
"Reinações de Narizinho", foi o primeiro deles, e depois não parei mais. Quando saí da escola, aprovado no exame de Admissão para cursar o Ginasial (é, existia isso naquela época), continuei não somente visitando-a, como a convite da diretora e minha ex-professora me tornei responsável por organizar e cuidar de seus livros. O pagamento para isso? Continuar pegando emprestado as obras de Monteiro Lobato.

Viajei pelo mundo maravilhoso de Pedrinho, Narizinho, Emília, D. Benta, Tia Nastácia e tantos outros personagens do nosso folclore e de outras histórias fantásticas. Foi através de Monteiro Lobato que conheci a famosa obra de Miguel de Cervantes, "D. Quixote de La Mancha". Lobato adaptou essa obra para o universo de seus personagens, com o título de "D. Quixote das Crianças".
Depois, no final da década de 1970, já adolescente, me deliciava relembrando desses personagens, assistindo de vez em quando o programa "Sítio do Picapau Amarelo", em sua primeira versão, quando a TV Globo dava conta de fazer programas infantis assistíveis. Mas antes, outros emissoras já tinham de alguma forma adptado uma ou outra obra de Lobato.
Na semana que passou, quando tomei conhecimento de uma "censura" imposta a uma de suas obras - "Caçadas de Pedrinho" - pelo Conselho Nacional de Educação, a pedido de um cidadão, fiquei escandalizado. Pensei numa palavra que pudesse sintetizar tal medida e achei uma que parece um palavrão: estapafúrdia.
Acusar de racismo uma obra de literatura, sem contextualizá-la é abominável. Imagine quantas obras teriam que ser reeditadas com informes sobre frases hoje tidas como "politicamente incorretas". Quantos clássicos da literatura sobreviveriam ao crivo da intolerância?

Creio que está passando dos limites determinados comportamentos que, em nome de se combater discriminações caem em outro extremo, e podem até mesmo afetar a compreensão de como historicamente se comportava a sociedade brasileira em décadas e séculos passados. O que as novas gerações precisam é conhecer a nossa história, e saber quais e como os valores culturais determinavam a maneira como se construía o comportamento das pessoas e suas relações com aquelas de origens pobres e negras.
As manifestações preconceituosas contra os nordestinos, que aconteceram recentemente, fruto da radicalização do discurso ultra-conservador que conduziu a candidatura de José Serra, tem história. Ela se origina na maneira como a sociedade brasileira foi construída escorada nesses valores. A literatura nos ajuda a entender isso. Negá-la é como apagar nossa própria História.
A seguir, acrescento um artigo do Deputado Federal Aldo Rebelo, que escreveu bela crítica a essa sandice:
Monteiro Lobato no tribunal literário
Aldo Rebelo:
O parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) de que o livro "Caçadas de Pedrinho" deve ser proibido nas escolas públicas, ou ao menos estigmatizado com o ferrão do racismo, instala no Brasil um tribunal literário.
A obra de Monteiro Lobato, publicada em 1933, virou ré por denúncia -é esta a palavra do processo legal-de um cidadão de Brasília, e a Câmara de Educação Básica do Conselho opinou por sua exclusão do Programa Nacional Biblioteca na Escola.
Na melhor das hipóteses, a editora deverá incluir uma "nota explicativa" nas passagens incriminadas de "preconceitos, estereótipos ou doutrinações". O Conselho recomenda que entrem no índex "todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante".
Se o disparate prosperar, nenhuma grande obra será lida por nossos estudantes, a não ser que aguilhoada pela restrição da "nota explicativa" -a começar da Bíblia, com suas numerosas passagens acerca da "submissão da mulher", e dos livros de José de Alencar, Machado de Assis e Graciliano Ramos; dos de Nelson Rodrigues, nem se fale. Em todos cintilam trechos politicamente incorretos.
Incapaz de perceber a camada imaginária que se interpõe entre autor e personagem, o Conselho vê em "Caçadas de Pedrinho" preconceito de cor na passagem em que Tia Nastácia, construída por Lobato como topo da bondade humana e da sabedoria popular, é supostamente discriminada pela desbocada boneca Emília, "torneirinha de asneiras", nas palavras do próprio autor: "É guerra, e guerra das boas".

Não vai escapar ninguém -nem Tia Nastácia, que tem carne negra". Escapou aos censores que, ao final do livro, exatamente no fecho de ouro, Tia Nastácia se adianta e impede Dona Benta de se alojar no carrinho puxado pelo rinoceronte: "Tenha paciência -dizia a boa criatura. Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá...".
Não seria difícil a um intérprete minimamente atento observar que a personagem projeta a igualdade do ser humano a partir da consciência de sua cor. A maior extravagância literária de Monteiro Lobato foi o Jeca Tatu, pincelado no livro "Urupês", de 1918, como infamante retrato do brasileiro. Mereceria uma "nota explicativa"?
Disso encarregou-se, já em 1919, o jurista Rui Barbosa, na plataforma eleitoral "A Questão Social e Política no Brasil", ao interpretar o Jeca de Lobato, "símbolo de preguiça e fatalismo", como a visão que a oligarquia tinha do povo, "a síntese da concepção que têm, da nossa nacionalidade, os homens que a exploram".
Ou seja, é assim que se faz uma "nota explicativa": iluminando o texto com estudo, reflexão, debate, confronto de ideias, não com censuras de rodapé.
O caráter pernicioso dessas iniciativas não se esgota no campo literário. Decorre do erro do multiculturalismo, que reivindica a intervenção do Estado para autonomizar culturas, como se fossem minorias oprimidas em pé de guerra com a sociedade nacional.
Não tem sequer a graça da originalidade, pois é imitação servil dos Estados Unidos, país por séculos institucionalmente racista que hoje procura maquiar sua bipolaridade étnica com ações ditas afirmativas.
A distorção vem de lá, onde a obra de Mark Twain, abolicionista e anti-imperialista, é vítima dessas revisões ditas politicamente corretas. País mestiço por excelência, o Brasil dispensa a patacoada a que recorrem os que renunciam às lutas transformadoras da sociedade para tomar atalhos retóricos.
Com conselheiros desse nível, não admira que a educação esteja em situação tão difícil. Ressalvado o heroísmo dos professores, a escola pública se degrada e corre o risco de se tornar uma fonte de obscurantismo sob a orientação desses "guardiões" da cultura.
Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=140984&id_secao=11