Prof. Dr. Milton
Santos[1]
Nos dias atuais, é praticamente
comum, quase em toda parte, a perda progressiva, pelas Universidades, da meta
do conhecimento genuíno, o que contribui para despojar a instituição
universitária de sua principal razão de ser.
Será essa uma evolução inelutável e
irreversível? Talvez valha a pena, para fixar as idéias, retraçar, ainda que
brevemente, a história geral do trabalho intelectual. Primeiro houve o sábio
individual, aquele cujo conhecimento era elaborado em comunhão integral com a
Natureza total. Era uma busca localizada, talvez inconsciente, de
universalidade. O sábio individual foi substituído pelas corporações de sábios,
nas escolas e nos conventos: o saber se tornava um atributo específico de um
grupo treinado para exercê-lo. Chega-se, depois, com as Universidades, a figura
do “scholar”, mistura de professor e pesquisador, pago pela sociedade como um
todo pra “produzir” livremente o saber, isto é, codificar, do seu ponto de
vista, o saber coletivo, inventar, individualmente, novos saberes, ou simplesmente
fabricar um conhecimento a ser transferido à comunidade como educação. Mais
recentemente, essa figura do “scholar” foi parcialmente substituída pela dos
“funcionários da educação”, sem maior compromisso com a pertinência dos temas.
Os sábios, as corporações de
sábios, assim como as produções de um saber desinteressadas e verdadeiras
acabam se tornando coisa rara, quando a ciência, como serviço às coisas, matou
a filosofia como serviço ao homem. O sábio é substituído pelo erudito, o
cientista pelo mero pesquisador, o intelectual pelo profissional, se a grande
preocupação não é mais o encontro e o ensino da verdade, em todas as suas
formas, mas uma atividade parcelada, dominada por um objetivo imediato ou
orientada para um aspecto redutor da realidade.
Em tais circunstâncias, a
Universidade corre o risco de abandonar a busca do saber abrangente,
substituído pela tarefa de criação e de transmissão de um saber prático. Esse
saber prático elaborado fora da Universidade pelas grandes firmas e dentro da
Universidade por sua inspiração direta ou indireta é subordinado a objetivos
externos à busca do conhecimento verdadeiro. Daí o papel, hoje determinante,
das Fundações corporativas internacionais, na produção e na circulação das
ideias. Veja-se, também, nas ciências sociais, o papel das redes, financiado
por convênios internacionais, tanto mais exitosos, no geral, quanto menos
relevantes são os seus objetivos. A função desse pseudo-conhecimento –
fabricado por encomenda – é construir , sob o selo do cientificismo, um
discurso universitário cujo pecado de origem elimina a possibilidade de o
associar à noção de verdade científica.
De um modo mais ou menos geral, a
Universidade aceita esse papel sem glória de produzir um conhecimento
comprometido, acorrentado ao que hoje se chama “o prático”, “o objetivo”, “o
pragmático”, vocábulos que ganharam um novo contexto para significar o que é
capaz de dar maior lucro, seja como for. Por isso, a Universidade é chamada a
realizar uma produção comercial do saber, um conhecimento adredemente planejado
como um valor de troca, destinado desde a sua concepção (que é inspirada, cada
vez menos, nas Universidades e cada vez mais nas grandes firmas) a criação de
um valor mercantil. O conhecimento assim produzido é uma mercadoria, sujeito à
lei do valor econômico.
É um mundo de cabeça para baixo que
as Universidades estão ajudando a criar e a difundir, onde o meio passa ele
mesmo a ser um fim. Quando a Universidade se transforma em uma oficina do
utilitarismo, ela é, ao mesmo tempo, esterilizada e esterilizante. Torna-se um
corpo morto e um corpo morto não cria coisa alguma. O conhecimento produzido
como meio de produção nasce para morrer quando se torna funcional. É o saber do
fazer coisas, um processo finito. Ora, a busca do conhecimento é um processo
infinito, o processo de criação que é, ele mesmo, recriador. O seu centro de
interesse é no homem e não nas coisas.
Quando a Universidade decide
institucionalizar a primazia outorgada ao estritamente técnico sobre o mais
amplamente filosófico, entroniza o instrumental e minimiza o teleológico.
Quando as ciências, quaisquer que sejam, são tratadas como se não devessem ter
uma filosofia própria, integradora, os objetos são colocados acima do homem. A
Universidade que cria e difunde esse tipo de saber entre aspas perde seu
conteúdo e sua finalidade, e os professores e alunos vão trazendo coisas, mas
não sabem mais exatamente o que estão fazendo. Por isso, ao mesmo tempo em que
s disciplinas chamadas científicas afundam num imediatismo confrangedor ou numa
futurologia cega, as ciências sociais e humanas são subalternizadas, reduzidas
a um papel de justificação ou de codificação de uma interpretação unilateral da
sociedade.
Essas tendências gerais, hoje
comuns a quase todas as Universidades, em quase todos os países, são resultado
do fato de que o saber se transformou numa força produtiva direta. Como ao
mesmo tempo a economia se internacionalizou, o sabermercadoria tinha que
acompanhar a tendência, razão pela qual as universidades, por iniciativa
própria ou por contaminação, aceitam seguir essa mundialização unilateral.
Adotando um modelo externo às realidades nacionais ao serviço da produção das
coisas, elas se tornam medíocres, graças, também ao desajustamento entre um
saber cada vez mais transferido e as realidades profundas das nações, e graças
a contradição entre os meios, universalizados pelas necessidades produtivas de
caráter internacional, e os fins próprios a cada coletividade nacional,
minimizados estes por uma globalização perversa e uma informação internacional
igualmente perversa.
Sob esse ponto de vista, a situação
dos países do Terceiro Mundo é dramática. Porque o saber já chega de fora
incorporado nos objetos, na tecnologia, no “management” e inclusive nos
“scholars” importados, ainda que haja exceções. Nessa situação, a produção de
um saber nacional autêntico torna-se assim dispensável. É exatamente por isso
que as ciências sociais deveriam voltar a ganhar dimensão, pelo fato de que são
os esquemas sociais de uso das técnicas e dos objetos que alicerçam o discurso
de justificação das novas dependências e desigualdades. O esforço dos países
subdesenvolvidos, como o nosso, deveria, pois, se orientar principalmente na
direção do estudo das suas próprias realidades sociais como um todo. Esse,
desgraçadamente, é também um domínio onde a imitação passou a ser uma regra e a
mania dos títulos (mestria, PhD, etc) substitui, nas universidades
burocratizadas, o saber genuíno.
A universidade internacionalizada
“a priori” só serve a alguns, cada vez mais numerosos. Porque, não sendo
universal, também não é propriamente Universidade.
Mas não seria justo concluir com
uma rota pessimista. Com todos os seus defeitos atuais, tão parecidos em quase
todo o mundo, as Universidades geram o veneno e o antídoto, mesmo se em doses
diferentes. Lugar de um saber vigiado e viciado, elas são, também, e ainda, o
único lugar onde o contra-saber tem a possibilidade de nascer e às vezes
prosperar. Isto pode ser o resultado de esforços, de cientistas pioneiros, agrupados
ou não. Mas para guardar e manter o pensamento independente, é indispensável
que a instituição universitária aceite desinstitucionalizar-se, caminho único
para evitar que o excesso de regras e de mandos acabe por esterilizar as suas
possibilidades de um trabalho realmente livre, voltado para o interesse geral.
A tarefa de incorporar a
Universidade num projeto social e nacional impõe primeiro a criação e depois a
difusão de um saber orientado para os interesses do maior número e para o homem
universal. Devemos estar sempre lembrados de que o internacional não é o
universal. O trabalho universitário não é propriamente uma tarefa
internacional, mas precipuamente nacional e universal, dependendo, desde a
concepção à realização efetiva, da crença no homem como valor supremo e da
existência de um projeto nacional, livremente aceito e claramente expresso. É a
tarefa que nos aguarda.
[1]
Discurso proferido por
ocasião da concessão do Título de Doutor Honoris Causa, conferido pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro no dia 24 de setembro de 1999. Publicado
no Anuário do Instituto de Geociências - UFRJ Volume 23 / 2000. Milton Santos
era Geógrafo, reconhecido internacionalmente e agraciado em 1994 com o prêmio
Vautrin Laud, considerado como o Nobel
da Geografia. Milton Santos faleceu em 24 de junho de 2001.
http://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2015/06/para-sempre-na-memoria-relembrancas.html
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