sábado, 5 de março de 2011

05 DE MARÇO, UM TRISTE ANIVERSÁRIO

Fui hoje ao cemitério. Diante da lápide que identifica o local onde se encontra o corpo de minha filha, e também o de meu pai, chorei. No dia em que deveria como tantos outros pais sentir-se feliz, alegre, pelo aniversário de uma filha.

Assim o fiz por 10 anos. Resta-me agora, no silêncio de minh’alma, sofrer e entristecer-se por sua ausência. Por isso, os dias 05 de março passam a ter outros sentidos, diferentes daqueles que sempre encontrei, quando me levantava e beijava minha filha, desejando-lhe felicidade e muitos anos de vida. É assim que sempre fazemos quando comemoramos os aniversários.

Mas minha filha não teve muitos anos de vida. Viveu, sim, anos de vida intensos, agitados, alegres. Por ser, seguramente os anos mais felizes de nossas vidas. Da infância, da inocência, da completa despreocupação com as razões que nos tornam a nós adultos, cada vez mais neuróticos pelo cotidiano corrido de uma necessidade imperativa de auto-afirmação, vaidades e conquistas. Bem distantes das fantasias que construímos nesses anos de infância que a Carolina viveu.

Não pude, como é de praxe fazermos com nossos filhos em seus aniversários, dar-lhe conselhos, dizer palavras de carinhos. Farei isso enquanto puder com meu filho. Mas da Carolina, presente apenas em minhas lembranças, encontrei no simbolismo de um contato com seu túmulo, mensagens que me indicam a necessidade de dar valor a cada momento que vivemos.

Pelo pouco tempo em que suportei a dor de ali permanecer creio ter ouvido conselhos de minha filha, sobre a necessidade de ser mais tolerante com seu irmão, com sua mãe, com as pessoas de quem ela gostava e de quem gostamos. Com todos aqueles, enfim, pelos quais somos indiferentes. Ouvi ali conselhos sobre como ser menos impertinente com coisas tão fúteis, cujas importâncias as damos de acordo com as conveniências do momento; de viver intensamente cada momento por coisas que valham a pena; por sentimentos de justiça e solidariedade; para não julgar o outro sem sequer conhecê-lo, nem querer condenar injustamente ninguém por defeitos que vemos neles, mas somos incapazes de vermos em nós mesmos.

Mas não pude deixar de rogar impropérios às imposições de uma vida contraditória, que nos forçam inverter a lógica aparentemente natural, mas que o acaso insiste em contrariar. Não é normal, e profundamente injusto, um pai e uma mãe chorar sobre a sepultura de um filho ou uma filha. Deveria ser eu a estar ali numa sepultura, como lá se encontra meu pai, ou com as cinzas simbolicamente jogadas em algum local específico, e minha filha a lembrar-se de mim e a falar aos seus filhos e netos como fora seu pai, com virtudes e defeitos.

É assim que pensamos construir nossa vida. Mas como exigir isso, se quando a temos agimos como se fossemos eternos. Esquecemos teimosamente da morte, ou imaginamos ter ainda outra chance além dela.

Não sei ainda racionalizar a perda de minha filha. Momentos como os de hoje vêm e vão envoltos em um turbilhão. Não sei se conseguirei. Cada momento de alegria para mim transforma-se rapidamente em uma culpa torturante, e uma permanente e seguramente eterna pergunta: Porquê minha filha?

Antes que tentem me convencer de desígnios divinos, devo alertar que julgo uma impertinência insistir em apontar nas fantasias elaboradas pelas mentes humanas qualquer resposta a esta indagação.

Ela simplesmente não tem resposta. Não há porquê. É o acaso que antecipa um momento que inevitavelmente chegará para cada um de nós. Mas construímos nossas relações afetivas, nossos amores por nossos filhos, pelas pessoas que amamos; incrustamos em nossos corações uma película que envolve esses sentimentos – lamentavelmente ali também cabe espaço para ódios -, carregamos nossa mente de amor, carinho, afeição, e quando chega a morte, fria e insensível, nos tornamos impotentes e só nos resta chorar nossas lágrimas.

Mas, creiam, perder um(a) filho(a) é uma dor dilacerante, inenarrável, um sentimento que não se transfere e portanto ninguém pode sentir o que sentimos. Por quanto tempo vamos sentir, com tamanha intensidade, é imprevisível. Depende da capacidade de cada um lidar com tal situação. Escrevo, para aliviar um pouco essa dor.

Mas não me vejo em condições de superar isso. Carregarei para o resto de minha vida. Este dia, que por dez anos me fez repleto de alegria, tornou-se eternamente triste.

Não peço aos amigos um olhar de complacência, ou tolerância com eventuais impertinências, mas compreensão, compaixão, no sentido literal da palavra. Lembrem-se sempre que este amigo perdeu uma filha pela qual nutria um profundo amor, e que embora ainda me reste um filho que terá sempre de mim o mesmo sentimento, jamais poderei recuperar esta parte dilacerada. Portanto, não serei mais o mesmo que fui até sua morte. Viverei sempre lamentando esta perda.

Mas tentarei sempre buscar forças na imagem bela, meiga e alegre de Ana Carolina. Ela será sempre uma estrela a me acompanhar, como tem sido até aqui.

Ontem à noite, já sobre o efeito da sensação de um aniversário vazio, olhei fixamente para o céu, repleto de estrelas. A minha certeza fez-se irrefutável: é impossível que uma delas não seja a minha Carol. Por não poder identificá-la todas serão uma só, e mesmo que numa noite cinzenta em que as nuvens escuras as impeçam de aparecer, ainda assim, verei por trás das nuvens que carregam água e sintetizam a vida, uma estrelinha bem escondidinha como aqui ela ficava sempre que um temporal se aproximava.

Por ironia, ao deixar meu filho na escola, antes de me dirigir ao cemitério pude ouvir no som de meu carro uma música sempre marcante de Gonzaguinha:

“E a vida?/e a vida o que é diga lá, meu irmão?/ela é batida de um coração?/ela é uma doce ilusão?/mas e a vida?/ela é maravilha ou e' sofrimento?/ela é alegria ou lamento?/o que é, o que é, meu irmão?”

Ele ficou com a pureza da resposta das crianças, a vida, sim, é bonita. Eu também preferiria ficar com a pureza em vida da minha filha.

Mas...








Ana Carolina – Foto 2004 (Florianópolis-SC)

Escrito em 05 de março de 2009.

Um comentário:

  1. Caro amigo, Romualdo
    Busco compreender e sentir o significado de suas palavras: "...perder um(a) filho(a) é uma dor dilacerante, inenarrável, um sentimento que não se transfere e portanto ninguém pode sentir o que sentimos. Por quanto tempo vamos sentir, com tamanha intensidade, é imprevisível. Depende da capacidade de cada um lidar com tal situação. Escrevo, para aliviar um pouco essa dor."
    As realidades intrasubjetivas são construídas e vivenciadas dialeticamente, contrastando-se a pluralidade e singularidade das intensidades que cada ser experimenta em seu processo de individuação, em contato consigo mesmo, com os outros e com a natureza que a todos cerca. Tentar responder à demanda de cada um é impossível, mas é possível a construção de algo em proveito da própria humanidade, ate mesmo caoticamente. Penso que qualquer projeto terá sucesso se tiver seu fundamento na solidariedade e fraternidade universal.
    Os amigos ao longo da vida podem desejar algo assim, de forma a aliviar a peleja humana no dia a dia - sentida mais perceptivelmente nas relações alegria-tristeza, ganho-perda, saúde-doença e aparecimento-desaparecimento.
    Com estima,
    Wilame

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