Sempre que me debruço sobre o
teclado para escrever sobre algum filme, de imediato me vem à lembrança a
trilogia de Matrix. Isso porque esse filme nos consegue levar a reflexões
filosóficas sobre a realidade que vivemos, e aquela que construímos em nossos
ideais. A que desejamos. Mas essa lembrança tem também a ver com o que quero
dizer do filme que agora passo a analisar, “O Lobo de Wall Street”.
Eu digo, após pensar e procurar
rememorar a lista de filmes que vi nos últimos anos, que este é um dos melhores
que já assisti. Muito embora, e tenho convicção disso, alguns, e não são
poucos, dirão que estou exagerando, e até mesmo divergirão radicalmente da
minha opinião. Acho natural, tudo é uma questão de paradigma, da maneira como
você vê o mundo, e de como nossos hábitos nos conduzem a escolhas bastante
diversificadas. Tem até quem goste de Justin Bieber (!?). Ou os que acompanham em
pay-per-view as aventuras dos(as) enjaulados(as) do BBB, cada vez mais escolhidos
entre corpos “sarados” que tem por objetivo mexer com a libido e provocar os
desejos sexuais de seus participantes.
Ora, mas minha referência a esse
programa não destoa do que o filme de Martin Scorcese apresenta. Ganância,
sexo, dinheiro, poder e drogas. Uma mistura que compõe o universo no qual os
protagonistas se envolvem, e que reflete a realidade de um sistema que mergulha
cada vez mais na podridão de seus valores. Ou, melhor dizendo, os universos, já
que são vários mundos reais ou virtuais que definem o sistema capitalista.
Não é uma ficção. Naturalmente há
um roteiro que procura em alguns momentos fazer prender o telespectador, e,
portanto, exagera em alguns aspectos. Muito embora possamos dizer que a
realidade é bem mais perversa, sempre, do que muitas ficções.
Em relação ao conteúdo, para mim
não houve surpresas. Saí do filme com a nítida sensação de já ter visto algo
semelhante. E ví. O filme de Oliver Stone, “Wall Street: Poder e Cobiça”,
produzido nos anos 1980 (mesma época em que se inicia a história do filme de
Scorcese) e com uma sequência que estreou às telas de cinema em 2010,
retratando a crise econômica mundial que estourou em 2008. Seguramente Stone se
apropriou da história de Jordan Berfort, personagem real do mundo financeiro
que inspirou esses dois dos melhores diretores dos EUA. Há no filme de Scorcese,
inclusive, uma citação ao mega-especulador Gordon Gekko, principal protagonista
do filme de Stone.
Orgia, luxúria e ganância. Ingredientes presentes em "Wall Street". |
Mas não há surpresas em serem
histórias parecidas, mesmo que a inspiração não seja a mesma. Simplesmente
porque elas tratam da realidade do que acontece no mundo real do capitalismo
financeiro. Expõem com toda crueza os mecanismos de funcionamento das
estruturas do sistema, suas vísceras, os canais intestinais por onde transitam os
excrementos que seduzem e transformam indivíduos, e os elevam à condição de “vitoriosos”,
lobos, ou raposas, que transformam dinheiro virtual em riqueza material, cuja
ambição cega não enxerga limites na busca interminável por mais dinheiro.
Quanto mais se ganha, mais se deseja, assim como o poder. Por isso eles estão
juntos, e trazem consigo de tempos bem remotos, já demonstrados na decadente
sociedade romana escravocrata e concentracionista, o desejo pelo sexo e a
necessidade de se fugir para outra realidade. Por isso, orgias e drogas se
misturam num exibicionismo quase sempre criminoso.
Mas o crime não é somente em função
desses “divertimentos”. Ele acompanha toda a trajetória daqueles que enriquecem
à revelia do processo produtivo, investindo em negócios de fachadas, bombados
pelas estratégias maquiavélicas de expertises,
que vendem ações de empresas inexistentes, ou criadas virtualmente para iludir
incautos gananciosos, sempre dispostos a verem seus dividendos se multiplicarem
sem que se produzam nada.
Ganâncias de uns, usuras de outros.
As fraudes são consequências dessas
misturas. E o que se vê nessas histórias, transformadas em filmes, mas contadas
por personagens reais, é a realidade insofismável, embora contraditoriamente a
maioria das pessoas desconheça, ou são iludidas de que são meras ficções, de
que o setor do capitalismo onde mais circula dinheiro é onde se concentram as
maiores atividades criminosas do sistema.
“Siga o dinheiro”. Essa frase ficou
famosa, depois do igualmente famoso caso “Watergate”. Ela teria sido
pronunciada pelo personagem “Garganta Profunda”, o elemento anônimo que
denunciou o esquema de espionagem que levou à renúncia do ex-presidente dos
EUA, Richard Nixon, em um dos maiores escândalos da história política daquele
país.
Ele se aplica a qualquer situação
de suspeitas de enriquecimentos ilícitos. Muito embora, para mim, todos os
grandes enriquecimentos se deem ilicitamente. O filme “O lobo de Wall Street”,
baseado, portanto, na história de Jordan Berfort, contada por ele mesmo, traça
didaticamente os caminhos percorridos pelas grandes fortunas, que fogem de seus
países de origem e encontram guarida nos famosos paraísos fiscais. A Suíça,
então tida como o maior desses “esconderijos”, é o exemplo mostrado. Mas
sabemos que atualmente são vários os “paraísos”, onde se lavam dinheiro do
crime organizado, da corrupção, das drogas, das especulações financeiras.
Inclusive o Vaticano, envolto em um escândalo que demonstra o quanto as
instituições bancárias de todo o mundo estão envolvidas na lavagem de dinheiro
ganho de forma ilícita, criminosa e à custa de uma realidade que demonstra que
apenas 1% da população mundial concentra uma riqueza maior do que possui mais
de 50% das pessoas que vivem no planeta de 7 bilhões de habitantes. A maior
parte vivendo abaixo da linha da pobreza.
O “Lobo de Wall Street”,
brilhantemente representado por Leonardo DiCaprio, numa atuação espetacular, é
apenas um dentre muitos que fazem brotar dinheiro do nada, sem nenhum tipo de investimento
produtivo. O mecanismo é a fraude, a ilusão de ser possível ganhar dinheiro
fácil, o marketing que produz mitos do enriquecimento banal e a ganância, como
principal peça motora do sistema capitalista.
Cena em que uma jovem se prepara para transportar dólares para a Suíça |
Ao final do filme, o personagem
saído da cadeia onde passou apenas três anos, sabiamente aproveitado corrompendo
seus carcereiros, passou a se dedicar a realizar palestras a ávidos “filhotes
de lobos”, jovens fracassados ou desempregados, insatisfeitos e frustrados,
desejosos de enriquecerem, todos eles, mediante os mecanismos fraudulentos
possibilitados pelo sistema capitalista. Mesmo fim do especulador Gekko, do
filme de Stone. Embora este tenha uma continuidade e portanto um novo começo, a
partir da crise de 2008.
Ora, mas deixei para o final a
pergunta mais interessante. Esses “lobos” atuam somente retirando dinheiro do
pequeno e médio investidor? Daqueles que desejam ver multiplicado seu dinheiro
poupado? Claro que não. Tão logo despontem como espertos corretores, conhecidos
por fazerem surgir dinheiro do “nada”, e de vender espertamente ações de fúteis
empresas, eles são contratados por megainvestidores que os transformam em peças
chaves na reprodução de suas riquezas, adquiridas a partir de estratégias que
falseiam a realidade e fazem valer muito além do que é real, os valores das
ações de suas corporações ou de suas marcas.
Sobrevivem nessa selva, os mais
espertos. Jordan sucumbiu por tentar burlar um sistema, por natureza,
fraudulento. Operava à margem da “legalidade” de Wall Street. E a demonstrar
claramente que pouco se importava com o dinheiro alheio, tido para ele como
virtual, e a extrair ao final da burla o que ele entendia como dinheiro real,
materializado e transformado na aquisição de bens, na luxúria e na permanente
condição de dependente das drogas. A maior delas, isso ele também não escondia,
o dinheiro. Elementos que estão sempre presentes, e que fazem com que fique bem
demonstrado (para quem quiser ver, naturalmente), que todas as atividades
ilícitas e criminosas se encontram na encruzilhada entre o poder e a riqueza.
Para encontrar as fraudes, os grandes criminosos, onde se encontram os
verdadeiros bandidos que controlam a riqueza do mundo, basta seguir o dinheiro.
Lobos, raposas e leões estarão lá, se enfrentando para ver quem possui a melhor
característica vencedora: a força ou a esperteza. Mas com certeza, mediante
alguma ilicitude. Ou, trocando em miúdos: alguma ação criminosa.
Scorcese dirige DiCaprio e Margot Robbie, em uma das cenas mais provocantes do filme |
Sugiro que assistam ao filme “O
Lobo de Wall Streeet”. Mas os puritanos, os ingênuos, devem ir preparados. Não
verão cenas de lutas corporais, sangues jorrando pelos olhos, fantasias que nos
prendem nas poltronas. Não. Verão cenas fortes, drogas, sexo, palavrões,
banditismo explícito, tudo aquilo que expõe um de nossos mundos. O mundo real
do capitalismo financeiro. Depois disso poderão ver que queimar fusquinha,
depredar agências bancárias ou sair mascarado nas ruas, sequer arranha... na
verdade é um leve sopro, nas estruturas que compõem o sistema financeiro e o
poder do dinheiro, concentrado nas mãos de megaespeculadores, banqueiros e das
grandes corporações. Aliás, só fortalece um dos elos dessa cadeia, o das
grandes seguradoras, porque incentiva a indústria do medo. Paradoxalmente,
porque é assim no capitalismo, por trás delas encontram-se as grandes
corporações bancárias. Elas estão habituadas a se enriquecerem mais ainda a
cada desgraça, às guerras nas quais elas próprias investem para ter os países
sobre controle, e até mesmo a tsunamis. Que dirá à ação de um pé de cabra!
Como vencê-los? Não sei. Só sei que
não é assim.
Mas continuo acreditando que “um
outro mundo é possível”. Para além do capitalismo.
PS: Em 2010 fiz um minicurso na
UFG, no Instituto de Estudos Socioambientais (IESA), onde sou professor,
chamado “Decifrando o Sistema Capitalista: Crises econômicas e o poder das
grandes corporações financeiras”. Como parte da metodologia utilizei a exibição
de documentários e filmes, produzidos como consequência da crise de 2008. À
exceção de “Wall Street – Poder e Cobiça (1). Mas ao final do curso assistimos
e debatemos sua continuação, “Wall Street, o dinheiro nunca dorme”, no Cine
Lumiére, por época do seu lançamento. Depois disso outros filmes trataram do
assunto. O ganhador do Oscar em 2010, como melhor documentário, “Trabalho
Interno”; “Grande demais para quebrar”; e, um filme que mostra os bastidores da
decisão que garantiu que o tesouro estadunidense investisse bilhões de dólares
em instituições quase falidas, para salvar o sistema financeiro mundial, “Margin
Call – O dia antes do fim”. Agora em 2013, com o acréscimo de alguns desses
filmes, darei continuidade a esse curso, provavelmente no mês de abril. Um bom
momento para conhecermos os “lobos de wall street” e também da Avenida
Paulista.
SINOPSE
E FICHA TÉCNICA DO FILME: O LOBO DE WALL STREET
Não
recomendado para menores de 18 anos
Durante seis meses, Jordan
Belfort (Leonardo DiCaprio) trabalhou duro em uma corretora de Wall Street,
seguindo os ensinamentos de seu mentor Mark Hanna (Matthew McConaughey). Quando
finalmente consegue ser contratado como corretor da firma, acontece o Black
Monday, que faz com que as bolsas de vários países caiam repentinamente. Sem
emprego e bastante ambicioso, ele acaba trabalhando para uma empresa de fundo
de quintal que lida com papéis de baixo valor, que não estão na bolsa de
valores. É lá que Belfort tem a ideia de montar uma empresa focada neste tipo
de negócio, cujas vendas são de valores mais baixos mas, em compensação, o
retorno para o corretor é bem mais vantajoso. Ao lado de Donnie (Jonah Hill) e
outros amigos dos velhos tempos, ele cria a Stratton Oakmont, uma empresa que
faz com que todos enriqueçam rapidamente e, também, levem uma vida dedicada ao
prazer.
Título original: The Wolf of Wall Street
Ano de produção: 2013
Dirigido por: Martin Scorsese
Nacionalidade: EUA
(http://www.adorocinema.com/filmes/filme-127524/)
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