sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

O MUNDO, E NÓS, SEM VOCÊ: DEZESSETE ANOS DEPOIS QUE VOCÊ PARTIU

Querida Carol, minha amada filha, em dezembro de 2010 lhe escrevi uma carta[i]. Completavam-se somente 03 anos que você havia partido. Nesta carta, em que eu imaginava que de alguma forma pudesse ser lida por quem já não mais estava entre nós, ilusoriamente, era também endereçada principalmente aos amigas e amigas que lhes conheceram, e com os quais convivemos nos momentos mais tristes e tensos de minha vida. Também naquele momento eu imaginava como estaria sendo a vida com você ainda presente entre nós. Era uma ilusão. Uma linda fantasia construída por quem estava com o coração estraçalhado, partido. Repito aqui essa iniciativa, agora 17 anos depois que sua vida deixou de existir. Embora ateu, imagino você em alguma dimensão, a nos observar e acompanhar nossas vidas. Nesse momento de dor e saudades, e de um amor intenso e interminável, a materialidade do mundo é o que menos me importa. Alimento a possibilidade, por mais inimaginável que pareça, de haver uma outra dimensão, onde as pessoas boas, principalmente quem deixou a vida tão cedo, possa de alguma maneira completar o seu ciclo de vida. Como dizia o velho revolucionário Vladimir Lênin: “Sonhos, acredite neles. Com a condição de realizar escrupulosamente a sua fantasia”.

O que me move nessa segunda carta que lhe escrevo é o que sempre me acompanhou durante todos esses anos. Tentar ver sua presença em uma realidade de drásticas e bruscas mudanças. O mundo, e não somente o lugar onde vivemos, sente uma transformação radical, mais acelerada do que em outras épocas. Vivemos um tempo em que a aceleração é a marca principal, porque estamos sendo movidos cada vez mais por tecnologias que se superam muito rapidamente. A fluidez do tempo faz com que os acontecimentos se sobreponham muito rapidamente à realidade do tempo que já passou (o que leva muito rapidamente ao esquecimento dos fatos), com os elementos que já se constituem naquilo que compreendemos como futuro. Embora eu insista, conforme já escrevi em crônicas dedicadas a você, minha filha, que o futuro é uma ilusão, não existe. É algo a ser construído da junção do passado com o presente. A noção de futuro, para mim, desapareceu com sua morte. Por isso sigo focado no presente, sem esquecer o passado. Razão pela qual passei a adotar o lema do poeta da antiguidade, Horácio (65 - 8 AC): Carpe diem quam minimum credula postero (Aproveite o dia, confia o mínimo no amanhã).

Não é somente a aceleração contemporânea a marca desse novo tempo. Mas também algo que tem sido crônico com o transcorrer da humanidade: a ganância. Isso que é o motor que move a sociedade capitalista, cega aqueles que acumulam riquezas e os fazem pessoas frias, incapazes de compreender que um mundo de crescentes desigualdades caminha celeremente em direção a um abismo. Muito embora as portas das igrejas estejam cada vez mais abertas a receber pessoas frustradas, ressentidas, revoltadas, sem ter a noção crítica de a quem dirigir suas frustrações, e por isso tornam-se presas fáceis nas mãos de oportunistas que se miram pela ganância, alimentam o ódio e transformam o mundo em um hospício descampado.

Minha filha, os dez anos de sua vida foram de uma crescente esperança em nosso país, embora de trágicas mudanças no mundo. Logo na virada do século, aos seus quatro anos de vida, um fato de grande dimensão sacudiu o mundo. O ataque ao coração do império. O país até então de uma hegemonia inquestionável, algo que mudou nos últimos anos, foi atacado em seus pontos estratégicos, da segurança, do poder político e do poder econômico: o Pentágono, a Casa Branca (neste a tentativa foi frustrada) e o World Trade Center.

Quando você completou dez anos, e foi levada a morte por uma doença perversa, um tipo leucemia rara em crianças de sua idade, nosso país passava por momentos econômicos positivos, embora na política, como sempre, a disputa do poder e a forma como a grande mídia nos tempos modernos construiu as bases para a destruição da política, criou um ambiente tenso, mas que foi parcialmente superado. Só que nos últimos dez anos isso se tornou rotina, a desestabilizar os governos de esquerda e criar ambientes propícios para a chegada de aventureiros, oportunistas e golpistas. O ressentimento, alimentado pela grande mídia, abriu caminho para a destruição da política e a ascensão de indivíduos perversos e de má índole, num ambiente político onde essas peças já se faziam presentes, embora não empoderadas.

Parece minha filha, que o turbilhão que afetou minha vida, nossas vidas, com a sua partida, se disseminou pelo nosso país, e pelo mundo. A loucura e o banditismo, e até mesmo a corrupção e as maldades nas decisões políticas, tomaram conta não somente do Brasil, mas também de outras partes do mundo. Se institucionalizaram e foram normalizadas, pelas crenças fundamentalistas que se infiltraram, como vírus, nas mentes de boa parte da população. Os gestos com os dedos, de armas, a simbolizar a eliminação dos adversários, passou a fazer parte de uma coreografia macabra, sendo executada até mesmo dentro de algumas igrejas. A violência, a perversidade, a brutalidade, principalmente contra as mulheres e contra as pessoas pobres e pretas, se disseminaram espantosamente. A política se tornou um ambiente de ódio, chacotas e esculhambação. A ironia passou a substituir os debates políticos e a destruição de reputação se tornou uma norma, onde a mentira, agora chamada de fakenews, constitui-se numa prática que tem deixado a sociedade numa polarização perigosa, a afetar até mesmo as famílias.

Em meio a tudo isso minha filha, parece haver uma programação definitiva para a deflagração de uma terceira guerra mundial. Sim, mundial, porque guerras é o que não falta nesse mundo, espalhadas por praticamente todos os continentes. O mundo se arma não tanto silenciosamente como em épocas passadas, como por exemplo no entreguerras, década de 1930, chamada pelo historiador Eric Hobsbawm de período da paz armada. Mas a apologia às armas e ao armamento não diz respeito somente às nações que se preparam para a guerra. Internamente, em nosso país, numa nova cultura de perversão tem também se disseminado e amplificado a violência. A liberdade de acesso às armas, e até mesmo a negação do impacto disso sobre a violência que afeta a sociedade, patrocinada por uma base parlamentar bancada pelo segmento bélico, se tornou um culto. Caçadores (em um país onde a caça é proibida) e “colecionadores de armas”, montam arsenais particulares e transformam-se também em mercados paralelos para municiarem traficantes e milicianos. Com isso, as grandes cidades tornaram-se cada vez mais campo de guerras, onde até mesmo trincheiras são montadas em territórios urbanos dominadas por esses setores criminosos. Disfarçadamente, no entanto, é no ambiente político parlamentar que essa força cresce, ampliando o número de pessoas que possuem sob seus controles um verdadeiro aparato bélico, permitido por leis criadas no parlamento brasileiro.

Estou me estendendo nesta carta, minha filha, mas é que o mundo capotou nessas quase duas décadas, desde quando convivíamos com sua doce presença entre nós. E voltando aos tempos em que você era criança, do fatídico ataque aos EUA, seguindo de intensas guerras, não houve hiatos que possamos dizer que tempos melhores nos animavam. Logo veio uma grave crise econômica em 2008, que por pouco não se tornou uma grande depressão, mas que afetou economicamente todo o mundo. E suas consequências transformaram a geopolítica mundial, subtraindo parte do poder hegemônico da potência dominante e possibilitando a ascensão de outros países, principalmente a China, e o velho adversário situado geograficamente no Heartland, a Rússia. Aqui talvez eu exagere, pois não tive tempo de enquanto você conviveu conosco, de lhe passar um pouco dos conhecimentos históricos e geográficos de seu pai. Não era ainda o momento. Você devia curtir e aproveitar de sua infância, infelizmente tragada pelo destino. No entanto, você já acompanhava a nossa vida política e por várias vezes esteve conosco em eventos e campanhas das quais fizemos parte, ajudando alguns candidatos e candidatas de esquerda. Neste particular, minha euforia militante diminuiu, e muito devido ao impacto causado por sua morte. Nunca mais fui o mesmo, e entre altos e baixos, causados pela dor de sua partida, o olhar crítico sobre a realidade e a impotência das forças progressistas em conter as mudanças em curso na direção da perversão de uma extrema-direita odiosa, preconceituosa e criminosa, me levou a um gradativo afastamento, embora mantendo sempre minhas relações políticas e a minhas concepções progressistas e comunistas de mundo. Ainda sonho, relembrando a frase extraída do poema do Lênin, com um mundo mais justo e menos desigual. Como você sempre soube ser nossos desejos manifestados em nossas atividades políticas.

Neste dia 13 de dezembro de 2024, data de mais um ano depois de sua partida, de sua morte, ou de sua transformação em estrela, como sua mãe gosta de falar, vivemos em meio a um mundo de incertezas. Mas não podemos deixar de cumprir aquilo que a vida nos legou. Muito embora tristes, sempre, e saudosos com sua ausência, nos escoramos nos sucessos obtidos pelo seu irmão, Iago, que escala no ritmo adequado os degraus do conhecimento e já caminha para finalizar o mestrado em economia, com as portas já abertas, por sua competência para o doutorado. O que muito nos orgulha. E em cada comemoração que fazemos com ele, saiba minha filha, que você está sempre presente em nossas lembranças. Principalmente nesses momentos que podemos dizer serem felizes, em meio à tristeza por não a ter conosco.

Mas aprendi, desde quando busquei a terapia para contornar o sofrimento por sua partida, a tê-la sempre ao meu lado, ao nosso lado. Assim amenizamos um pouco a dor, a tristeza e o sofrimento por não poder tê-la presencialmente.

Ah, antes de finalizar não poderia esquecer de enfatizar, porque creio, ou pelo menos quero crer, que você acompanha, o sucesso da BORDANA, empreendimento coletivo, uma cooperativa de mulheres, criada a partir de seus desejos, e que hoje se tornou, com a força que sua mãe dedica desde o começo, um ambiente de trabalho, mas principalmente de solidariedade, resiliência e cooperação, com muito sucesso por meio da competência e dedicação de mulheres maravilhosas, a começar, naturalmente por sua mãe.

O Instituto Ana Carol está consolidado, mas a Bordana se tornou tão intensa que não dá tempo a sua mãe para tocar projetos por meio dele. Contudo, no próximo ano devo me aposentar da docência, após 30 anos lecionando na UFG, e a partir daí penso em poder assumir a condução dessa organização social, que criamos para imortalizar sua existência e poder contribuir de alguma maneira com alguma forma de transformação social em nossa comunidade.

Última foto da Carol, em
novembro de 2007. Ela estava
pronta, me aguardando para irmos
ao Quintart da Adufg.

Minha querida filha, você era tudo que eu esperava de bom na vida. Já tínhamos o Iago, e a esperança de ter uma filha alimentava meus desejos paternos. E você veio. Não tão intensa quanto seu irmão, mas com a doçura e a alegria que sempre pontuou seus anos de vida por aqui. Meu desejo se transformou em tragédia. Você se foi ainda na infância. Foi um duro golpe em nossas vidas. O tempo amenizou essa dor, embora o sofrimento por tamanha perda não desapareça, nem nunca irá desaparecer. Vamos vivendo com isso, e tendo sua presença como um norte a nos guiar, uma força inexplicável que nos acompanha e faz com que tenhamos você sempre ao nosso lado. Naturalmente, jamais será a mesma coisa que seria com a sua presença física, e o seu desenvolvimento entre a infância, a adolescência e a maturidade de ser mulher. Não pudemos acompanhar isso. Mas sonhamos. E os sonhos nos deixam em meio às tristezas, rompantes de alegrias. Não são meras ilusões, mas fantasias que criamos de ter você aqui, para sempre, em nossas vidas.

Beijos minha querida Carol. E saiba que o nosso amor por você é eterno. E isso está tatuado em meu braço, para sempre. Estará lá enquanto eu viver.