenha sido taxado de conservador pelo conferencista, por mais paradoxal que isso possa parecer, insisto em responsabilizar o capitalismo e na necessidade de sempre indicar as causas das contradições crescentes nas sociedades atuais, buscando sempre compreender todo o processo histórico, principalmente do desenvolvimento das cidades.
Mais paradoxal, no entanto, é minha postura antagônica à dele. Embora reconhecendo essa contradição não vejo outra alternativa no momento, senão exigir que o Estado, aja com ênfase com o intuito de libertar comunidades dominadas por marginais, por mais que identifiquemos também na estrutura policial elementos que não se diferenciem daqueles. A isso, devemos combater com rigor. O que acho inadmissível é a crítica pela crítica à ação do Estado, quando estamos cansados de ouvir outras críticas ao próprio Estado pela omissão ao longo de décadas passadas, que permitiram aos traficantes tomarem o controle daqueles e de outros territórios.

Considero plausível, no entanto, a organização da comunidade e o seu fortalecimento através da união de esforços para buscar ela mesma o domínio de seu território. Isso não eliminará as contradições, todas elas citadas acima, mas possibilitará à população simplesmente não trocar um jugo pelo outro, a dependência do traficante pela do policial. O que não significa simplesmente retirar o Estado e a aspiração por segurança, caso contrário, pela própria lógica que acabei de analisar, sejam milícias paramilitares ou empresas de seguranças adentrarão naqueles espaços e assumirão o controle na busca do lucro, reterritorializando-o. Afinal, o medo tem sido um dos fortes componentes de dominação no Brasil e no mundo.
Aos geógrafos críticos, para os quais não é o bastante saber interpretar o mundo, e sim transformá-lo (parafraseando Marx), fica a minha expectativa de que saibam discernir bem os equívocos contidos nas críticas fáceis. Vendem bem, mas não ajudam efetivamente a transformar a sociedade e reduzir as desigualdades sociais.
Lista de referências das fotos:
Upps.1 – odia.terra.com.br
Upps.2 – 2.bp.blogspot.com
Upps depois – 4.bp.blogspot.com
Traficantes.1– epocaestadobrasil.wordpress.com
Traficantes.2 – pspnation.com.br
Complexo do Alemão – ultimosegundo.ig.com.br
Complexo do Alemão.2 – exame.com.abril
Teleférico do Complexo do Alemão – noticias.r7.com
Bairro Popular de Londres no Séc. XIX – cafehistoria.ning.com
Bairro Operario de Londres no séc. xix – sociologiaurbana.blogspot.com
Karl Marx.1 – filosofiaemvalores.blogspot.com