domingo, 18 de fevereiro de 2018

GEOPOLÍTICA DA AMÉRICA LATINA


Íntegra da entrevista concedida ao Jornalista Renato Dias – DM. Publicada no dia 17/02/2018



A América Latina sofre, hoje, o esgotamento de um ciclo progressista? 
Não diria “esgotamento”, mas as políticas progressistas, mesmo que limitadas e ainda padecendo de alguns defeitos neoliberais, colocaram em xeque o velho poder tradicional, de uma oligarquia acostumada a dominar com o apoio dos EUA. Isso durou o tempo em que as ações das políticas externas estadunidenses estavam absorvidas em intensas guerras no Oriente Médio e na tentativa do isolamento da Rússia. Quando se percebeu que os países latino-americanos estavam seguindo por uma rota diferente, e por meio da liderança brasileira construindo uma alternativa na geopolítica mundial de deslocamento do poder estratégico, inclusive reforçando o poderio comercial pelo pacífico em direção à China, e incluindo a própria Rússia, as ações se voltaram para destruir os governos daqueles países que tem maior importância nessas relações políticas. As crises foram geradas por meio de ações políticas e infiltrações de agentes em manifestações, ao mesmo tempo em que grande mídia tradicional unificava seu discurso com o objetivo de desconstruir as mudanças que estavam em andamento. Como muitos desses governos administraram crises de Estado, e por ter que lidar com congressos parlamentares de maioria conservadora, terminaram por manter vícios na administração e na política. Foi por esse caminho, tradicionalmente trilhado por eles, que os conservadores deram um xeque mate na esquerda. O moralismo hipócrita, o discurso conservador religioso e a manipulação da mídia, terminou por apagar a euforia que existia na relação com a esquerda. Isso não significa esgotamento, mas uma nova etapa de um processo político que encontra sempre adversidades. Contudo, as dificuldades enfrentadas pela população, em razão de uma crise real consumir seus ganhos salariais, e á medida em que esse discurso conservador for sendo desmascarado a tendência é que haja uma retomada nessas políticas progressistas. Mas o momento, infelizmente, é de retrocesso.
Existem identidades entre as quedas de Manuel Zelaya, 2009, Honduras; Fernando Lugo, 2012, Paraguai; Dilma Rousseff, 2016, Brasil?
Sim, claro. Não há dúvidas, nem coincidências. A derrubada desses governos, bem como o desgaste imposto aos Kirchner na Argentina, fez parte de uma estratégia conservadora numa ação política para retomar o controle do poder na América Latina e botar nos governos desses países fantoches, elementos ligados aos interesses dos EUA.
O que explica a derrota do Kirchenerismo, após 13 anos de hegemonia, na Argentina?
Praticamente as mesmas razões que levaram ao definhamento do PT aqui no Brasil. Uma reação orquestrada, conforme já disse anteriormente, que passou inicialmente por uma forte campanha de desmoralização dessas forças políticas, e da esquerda em geral, por meio da intensificação na grande mídia de notícias negativas e de contrainformações com o objetivo de gerar fortes desgastes. Mais do que simples desgastes, as ações, coordenadas pela mídia, mas contando com o apoio de ONGs, órgãos do próprio Estado dominado por idéias e práticas conservadoras, e intensificada por um setor poderoso do judiciário quando viram que seus interesses corporativos estavam sendo ameaçados no Governo Dilma. Na Argentina o embate foi ainda mais prolongado, porque ainda houve uma sobrevida da Cristina Kirchner, que conseguiu suportar até locaute e intensas greves patrocinadas pelos setores “produtivos”, ou melhor dizendo, por aqueles que controlam os meios de produção.
A deposição das armas pelas Farc constituem uma estratégia correta?
A meu ver sim. Eles seriam dizimados diante de um quadro que lhes era absolutamente adverso. Principalmente com a crise que se intensificou na Venezuela e com todo o poderio bélico que foi investido pelos EUA na Colômbia. Na verdade, essa guerra servia aos interesses estratégicos estadunidense, porque através da política de combate ao tráfico de drogas, e da vinculação que foi dada dessa atividade com a guerrilha, as ações militares cumpriam outros objetivos, de através da Colômbia as ações de inteligência no combate às drogas servissem para desestabilizar os governos de esquerda.
Os EUA recomendam um golpe de Estado civil e militar, hoje, na Venezuela. Para depor Nicolás Maduro. Como analista da geopolítica mundial do século 21, o que o senhor tem a dizer?
Isso é um “deja vu”. Os EUA sempre agiram assim na relação com os países da América Latina cujos governos lhes eram e são hostis. É uma política imperialista, de envolvimento direto nos destinos de outras nações, ferindo frontalmente a autodeterminação de cada povo e de cada país. Essa é uma história cujas origens podem ser encontradas no século XIX. Pelo “Destino Manifesto”, de viés protestante-puritano, aquele país se designou como sendo o eleito por Deus para dominar as Américas, daí a célebre e malfadada frase: “A América para os americanos”. E, pouco depois, a política do “Big Stick” (o grande porrete), inserido na Doutrina Monroe, que tratava na ponta do porrete aqueles países que ousassem sair da “linha” e contrariassem os interesses estadunidenses. O que ocorre com a Venezuela já aconteceu com Cuba, com o Brasil, com o Panamá, com a Bolívia e com todos os países cujos governos adotassem uma política de alianças com inimigos estratégicos dos EUA. A guerra fria acabou, mas não essa forma dos EUA lidar com seus desafetos. Muito pelo contrário.
Raúl Castro deixa mesmo o poder, no mês de abril, em Cuba, para Miguel Díaz-Canel?
Acredito que sim, e acho que isso fez parte do acordo com os EUA durante o governo Obama, com a intermediação do Papa Francisco. Até mesmo pelo fato dele já estar bastante velho. Agora tudo depende da maneira como se dará a relação com os EUA. Com o Trump muito do que foi acordado entre os dois países está sendo desfeito. Porque sabemos que a política externa de Trump é isolacionista, e sua base de apoio é muito forte entre os anti-castristas que vivem naquele país. É possível que a saída dele sirva como um trunfo nas negociações para que o Bloqueio criminoso de cinco décadas seja extinto. Mas é preciso ainda ver como as coisas andarão nos EUA sob a batuta desafinada de Donald Trump.
Luiz Inácio Lula da Silva será preso e impedido de disputar as leições de 2018?
Veja, desde o começo dessa crise em que ficou bem claro a seletividade nas investigações de casos de corrupção que tenho dito que o objetivo é pegar o Lula. Quando falo em seletividade não me refiro somente a investigações aos que são do PT, mas aos que fizeram parte da base de apoio dos governos Lula e Dilma. Porque tudo que se está descobrindo agora, era prática corriqueira de décadas de política brasileira. As eleições aqui no Brasil sempre aconteceram contaminadas nessas relações entre empresas e financiamento de campanha. Foi assim que as oligarquias permaneceram no poder tanto tempo. Portanto isso tudo aconteceu nos governos anteriores, inclusive do PSDB, com FHC, que usou do mecanismo de compra de parlamentares para aprovar a reeleição. Ora, se o objetivo desde o começo é prender Lula, para que ele não retorne à presidência da República, e se por mais de dois anos repetidamente se acentua o desgaste numa lógica goelbesiana (uma mentira repetida por muitas vezes se passa por verdade), é evidente que isso deverá acontecer. Pode não acontecer caso o STF volte atrás na decisão de prender um investigado quando já houver uma condenação numa segunda instância judicial. Se isso não acontecer o Lula será preso. A menos que houvesse uma convulsão social e ações de desobediências civis coletiva. E isso não me parece que vai acontecer, porque o povo está anestesiado e muito cético em relação a política. Houve uma desconstrução perversa do que aconteceu de melhor no Brasil nos últimos anos e o pessimismo foi injetado no inconsciente da população. Pessimismo, aversão à política e intolerância com as diferenças. Nesse ambiente a sociedade está mais para a letargia do que para se levantar contra injustiças que se cometam contra um político que é tido, e isso é inegável, como a maior liderança política do país desde Getúlio Vargas. É claro que isso tem um tempo de validade, a desesperança leva ao desespero, e às insurgências sociais, basta pesquisar na história.
Qual a sua análise do cenário em Goiás?
Não é diferente do cenário brasileiro. E também segue uma onda conservadora. Para desespero daqueles que combateram a ditadura acabamos de ver um ex-governador biônico, base de apoio da ditadura militar, ser conduzido à condição de Secretário de Segurança Pública, isso mostra o nível do retrocesso e da mudança de foco de uma política de viés social para outra de caráter repressivo, porque é o que esse nome representou e representa. Veja também que o nome mais forte para candidato ao governo é de um elemento que comandou na década de 1980 uma associação de fazendeiros criada para eliminar lideranças sindicais rurais e camponeses que lutavam pela terra, a UDR. E faziam leilões para comprar armas com esse intuito, claramente definido e propagado. Uma candidatura que representa antigas oligarquias goianas, que se imaginava já estar soterrada com o tempo e as transformações políticas. Claro que o nome forte, porque o conservadorismo foi acionado pela campanha midiática contra os setores progressistas, não significa uma estrutura de partido forte, portanto não acredito que ele seja vitorioso. Até porque seu discurso radical de direita afasta políticos do Centro e tende a isolá-lo politicamente no transcorrer da disputa. Mas Goiás também tem uma característica de uma estrutura econômico-social fundada na exploração da terra, da grande propriedade latifundiária e do grande agronegócio, e isso por si só reforça o caráter conservador da sociedade. E culturalmente por todos os poros goianos essa tendência se manifesta e afeta até mesmo as camadas mais baixas da sociedade. Portanto, não acredito numa alternativa progressista como sendo vitoriosa nas próximas eleições aqui em Goiás, não há força política para isso, até mesmo em Goiânia que por diversas vezes elegeu prefeitos de esquerda. Essa tendência conservadora só não terá impacto maior se os partidos de esquerda conseguirem se unir em torno de uma candidatura que possa de fato competir visando chegar ao segundo turno. Se isso não for possível veremos uma disputa entre o candidato de centro-direita e um candidato de direita no segundo turno das eleições em Goiás, infelizmente.

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