“Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado,
conhecia toda a extensão de sua miserável condição: é nela que pensa em sua
descida. A clarividência que deveria fazer o seu tormento consuma no mesmo
instante a sua vitória. Não há destino que não se supere pelo desprezo”.
(Albert Camus)*
Conta-se pela mitologia grega que a
ingenuidade de Epimeteu e a curiosidade de Pandora, foram responsáveis pela
libertação de todos os males que viriam a povoar a terra: a doença, a guerra, a
velhice, a mentira, os roubos, o ódio, o ciúme… Ao abrir a caixa onde continham esses males e libertá-los, assustada, Pandora fechou-a rapidamente, mas o
suficiente apenas para mantê-la por lá a esperança. Daí se espalhou pelo mundo a
lógica de que a esperança sempre está guardada, e que ela poderá em algum
momento nos fazer acreditar que é possível superar as adversidades.
Mas até quando a pobre esperança
nos manterá na expectativa de que poderemos contornar situações difíceis e
aparentemente definidoras dos limites que são impostos a uma determinada época?
Vivemos aqui no Brasil uma situação
de absoluta falta de rumo na política e do que poderá acontecer ao país nos
próximos anos. Não seria tão grave se não estivéssemos em meio a uma grave
crise crônica e estrutural do sistema capitalista. Mas a situação instável que
vive o mundo, economicamente e em termos de grandes disputas geopolíticas, nos
deixa numa condição de estarmos próximos a frequentar uma unidade de terapia
intensiva. É sempre importante não olharmos para o Brasil como se aqui fosse
uma ilha, alheio a tudo que acontece à sua volta. E, se em meio a uma crise
estrutural séria, nos deparamos com uma crise política sem perspectivas de
solução, isso nos coloca mais próximo ao abismo.
Desde 2013 que venho analisando
aqui neste Blog todo esse processo, que a meu ver aqui em nosso país começa com
as chamadas “jornadas de junho”, atinge seu auge com o golpe que depôs a
presidenta Dilma Roussef e se mantém numa espiral crescente até sabe-se lá
quando. Mas já por esse tempo era previsível as dificuldades que a esquerda
teria de se recompor, diante de um vendaval de notícias ruins, fake news, e um
ataque sistemático da mídia, da direita e de uma justiça absolutamente parcial e corrompida por seus interesses mesquinhos e corporativos, que tem
agido com forma de vingança e com ódio de classe.
Mas ao longo desse tempo, como
reagiu a esquerda, e como ela se preparou para enfrentar um processo eleitoral?
Em primeiro lugar não houve nenhuma preocupação equilibrada com a
reestruturação das forças, da organização, de buscar o caminho de fortalecer
nossas lutas procurando reforçar pontos comuns em nossos objetivos, de forma a
chegar ao processo de composição para as eleições unidos, aptos a construir uma
forte aliança para enfrentar uma direita que cresceu nos últimos anos, mas que
também se dividiu.
Vivemos em meio a um dilema,
semelhante ao mito de Sísifo. Para citar outro personagem da mitologia, esse
teria sido punido por desobedecer aos deuses, com o castigo de viver
eternamente rolando uma rocha montanha acima, sendo que ao chegar no topo a
rocha rolaria abaixo, necessitando que esse trabalho fosse refeito eternamente.
Parece que a esquerda está
condenada aqui no Brasil ao mesmo castigo de Sísifo. Mas, nesse caso, muito em
função de seus próprios erros, que, aliás, são recorrentes. Dentre eles, o
hegemonismo, o exclusivismo, o sectarismo, representado principalmente pela
força majoritária, o Partido do Trabalhadores, que governou o país por três
mandatos e um incompleto, até o golpe que desandou as coisas e possibilitou uma
perseguição inusitada até levar para a
cadeia um presidente, e um dos mais populares de toda a nossa história.
Neste texto não tenho como analisar
todas essas circunstâncias e equívocos cometidos. De certa maneira já abordei
em textos anteriores, que, como disse, podem ser lidos aqui no Blog. Mas
dedicarei a maior parte deste artigo a analisar o comportamento da esquerda na
pré-campanha eleitoral de 2018, as táticas, os nomes postos e os comportamentos
aleatórios de quem deveria saber se guiar por ensinamentos seculares de como a
política deve ser utilizada no objetivo de atender as necessidades do povo e
não somente dos interesses menores seja dos partidos ou dos grupos que os
compõem.
Começo dizendo que, para além da
injustiça que se comete contra o ex-presidente Lula, a estratégia pensada não
deveria ser da insistência de uma candidatura sabidamente inelegível. Por lei
aprovada durante seu governo e sancionada por ele próprio. Entendo o desespero
perante tamanhas manobras da justiça brasileira a condenar alguém que chegou a
essa condição por sua origem de classe, por superar desafios que a elite e as oligarquias
brasileiras jamais esperariam de um nordestino que se tornou operário na maior
metrópole desse país e uma liderança incontestável em sua força e carisma.
Contudo, o que estava em jogo não é
somente a liberdade de Lula, a meu ver somente a ser garantida com a eleição de
um governo de esquerda. Mas o que está em jogo é o futuro do país e as
condições de vida de nosso povo, igualmente injustiçado com a destruição de
políticas sociais criadas em seu governo e da presidenta Dilma. Exatamente por
isso dever-se-ia pensar para além de seu próprio destino, e vê-lo ligado ao
destino de nosso povo. Era preciso, então, na construção das alianças para o processo
eleitoral, pensar em primeiro lugar na libertação de nosso povo, na vitória da
esquerda e a partir daí, a garantia de que a justiça pudesse ser feita com
vitória nas urnas e Lula livre!
Mas por todo esse tempo prevaleceu
muito mais do que a razão, a emoção. A estratégia do golpe tinha como alvo,
nitidamente, o presidente Lula. Claro, antes era preciso derrubar uma
presidenta e desconstruir por meio de uma intensa campanha de mídia e de
financiamento de grupos que se fortaleceram ao longo desse processo, fazendo
despertar uma direita intolerante, cruel e perversa, alterando o percurso do
golpe e transferindo para uma figura torpe a condição de se alçar a líder nas pesquisas
eleitorais e a se colocar como alternativa ao poder, podendo levar o país ao
aprofundamento de uma crise política que pode nos jogar mais ainda ao fundo do
poço.
Ora, se a esquerda foi atingida
duramente nesse processo, não somente a força que detinha, como sua credibilidade,
era natural que as táticas a serem implementadas tivesse em vista um objetivo
claro, retomar o poder. Nas condições existentes isso jamais poderia ser
pensado sem que fosse pelo caminho da unidade da esquerda. Caso não fosse
assim, poderia ser dito, com tranquilidade, que os objetivos dos golpistas,
mesmo com situações que saíram pela culatra, foram alcançados. Dentre esses objetivos,
naturalmente, isolar os partidos de esquerdas e mantê-los desunidos para serem
mais facilmente derrotados.
No entanto como se comportou o
partido majoritário da esquerda? Justamente aquele que se tornou o principal
alvo dos ataques desfechados com o golpe? O Partido dos Trabalhadores confundiu
a bandeira de luta pela liberdade de Lula, com a sua estratégia eleitoral, e
levou para a prisão juntamente com ele, toda uma esperança de conseguir, a partir dessa situação, unificar os partidos
de esquerda, ou de centro-esquerda, para retomar o poder e contra-atacar os
golpistas que em dado momento pareciam também completamente desnorteados com o
crescimento da extrema-direita.
Adotou um comportamento contrário,
se isolou em uma tática suicida, que pode dar certo, tanto quanto isso acontece
numa disputa do alucinado jogo “roleta russa”. Insistiu na candidatura de Lula,
e, pior, passou a desconstruir outra candidatura do campo da centro-esquerda,
jogou com fiéis aliados, como o PCdoB, e nos Estados insistiu no hegemonismo
sectário de não abrir mão para lideranças que possam lhes ameaçar futuramente.
Quase no final da hora final, assestou um golpe fatal que terminou por isolar a
candidatura de Ciro Gomes, do PDT, mesmo que à custa de demolir a candidatura
de uma jovem liderança em ascensão em Pernambuco, com um efeito colateral que
atingiu no Amazonas a candidatura de uma senadora que foi um dos baluartes na
defesa do mandato da presidenta Dilma Roussef: Vanessa Graziotini. Ao final,
sob o beneplácito do PCdoB, a essa altura sem muitas alternativas e ainda
acreditando que isso significava uma unidade da esquerda, finalizou com uma
aliança que mantém dois candidatos à presidência (Lula e Haddad) e duas
candidaturas à vice (Haddad e Manuela), numa situação inusitada em toda a
história política brasileira.
Em Goiás, onde a disputa está
firmemente concentrada no campo dos conservadores, com um direitista contumaz,
criador da UDR e financiador de milícias durante a Constituinte de 1985 para
assassinar trabalhadores rurais, Ronaldo Caiado, disputando a liderança nas
pesquisas, o Partido dos Trabalhadores manteve-se altivo, no alto de seu salto,
então colado com super-bond. Aceitou coligar-se com o PCdoB, cedendo, no
entanto, somente a vaga de vice numa chapa majoritária onde há ainda a disputa
por duas vagas ao Senado, uma das quais me apresentei na condição de pré-candidato. Numa postura inarredável manteve, como sempre se
acostumou a fazer, o PCdoB encostado numa parede, sem outra alternativa senão
aceitar o comportamento impositivo e hegemonista que se tornou marca
característica do PT. Compreenda-se também pelo fato deste ser um partido de
tendências, em cuja disputa interna leva também à necessidade de acomodar
indicados por cada um desses grupos, o que não e diferencia muito do
tradicional fisiologismo dos partidos conservadores.
Coloquei-me na condição de
contribuir com a luta, com o debate e entrar no ambiente desgastado da política
atual, e acreditei poder ser um nome que viesse a encarar o desafio de tentar
desmontar a farsa que se criou nesses últimos anos com discursos hipócritas que
alienaram mais ainda as pessoas, acentuando o ódio, a intolerância e a estupidez.
Mesmo sabendo das dificuldades me dispus a encarar essas dificuldades. Mas, não
que eu não estivesse ciente que isso poderia acontecer, já que sou militante de
longas datas, percebi que a esquerda não precisa da direita para se destruir,
se isolar e se apequenar diante do poder dos conservadores. Ela é autofágica,
guia-se pelos mesmos sentimentos daqueles que fazem políticas tradicionais, muito
embora seja diferente no discurso, e ao final para alguns que a compõe não é a preocupação com o povo
que os movem, mas sim, são seus interesses particularistas e de grupos, com foco
no poder e nos privilégios que são concedidos a partir daí. Mantêm-se sempre os
mesmos na condução desses processos, na apresentação dos nomes, na defesa de
seus mandatos e na capacidade ceifadora de cortar cabeças de prováveis lideranças
que venham a ameaçar também seus hegemonismos internos. Contribuem, no entanto,
com esse comportamento, com o descrédito como as pessoas veem os políticos e os
igualam, e destroem a política que possa ser vista como uma condição necessária
para a libertação desse povo, mas a transformam em instrumentos de seus
próprios interesses.
Assim, mantém a esperança
aprisionada (aqui não há necessariamente relação com o Lula, mas pode ser visto
como uma metáfora) e assume a condição que levou a punição de Sísifo, condenados
a carregarem rochas para cima da montanha. Mas ao contrário do que se segue na
mitologia, há um abismo ao final do percurso. Não sei se escaparemos dele, ou
se a rocha rolará montanha abaixo e seguirá sendo levada ao cume, antes de
despencar de uma vez no precipício. O que sei, e sinto, é que a esperança se
esvai, nossa paciência também, e com tudo isso, desacreditamos na possibilidade
de construir algo diferente, um tipo de política diferente, com pessoas que de
fato coloquem o interesse coletivo para muito além das mesquinharias e vaidades
que destroem nossas utopias.
Não sei como me comportar daqui
para adiante, o certo é que não tenho nenhum interesse em ficar condenado a
rolar rochas montanha acima. Vou procurar em algum canto, se ainda resta por lá
uma esperança. Mas decerto que não sou eu quem está enclausurado em uma
caverna.
(*) http://www.teatrodomundo.com.br/o-mito-de-sisifo/
Belíssima leitura da situação em que nos encontramos: adentramos vagarosamente neste lamaçal, erro após erro, toda a esquerda está no centro da areia movediça, sem uma mão que se estenda para o resgate. O quê fizemos com os nossos líderes? Os abandonamos? Ou eles não souberam cultivar a liderança? Precisamos de alguém que aponte para o horizonte ou para o cume e diga: Vai, lá haverá esperança, mesmo sabendo que ela vive ou morre dentro de cada um de nós. Ótima reflexão Romualdo Pessoa, corta como navalha em nossa carne e faz doer, dói muito... , como a verdade dói...
ResponderExcluirBelíssima leitura da situação em que nos encontramos: adentramos vagarosamente neste lamaçal, erro após erro, toda a esquerda está no centro da areia movediça, sem uma mão que se estenda para o resgate. O quê fizemos com os nossos líderes? Os abandonamos? Ou eles não souberam cultivar a liderança? Precisamos de alguém que aponte para o horizonte ou para o cume e diga: Vai, lá haverá esperança, mesmo sabendo que ela vive ou morre dentro de cada um de nós. Ótima reflexão Romualdo Pessoa, corta como navalha em nossa carne e faz doer, dói muito... , como a verdade dói...
ResponderExcluirImportantíssimo e lúcido artigo. Breve comentário: é natural que as críticas sejam mais ácidas em direção ao partido hegemonista. Mas não menos cesuráveis as posturas, principalmente dos dirigentes no Estado de Goiás, do PCdoB. As nefastas atitudes de uma familiocracia causa nojo e repugnância. Ontem, donos do PDT. Hoje, proprietários do PCdoB. Não contentes em dominar o Partido em todas as suas instâncias, usam técnicas fascistas para imporem suas vontades em entidades sindicais. Aliás, atividades claramente vedadas legalmente. Dirigentes e vassalagem se retroalimentam. Criticar duramente o PT é correto e justo. Mas existe sim um conluio de interesses pessoais e execráveis nessas alianças mal explicitadas, às vezes, com o próprio PSDB marconista. Portanto, creio a ESPERANÇA ainda ficará aprisionada por um bom tempo. A presença rápida do seu nome no cenário político goiano sugeriu que uma diminuta fresta se abriria na caixa. Mas o jogo de cartas marcadas cabe aos "profissionais". Congratulo-me com o seu "amadorismo" = no sentido daqueles que amam a honradez e lutam destemidamente pelo fim da opressão do seu povo. Acompanho, diariamente, a administração de Flávio Dino (PCdoB) no Maranhão. Há um sentimento de que a mudança é possível e ocorre com a adoção das boas práticas políticas. E, necessariamente, quando mencionadas práticas são direcionadas para transformação social. Especialmente, através da implementação de uma política educacional de qualidade. Esse é o grande passo para libertação de um povo. Antes, temos que nos libertar dos espertalhões que dominam e usam para interesses particulares as estruturas partidárias, sejam elas que têm pretensões hegemônicas ou entidades satélites.
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