A marginália, ou cultura marginal, volta à evidência, sem que ninguém saiba o que seja, ou melhor, poucas
pessoas sabem, porque a maioria conhece pouco de nossa história. Mais uma vez um trôpego
parlamentar, em outra estultice de sua curta e estúpida carreira, e
evidentemente não irei nominá-lo para que seu nome não ganhe destaque por aqui,
um ambiente que difere daquele em que ele transpira toxidade e ódio, expõe uma
obra de arte como se fosse uma apologia ao crime. Não sei se ele conhece a
obra, creio que não, dado ao nível baixo de seus neurônios, mas independente
disso, o que o próprio deseja é despejar ódio por meio de mecanismos perversos,
que coloca a educação contra a parede, cria confusão propositalmente e busca
angariar seguidores nesse universo que já se sabe ser enorme, por onde se pesca
mentes incautas e idiotas de todos os matizes.
Mas há uma armadilha no
meio do caminho, e, lamentavelmente, segmentos progressistas seja de partidos
ou de movimentos culturais e sociais, estão embarcando numa onda e seguindo um
caminho que está há anos sendo traçado por essas figuras nefastas da
extrema-direita. A de provocar com temas de costumes, sexuais ou de gênero. Questões
por muito tempo negligenciadas, e com as mudanças nas sociedades adquiriram
condições diferentes daquelas legadas pelo passado, e que vem num processo de
disrupção desde os anos 60 do século XX, mas que termina por submeter-se as
oscilações políticas, nas conformidades de qual segmentos assume o poder, se de
direita ou de esquerda. Independente disso, esses temas, e essas condições
assumidas por pessoas por muito tempo estigmatizadas ou vítimas de preconceitos
pela influência de religiões e seus valores conservadores, rompem
barreiras e se empoderam, num movimento de enfrentamento àqueles empecilhos
criados para tolher suas liberdades.
Como as sociedade são
moldadas pelas ideias das classes dominantes, e de seus valores culturais e
ideológicos, o embate se torna inevitável. Contudo, infelizmente, a onda
conservadora impregnada por esses preconceitos termina por adquirir uma força
avassaladora, instrumentalizada por oportunistas e hipócritas, que manipulam as
mentes das pessoas, em sua grande maioria desinformadas, que seguem esses preceitos
religiosos e sucumbem às mentiras, armações e medos disseminados perversamente.
Nos últimos tempos isso se tornou instrumento para elevar alguns indivíduos pérfidos,
e maldosos, a se tornarem referências nas redes sociais, e dessa forma galgar
um mandato parlamentar, e até mesmo mirando o Poder, e conseguindo chegar lá. A
mentira se tornou uma arma, e para além dela, a deformação da informação e a falsificação
da realidade, utilizando-se de questões reais, existentes, mas apresentadas de
forma completamente distorcida.
Ora, porque falo que há
uma armadilha nesse processo. Esse caminho, e essas pautas, embora importantes
e necessárias, tornaram-se o foco da extrema-direita, por envolver valores
conservadores religiosos, e dessa forma desviar os olhares das pessoas para
questões que são mais importantes em suas vidas, e que são responsáveis para
lhes dar segurança e dignidade. Ou seja, o que esses setores querem é evitar se
falar das injustiças sociais existente numa sociedade absurdamente desigual, do
fato de existirem classes sociais que se conflituam pela lógica de
funcionamento do sistema capitalista, da degradante condição de dezenas de
milhões de pessoas submetidas à exploração de uma estrutura social que faz com
que 1% da população, controle cerca de 70% da riqueza.
O egoísmo, a ganância e a
usura, são temas que, embora abordados nos mesmos livros sagrados onde
anacronicamente se tenta preservar valores e costumes, passam despercebidos por
uma massa de pessoas oprimidas e exploradas. São essas mesmas pessoas, que
carregam nas costas as dificuldades de vidas sofridas por conta dessas condições
de desigualdades sociais, que caem nos discursos conservadores e são
alimentadas pelo ódio transmitido por aqueles trânsfugas que o direciona para
tornar suporte de uma estrutural social absolutamente indecente.
Quando a esquerda, e os
movimentos progressistas, deixam de enfocar essas questões econômicas e
sociais, dessas disparidades gritantes em uma pirâmide social invertida, e saem
na defensiva contra os disparos de fakes news e manipulação de valores, perdem
a possibilidade de criar as condições para que a população se conscientize de
uma realidade na qual ela vive, mas que se distancia quando sucumbe aos
discursos de ódio e de pregadores oportunistas.
No caso específico, de uma
camiseta que reproduz uma obra artística de Helio Oiticica, há situações
criadas que geram a oportunidade desses setores. O que quer dizer uma frase “Seja
marginal, seja herói”? Se não houver uma contextualização, do significado da
frase, até mesmo das palavras, e do objetivo do artista que a produziu, ela
gera uma dubiedade que passa a ser explorada por essa canalha oportunista e
fascista, nessa onda que está trazendo de volta movimentos obscurantistas e
reproduzindo grupos neonazistas.
Para comprovar pela
história que esse embate, e esse debate, não é novo, basta ver quando essa obra
foi produzida. O contexto era de um período sombrio, na ditadura militar, no
ano de 1968, e da ascensão de muitos movimentos culturais contestadores, na transgressão
de valores burgueses, e alguns até mesmo psicodélicos, como forma da juventude
se contrapor ao controle cultural e aos valores conservadores que se impunham
pela repressão e submissão da sociedade, principalmente os mais jovens. Aqui no
Brasil, nesse período ditatorial, a Tropicália levou a juventude ao êxtase e a
um crescente de formas contestadoras às imposições culturais reacionárias, num
movimento puxado por cantores e compositores, homens e mulheres que buscavam
formas de vida sem controle, e sem a rigidez que aqueles valores culturais
impunham. "Deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara! Pra ficar tudo
joia rara...", cantava Caetano Veloso. Odara é uma expressão que vem do
sincretismo religioso, e exalta a positividade, de origem iarubá. O que se
desejava era a liberdade de se encontrar o caminho para deixar a “cuca” e o
corpo aberto. Era a busca pela liberdade, contra todas as formas de opressão.
A Marginalia repete a
Tropicália pelas mãos de alguns artistas plásticos, no caso que analisamos
Helio Oiticica assume um protagonismo enorme, se tornando um dos artistas que
mais vão se destacar nessa linha. Anarquista, adepto portanto da aversão de
toda a forma de controle, mas também oriundo de uma realidade em que a alta
criminalidade e as condições sociais relegavam às comunidades a escolha por ver
na “juventude transviada” o algoz dos repressores e terminavam por transformá-los
também em heróis de uma periferia alçada permanentemente à condição de
marginalidade, no sentido estrito da palavra, de viver à margem da sociedade.
Periferia não somente no sentido geográfico, mas também social, ou daquele
olhar que a geografia humana nos permite ver quando estudamos as áreas urbanas,
completamente desiguais, mesmo nas condições em que a pobreza, na favela, está
geograficamente situada em meio a áreas nobres, como no caso emblemático do Rio
de Janeiro.
Nesse contexto podemos
entender a frase de Oiticica, falecido em 1980: “Seja marginal, seja herói”.
Porque é o que a condição social impõe a milhões de pessoas, em suas lutas cotidianas
pela sobrevivência, onde se destacam as mulheres, e onde os pretos e pretas
vivem em condições que foram criadas desde o fim da escravidão.
Qual o grande problema
nessa história toda? Se usamos uma camiseta atualmente com a imagem produzida,
artisticamente, por Oiticica, sem explicarmos todos esses significados e essa
contextualização, ela vai certamente, como foi, ser transformada em uma arma da
extrema-direita, pela própria dubiedade que ela exprime. Afinal, no que se
transformou a palavra “marginal”, nessa sociedade desigual, onde as favelas, os
bairros pobres, as periferias, se tornaram ambientes de resistência a um
sistema injusto e absurdamente desigual? Viver nesses lugares, em muitos casos
controlados por traficantes e milicianos, é conviver com essa dubiedade
expressa na frase. Muito embora nos últimos anos muitas ações têm sido feitas
para apresentar uma outra feição dessas áreas, onde vivem, em sua maioria,
famílias trabalhadoras que sofrem e lutam cotidianamente de forma honesta pela
sobrevivência.
Mas o preconceito, latente
na sociedade, é explorado por fascistas e por esses políticos da extrema
direita. De forma que, paradoxalmente, assusta até mesmo quem vive nesses
ambientes. Principalmente se frequentarem grupos cristãos neopentecostais ou
católicos carismáticos, de onde se destilam esses mesmos ódios. Embora eu não
queira generalizar, inegavelmente, é fato, é como acontece.
Por fim, enfatizo, porque
foi a razão dessa minha abordagem, precisamos levar o debate para o ambiente
que a extrema-direita foge. Da discussão das desigualdades sociais, inclusive
de suas origens, da aceleração do processo de enriquecimento de uma minoria, em
contraposição ao crescimento da pobreza da imensa maioria da população. De uma
economia, focada na especulação financeira, e do domínio de classes sociais
que, nas cidades e no campo, exploram o trabalho de homens e mulheres, para
acumularem riquezas sem a menor preocupação com a pobreza na qual está
submetida milhões de pessoas, forçadas a viverem em condições marginais de existência.
Por aí, precisamos elevar o nível de conscientização das pessoas pobres, convencê-las
a se organizarem em associações, adquirirem consciência de classe e se confrontarem
com a opressão burguesa, forçando a transformações sociais que nos possibilite
encontrar outro caminho para a humanidade, e para o Brasil em particular. Até
lá, ser marginal e ser herói, será uma condição dúbia que é imposta por essa
realidade perversa e desigual que vivemos no sistema capitalista.
Quanto àquele trânsfuga, oportunista e hipócrita, que tenta tolher nossas liberdades, esse será esquecido como um lixo na história. Mas devemos combatê-lo implacavelmente com o olhar crítico a essa podridão social que ele deseja defender.
_________
*Acompanhe também essa discussão pelo meu canal no YouTube:
COMO COMBATER A CULTURA DO ÓDIO E A IGNORÂNCIA
https://youtu.be/okDVUanUUkM
Nenhum comentário:
Postar um comentário