sábado, 21 de novembro de 2020

TODAS AS VIDAS IMPORTAM – O QUE MOSTRA A REALIDADE

Como historiador muitos fatos abomináveis que assistimos na sociedade brasileira não me surpreendem, embora me deixem indignados. Ainda mais quando envolvem etnias fortemente oprimidas, reprimidas e dizimadas de forma a ser possível identificar atos genocidas ao longo da história brasileira. Os fatos, números e repetição dessa barbárie que se repetem, são fáceis de serem identificadas em trabalhos acadêmicos, na literatura e em qualquer busca em sites de notícias. E não me refiro apenas a este século.

Essa situação deve sim ser tratada como estrutural, porque está incorporada nas estruturas sociais brasileiras historicamente. Se explica a partir das análises de como se deu nossa colonização; depois como internamente foram sendo incorporados negros trazidos da África para suprirem uma mão de obra inexistente na colônia; como essa população passou a viver marginalizada e estigmatizada, sendo vista meramente como instrumento de trabalho; e como no processo de finalização do ciclo escravagista as classes dominantes fecharam as portas para qualquer possibilidade de inserção dos negros na sociedade, na economia e na condição de proprietários de terras.

Tudo isso foi adredemente preparado, implementado, consolidado e transformado em ações políticas a fim de beneficiar os tradicionais senhores de terras e depois uma burguesia entreguista e submissa originada de todo esse comportamento e mentalidade colonialista que formou o estado brasileiro.

Mas vocês devem estar se perguntando por que adotei esse título acima? De fato, todas as vidas importam. E principalmente se considerarmos que a imensa maioria da população, pobre, sente diversos tipos de preconceitos e opressões, principalmente as mulheres, mas também as populações indígenas. Além de viverem em condições de vidas deprimentes, sub-humanas.

Mas quem é maioria dentre essa população pobre e oprimida? Naturalmente, em se tratando de Brasil as estatísticas estão aí, até mesmo para qualquer “daltônico” ver. Essa condição de pobreza e miséria, desemprego e vítima constante de violências física e psicológica, afeta principalmente o indivíduo, homem e mulher, de cor negra. Os pretos e pretas, como corretamente estão se assumindo, como forma de se colocar com altivez e auto-estima elevada, e a resgatar o valor de suas existências.

Então, sim, o importante aqui, nesses momentos de uma conjuntura que explicita essas diferenças, e de governantes perversos que expõe cínica e abertamente suas posturas racistas, elitistas e preconceituosas, é dizer que VIDAS NEGRAS IMPORTAM.

Mas até aqui eu não respondi ainda a minha própria indagação, do porquê ter adotado um título mais genérico.

Pois bem. Direi. A minha intenção é atrair a atenção dessa narrativa, e para a leitura desse texto, aquelas pessoas, em sua maioria brancas, que se sentem incomodadas com a virulência da reação das pessoas pretas, e dos segmentos que os apoiam, e usam como argumento para minimizar essas violências, que esses fatos acontecem indiscriminadamente na sociedade, afetando todos os segmentos. E justificam isso argumentando ser consequência das desigualdades sociais, mas que elas aceitam e se beneficiam.

Isso foi dito pelo presidente desse país, que se diz daltônico, mas mais do que isso, é insensível, insuportavelmente preconceituoso, e absolutamente descolado de nossa realidade. Com o olhar mais focado nos EUA e em seu guru supremacista branco, assim como seus seguidores, simplesmente fecha os olhos para uma realidade insofismável. As estatísticas estão aí para quem quiser ver. São estudos acadêmicos, de diversas entidades, do próprio IBGE, e organizações que se debruçam há décadas sobre esse mecanismo disfarçado de separação étnico-racial que existe em nosso país, um apartheid perfeitamente visível que afeta majoritariamente a população negra.

E isso serve também para o vice-presidente, um general que não consegue enxergar que no comando militar brasileiro, em seu estado-maior, não iremos encontrar nenhum oficial de pele negra, mas que ele considera não haver racismo aqui no Brasil.

O título que dei a essa minha fala, e texto que produzi para desabafar e botar pra fora toda a minha indignação e revolta, que não é só de agora, mas de 40 anos de militância, de estudos acadêmicos e pesquisas, é para atrair aquelas pessoas que minimizam essas violências, as vê como afetando também aos brancos, e negam a existência de um racismo estrutural no Brasil. Racismo e machismo estruturais, eu ampliaria. E o que dizer da condição das mulheres negras nessas situações? São duplamente oprimidas, maltratadas e violentadas. Sim, pelo que historicamente se construiu nesse modelo de sociedade hipócrita.

Nesse país portentoso em riquezas, e perverso nas relações sociais e no tratamento do seu povo pobre, por séculos têm sido mantidas essas condições por meio de políticas destinadas somente a beneficiar os mais ricos, aqueles que sempre se utilizaram de suas condições sociais para hipocritamente se julgarem diferentes com o argumento falacioso, perverso e hipócrita de “meritocracia”. Mas também utilizando-se de mecanismos culturais e ideológicos, para por muito tempo manter passivas essas pessoas, de forma a que elas se sentissem culpadas por suas próprias condições de opressão e miséria.

As classes dominantes desse país, tão logo se aproximava o fim da escravidão, pela pressão que existia fora e dentro do país, se apressaram para criar uma lei de terras, com o objetivo claro de impedir que os negros se tornassem proprietários, impedindo-os de conseguirem um pedaço de terras para viverem. Assim, foram jogados ao relento, nas periferias das cidades, fazendo surgir as favelas e os ambientes inóspitos e sem estruturas urbanas dignas. De lá para cá essas condições só se ampliaram, e a violência assume um patamar insuportável.

O título que adotei, não corresponde ao que eu quis aqui falar. Mas assim o fiz para que não atraísse somente os que naturalmente já concordariam comigo e reconhecem a existência desse racismo estrutural, e que, portanto, devemos gritar com todos os pulmões progressistas e sensíveis que existem: VIDAS NEGRAS IMPORTAM!

Como não concordar com a letra bem objetiva e direta contida na música de Elza Soares? “A carne mais barata do mercado é a minha carne negra. Que fez e faz história. Segurando esse país no braço” (Elza Soares – A Carne [negra]).[1]

Os daltônicos, insensíveis, racistas e preconceituosos, fecham os olhos à realidade que é mostrada todos os dias por meio de estudos publicados em revistas, sites e na grande mídia. Além do que basta acompanhar os noticiários policiais e identificar a cor da pele da grande maioria daqueles que são aprisionados, ou abatidos pela polícia. São suspeitos pelo simples fato de serem pretos.

Basta ver essa notícia, que extraio do site UOL, publicada neste dia, 21 de novembro, um dia após o Dia Nacional da Consciência Negra: “As mortes de negros causadas por violência física cresceram 59% no Brasil em oito anos, uma incidência 45 vezes maior que a taxa medida em relação a cidadãos brancos no mesmo período, segundo dados disponíveis do DataSUS consultados pelo UOL”. E que o número de vidas negras vitimadas no últimos anos “subiu de 694 em 2011, para 1.104 em 2018. Média de uma morte a cada sete horas”. [2]

A violência brutal que se abateu na véspera de uma data escolhida para comemorar a resistência negra, inspirada na luta liderada por Zumbi dos Palmares, com o assassinato do cidadão brasileiro João Alberto, na porta do hipermercado francês Carrefour, reflete o cotidiano dos milhões de negros e negras neste país, submetidos a um tipo de tratamento que advém do processo de colonização perverso e criminoso que exterminou um percentual enorme de gente, considerados meros instrumentos de trabalho, e submetidos à humilhação que se estende ao longo da história de formação de uma sociedade vergonhosamente desigual.

Todas as vidas importam, isso é uma verdade absoluta. Mas para muitos que repetem essa frase, e se dizem daltônicos ao olhar a realidade, o que desejam é negar o racismo estrutural que persiste, que deve ser combatido e que precisa ser mudado. E, apesar do que diz a música: “O cabra aqui não se sente revoltado, porque o revólver já está engatilhado. E o vingador é lento, mas muito bem intencionado”... Algo começa a mudar.

Mesmo que uma parte dessa sociedade resista em mudar, e eleja para lhes representar um dos seus que esbraveja esses comportamentos racistas, enquanto se escondem em posturas hipócritas, a força das transformações, embora possamos considerar lentas, elas virão. Elas estão vindo. E vem em um crescendo, ampliando o número daquelas pessoas que se indignam e se revoltam com a sucessão de crimes e aberrações que são cometidas.

Para além de sermos negros ou não, a postura silenciosa soa a cumplicidade. Portanto, devemos repetir sempre, não basta dizer que não somos racistas: É PRECISO SER ANTIRRACISTA, e se incorporar à luta por justiça social, pelo fim do racismo estrutural, e contra todo o tipo de discriminação.

Pois é o que diz o Artigo Primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.



[1]    A Carne (Negra) – Compositores: Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Capelleti. Interpretação: Elza Soares. https://www.youtube.com/watch?v=Lkph6yK6rb4

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