quinta-feira, 9 de maio de 2024

SOBRE A AÇÃO DE “HATERS” E AS “FAKE NEWS” NO AMBIENTE UNIVERSITÁRIO E DURANTE A GREVE DOCENTE. E O QUE HÁ POR TRÁS DA INSISTÊNCIA EM SE CRIAR UM “COMANDO” DE GREVE.

Prof. Dr. Romualdo Pessoa
Diretor Financeiro do Adufg Sindicato
Prof. Titular do IESA/UFG

Infelizmente não estamos livres dos vícios, da agressividade, do discurso de ódio e das ações maldosas que permeiam o ambiente virtual que se espalharam pelas redes sociais desde 2017. Embora sabendo que esse comportamento é milenar, mas traduzido como mentiras, principalmente em ambientes de disputas pelo poder e de guerras, foi a partir das eleições estadunidenses daquele ano que essa expressão “fake news” se popularizou, tanto em sua referência quanto na prática.

Junto a isso, e com a disseminação das redes sociais, mas levado pelo ambiente político criado pelo uso das fake news, tornou-se também comum a ação de pessoas provocadoras, que pelo discurso passaram a serem chamadas de “haters”, ou “odiadores”.

Essas duas práticas são irmãs gêmeas, no sentido de destruir reputações, infernizar a vida de algum oponente ou de alguém que expresse opinião polêmica, não aceita por segmentos políticos conservadores, ou até mesmo por quem deseja desqualificar determinadas ideias, concepções e/ou opiniões, mas que não possuem argumentos sólidos, concretos ou até mesmo que sejam coerentes. 

As “fake news” se disseminam como um raio pelas redes sociais, numa situação de difícil contestação, porque já se sabe, por estudos e pesquisas realizadas, que há uma tendência de que as pessoas se guiem mais pelas mentiras do que pelas notícias fundamentadas em fatos reais. Esse é um mal que corrói a sociedade em tempos de informações digitalizadas, da velocidade com que a informação chega nas pessoas e como ela é compartilhada milhares de vezes, sem a observância da veracidade, ou até mesmo porque algumas pessoas desejam acreditar naquilo que está lendo. Neste último caso, essa prática se denominou, também principalmente a partir de 2017, como “pós-verdade”. Ou seja, o fato de as pessoas acreditarem somente naquilo que elas desejam acreditar. Não há espaço para o contraditório.

Nos últimos anos, aqui no Brasil a partir de 2018, essa prática se disseminou na mesma velocidade com que a extrema-direita tomou corpo. Obviamente porque desde então, acentuando-se com a eleição de Jair Bolsonaro e piorando durante a pandemia, isso se transformou numa arma política e ideológica.

A mentira sempre foi uma arma utilizada estrategicamente durante os períodos de guerra. E muito já se repetiu uma frase, “numa guerra a primeira vítima é a verdade”, cujo autor provavelmente seja Ésquilo, dramaturgo grego que viveu no ano VI antes da era cristã, pelo calendário ocidental. Porque esconder a verdade, ou espalhar mentiras, sempre foi uma prática para gerar confusão, omitir como os fatos reais de fato acontecem, além de demonizar adversários gerando dúvidas nas pessoas, que terminam por acreditar na versão mais propagandeada.

Bom, se essa já era uma preocupação há mais de dois milênios, nos imaginemos numa realidade em que a informação circula o mundo em segundos. Pois é neste mundo em que vivemos. E por essa velocidade, e com seus mecanismos que possibilitam essa rapidez, que as perversões atingiram uma proporção epidêmica, no Brasil e no mundo.

Essa prática perversa, por mais incrível que isso possa parecer, tem sido utilizada por setores do movimento docente, que defendem ardorosamente a postura sectária da entidade que se diz “sindicato nacional”. Num primeiro momento isso foi feito para atacar o nosso sindicato Adufg, espalhando de forma mentirosa que o modelo de plebiscito eletrônico não era confiável. Sim, algo parecido com a insistência da extrema-direita em acusar as urnas eletrônicas de não serem confiáveis.

Não bastasse espalhar mentiras para gerar dúvidas, passaram acusar o sindicato, argumentando que o mesmo não iria conduzir o movimento caso a greve fosse aprovada. Logo em seguida, agora atuando como “haters”, passaram a replicar com virulência, comentários nas postagens do sindicato nas redes sociais, e até mesmo em um vídeo que produzi logo depois da deflagração da greve, reafirmando nossa posição que a direção do movimento grevista seria de responsabilidade da diretoria do sindicato, legitimamente eleita pela maioria dos professores e professoras, para conduzir nossas lutas.

Essa sequência de mentiras tinha, claro, um objetivo. Desqualificar o nosso sindicato, e, por extensão, atingir a nossa federação, à qual o Adufg é vinculado, por sua capacidade já comprovada de conduzir negociações vitoriosas com o governo, como foi no caso da reformulação de nossa carreira, durante o Governo Dilma Roussef. Assim, tentando enfraquecer o sindicato por meio de mentiras (ou fake news), gerando dúvidas entre professores e professoras, visavam forçar a criação de um “comando local” de greve, pelo qual a condução da greve se daria por esse “comando”, ficando a diretoria submetida às decisões “democráticas” do que eles chamam de “base”. Para nós, que conhecemos essa prática de há muito tempo, uma clara tentativa golpista de usurpar o poder da diretoria do sindicato, delegado no processo eleitoral legítimo.

Esse tal “comando local de greve” (já criado paralelamente de forma desrespeitosa, dividindo o movimento) reportaria ao “comando nacional de greve” do Andes. O que seria outro golpe, pelo fato de o Adufg-Sindicato não ser vinculado à essa organização, mas sim ao Proifes-Federação. Essa confusão, há anos é provocativamente reforçada, por um grupo de colegas que faz oposição à diretoria do Sindicato. Nas assembleias, por meio de discursos dissimulados, nos acusam de estarmos alinhados ao governo, e com confusões também propositalmente criadas nesses fóruns, com o objetivo de dispersar uma parte dos colegas presentes, a fim de poder levar a cabo suas intenções golpistas, e por meio do “comando” o que desejam seria assumir o controle das decisões a serem “obrigatoriamente” implementadas pela diretoria da Adufg, porque pretensamente teria sido decisão da “base”.

Além dessas duas questões, que envolvem Andes x Proifes, em nível nacional, e diretoria do Sindicato-Adufg x golpe de quem não aceita resultado eleitoral, há outros elementos. Aí entramos no campo do uso de uma forma de luta legítima, mas que deve ser utilizada estrategicamente no momento de impasse final de negociações: a greve. Esses nossos colegas opositores, professores e professoras, que se julgam serem eles os “verdadeiros democratas”, e assim se denominam em grupo recém-criado responsável por criar esse “comando” paralelo, e que replicam aqui essa postura e comportamento sectário do Andes, tem na greve um fim, e não um meio, dentro de um processo de negociação. Ademais, buscam inserir um número grande de reivindicações, para além das questões salariais, para que, quando a última contraproposta for apresentada e não ser aquela por eles indicada desde o primeiro momento, possam assim defender o prosseguimento da greve ad-infinitum, conforme já aconteceu em anos anteriores.

A história está aí, é só pesquisar. Quantas vezes a Andes prosseguiu teimosamente na greve mesmo em fim de negociação, sem conseguir nenhum resultado positivo para sua proposta. Porque a greve passa mais a se constituir em uma arma política para emparedar e desgastar o governo, mesmo sendo este progressista e estar disposto a atender nossas demandas, apesar de que pela conjuntura isso se dê de forma mais lenta do que desejamos.

Entre fake-news, e ação de haters, o objetivo é claro. Nos conduzir para uma greve sem fim, com o objetivo de atender a seus interesses políticos de segmentos minoritários de extrema-esquerda, que neste particular se alinha à extrema-direita na estratégia de enfraquecer o governo Lula.

De nossa parte nos interessa conseguir, por meio da mesa de negociação em curso, algum avanço positivo em relação à proposta inicial feita pelo governo. Já avançamos, mas pensamos que podemos exigir mais e que o governo pode ceder um pouco mais. Assim se negocia, e dessa forma vamos chegando a acordos mesmo que não seja o ideal, mas que seja o possível em meio às situações difíceis pelas quais passa o governo, emparedado pelo Congresso e por bancadas fortemente organizada de setores de direita e extrema direita que sequestraram um terço do orçamento, por meio das chamadas “emendas impositivas”. Mas que seja o acordo possível, dando-se as garantias de correção em nossas carreiras, mantendo-se aberta mesa de negociação especificamente para a categoria docente, assim como também tenta fazer os servidores técnicos-administrativos.

A história se faz com verdades, não se faz com mentiras. A democracia pressupõe o livre desejo da maioria, seja para entrar em uma greve, seja para sair dela. O resultado disso deve ser respeitado, como também deve ser respeitado as escolhas legítimas nas eleições sindicais, sem que se tente o tempo inteiro usurpar um poder legitimamente concedido no processo eleitoral, pela maioria dos professores e professoras. Nosso sindicato, um dos mais forte do país, em termos de estruturas e de percentual de professores e professoras sindicalizados, tanto entre ativos como entre aposentados, merece respeito. E não será por meio de golpes que conseguirão nos dobrar, nem impedir que lideremos nossa categoria e conduzamos o movimento grevista com seriedade e sem manipulações.


quarta-feira, 1 de maio de 2024

DOCENTES DA UFG EM GREVE POR TEMPO INDETERMINADO

Quero me dirigir por meio deste artigo em meu Blog Gramática do Mundo, especialmente aos docentes da UFG, professoras e professores, tanto aos que participaram do plebiscito que definiu pela greve por tempo indeterminado, quanto aos que não participaram por alguma razão.

Após comunicado que será feito à reitoria, obedecendo os trâmites jurícos que são exigidos, a data marcada para o início da greve é dia 07 de maio.

Temos na UFG 2.124 docentes em atividade. Destes 1.575 são filiados ao Adufg-Sindicato, além de 800 aposentados. O resultado do plebiscito indica a ausência de 873 colegas que não opinaram sobre a greve. Trocando em miúdos o percentual dos que votaram a favor da greve é 29,47%.

Mas, do ponto de vista legal, estatutário e democraticamente legítimo, o que importa é o quantitativo de 50%+1, dos votantes, que definiu o resultado do plebiscito, além de considerarmos uma participação significativa para os padrões do movimento em nível nacional. É nisso que pelo aspecto legal temos que nos mirar e focar a luta. Muito embora essa matemática do número de votantes seja importante, porque nos indica a necessidade de dialogarmos ainda com colegas que não votaram, porque, naturalmente, devem obedecer à decisão democrática, não importando o resultado, diferença ou não votantes. Além de também nos indicar o caminho pelo qual devemos seguir, estrategicamente, na condução do movimento, atentando para algumas diferenças em relação ao modelo de organização que tínhamos anteriormente.

Agora o ADUFG é um Sindicato, com abrangência para todo o Estado de Goiás, incluindo aí além da Universidade Federal de Goiás, a Universidade Federal de Jataí e a Universidade Federal de Catalão, que pelo que rege nosso estatuto têm a autonomia para decidirem se entram, ou não em greve. No caso do plebiscito ao qual me refiro e aos encaminhamentos que devemos fazer, diz respeito à UFG.

Mas o que nos diferencia hoje, da forma como lidamos com greves no passado? Exatamente o fato de sermos um Sindicato local, e, portanto, não estamos vinculados a um “sindicato nacional”. Até porque, nossa vinculação estatutária é ao PROIFES- Federação. E isso diz muito sobre a forma como será conduzido o nosso movimento grevista. Para além do que esperneia setores de oposição, o que faz parte da democracia.

Mas a diretoria do Adufg-Sindicato não irá abrir mão da condução da greve, e muito menos da definição quanto às formas de encaminhamentos das questões diretamente ligadas ao movimento. Afinal, foi para isso que fomos eleitos, e estamos atentos e refratários a qualquer tentativa golpista de usurpar nossos comandos. Seguiremos conduzindo as ações de conformidade com nossa prática política, aprovada pela maioria dos sindicalizados, professoras e professores, que elegeram nossa diretoria. 

Outro fator nos diferencia de momentos passados. Estamos hoje vinculados a uma Federação, o Proifes, e não mais ao Andes, pelo simples fato que somos tão sindicato quanto aquele que se diz “nacional” embora não seja. Portanto, pela própria organização nossa, não teremos “Comando de Greve Local”, visto que as ações aqui na UFG serão organizadas e dirigidas pela diretoria do Adufg-Sindicato. Da mesma forma, não enviaremos representante a nenhum “Comando Nacional de Greve”, visto que a forma de organização da Federação é diferenciada. Mas teremos, sim, por indicação da diretoria, representação nossa em Brasília, além dos diretores da Adufg que já fazem parte do Conselho de Representantes, outras pessoas que possam contribuir nos encaminhamentos necessários junto ao PROIFES e aos demais sindicatos que fazem parte da Federação, alguns dos quais em universidades que também definiram por entrar em greve.

É importante salientar que não paramos as negociações. Por meio do Proifes-Federação foi encaminhado na terça-feira (31/04), um ofício ao Ministério de Gestão (MGI), uma nova proposta, que avança em relação ao que o governo apresentou, com indicação de um percentual de reajuste em 2024, e modificação também para os anos seguintes. Isso pode ser verificado por meio do site do Proifes Federação, acessando link: https://proifes.org.br/proifes-entrega-ao-governo-nova-contraproposta-de-reajuste-e-reestruturacao-de-carreira-do-magisterio-superior-e-ebtt/.

Assim, refirmamos nossa prática democrática de negociar, e garantiremos nossa paralização, conforme decisão da categoria por meio da maioria dos votantes no plebiscito, e seguiremos firmes na luta, de conformidade com o que nos foi delegado pelo conjunto das professoras e professores da UFG, entre os que estão em atividades e os que já se aposentaram, e que mantém suas filiações ao Adufg-Sindicato. Tão logo recebamos resposta do governo, por meio da mesa de negociação, chamaremos imediatamente a Assembleia Geral, para definir sobre a aceitação ou não da proposta, e, naturalmente, continuidade ou não da greve.

A LUTA CONTINUA!!


quinta-feira, 11 de abril de 2024

O DILEMA DA ESFINGE: A UNIVERSIDADE, A LUTA SALARIAL E “O QUE FAZER”.

Em outras oportunidades, isso está registrado em alguns artigos neste blog, usei dessa parte da mitologia grega para indicar o quanto se torna difícil buscar soluções em meio a situações que nos são, ou de difíceis compreensão, ou por ignorarmos um aspecto importante, a necessidade de compreensão da conjuntura na qual estamos metidos. A resposta ao dilema da esfinge, nas circunstâncias em que vivemos, seguramente não deixaria nenhuma pessoa surpresa com o resultado da charada decifrada por Édipo.

“— Qual é o animal que de manhã anda com quatro pés, à tarde com dois e à noite com três?” Algo aparentemente simples ao ser indagado, mas não encontrava quem respondesse corretamente. Assim é o dilema que penso estarmos vivendo. Não há surpresa, mas relutamos em que fazer, embora o próprio governo nos empurre para a radicalização. 

Mas, existe um ditado popular que, creio, a maioria conhece: “prudência e caldo de galinha, não fazem mal a ninguém”. Em menos de um ano e meio estávamos às voltas com uma apreensão terrível, será que conviveríamos por mais quatro anos com uma pessoa abjeta a nos presidir, que sempre teve como um dos alvos prioritários a universidade? E não creio que seja difícil responder se perguntarmos: estamos livres desse estrupício? Talvez o estrupício, sim, por enquanto, mas não das perversidades de sua turma cujo objetivo foi espalhar escolas militares por todo o país, bem ao estilo produzido durante o 3º Reich, sob o comando de Adolf Hitler, a partir de 1934. Sugiro que leiam sobre como estavam estruturadas as escolas durante o regime nazista, em que se espelhou o governo Bolsonaro.

Não. Não estamos livres da sombra que nos turvou o nosso caminho nas universidades por mais de quatro anos. Um período sombrio para as ciências, as pesquisas, as universidades públicas, e um ataque bem direto e objetivo às áreas de humanidades, por seu caráter mais crítico e contundente nas análises históricas e sociais.

Alguns poderão dizer que é uma postura defensiva, e que não podemos abdicar de lutar pelos nossos direitos. Tudo bem, nos cabe debater a situação, dialeticamente. Mas sem estigmas, e muito menos subir o tom no discurso, como forma de radicalizar nas ações. No entanto, que estejam abertos a receber o contragolpe quando dissermos que nessa conjuntura posta, radicalizar agora contra o governo facilita o retorno da extrema-direita ao Poder, a começar pelas eleições deste ano.

O que não quer dizer que o governo não possa ser criticado. Isso é necessário em uma democracia, até para que essa queda de braço não termine por fortalecer o lado conservador de um governo que é de coalizão e está nas mãos de uma maioria também conservadora no Congresso Nacional. Nem muito menos que devemos ficar de braços cruzados e aceitar uma negativa do governo em nos negar reposição salarial, diante de perdas que já chegam a 40% acumuladas ao longo de pelo menos dez anos.

Mas se trata de saber como lidar com uma situação complexa, tendo a convicção que não desejamos, sob hipótese alguma, voltar aos tempos sombrios dos governos Temer e Bolsonaro. E isso não está descartado. As eleições deste ano serão um momento importante para sabermos isso.

Posto isso como devemos lidar com essa complexidade, que nos coloca num fio de uma navalha? Primeiro buscar incansavelmente negociação com o governo, mesmo com falas que visam nos esmorecer, mas que termina tomando um efeito contrário. Facilitar as coisas para quem tem uma atração inexplicável por greve. É Impressionante como determinados setores do serviço público, e na universidade também, entram em êxtase na defesa da greve. Compreendo que o movimento grevista deve ser a última alternativa, quando se esgotam todas as tentativas nas mesas de negociação, principalmente na setorial.

É incompreensível buscar de imediato mobilização para greve, com mesas de negociação em andamento, quando o martelo ainda não foi batido. Por outro lado, nos deixa abismado em saber que por quatro anos de governo Bolsonaro, e mais os dois anos de Michel Temer, nenhuma mesa de negociação foi aberta, e nem por isso se chamou um movimento grevista. Me lembro que o último desses movimentos foi em 2015, durante o governo Dilma Rousseff, que, embora eu tenha defendido a greve naquele momento, não desconheço que isso também foi fundamental para aumentar o desgaste da presidenta, o que levou ao seu impeachment golpista. Ou seja, é um paradoxo, crescer o movimento e buscar confrontar o governo quando são de esquerda e estão abertos à negociação. Ao passo que essa mesma gritaria e enfrentamento não se deu quando a universidade estava sendo atacada de todas as maneiras, e ficamos por mais de quatro anos sem nenhum reajuste.

O que me revolta também, é o fato de muitos de nossos colegas, inclusive quem defende a greve, não aparecer nas frentes de lutas, necessárias para dar visibilidade ao movimento. Uma boa parte se limita a parar suas aulas na graduação, mas prosseguem em suas atividades cotidianas ligadas à pós-graduação e pesquisa. Além de aproveitarem para acelerar a produção de alguns textos, necessários e tudo isso com datas definidas.

Enfim, todo esse processo de luta, que inclua a greve é complexo. E entendo que não obteremos resultados só com paralisação, mas com muito debate com o governo, articulação política e participação de forma efetiva e convincente, com propostas coerentes, na mesa de negociação.

Não entro na questão dos servidores técnicos-administrativos, mesmo considerando a greve intempestiva. Porque esse segmento talvez seja o mais prejudicado em sua carreira dentre todos os servidores públicos federais. Então considero sua luta justa e apoio a decisão de deflagração de greve, pois penso que neste caso já se passou de um limite aceitável. O que parece haver uma sinalização do governo para atender a proposta de plano de carreira dos técnicos-administrativos.

Entendo diante de tudo isso, e mesmo querendo ser prudente na questão da defesa de greve, que houve uma falta de habilidade do governo ao dizer desde o começo das negociações que teríamos 0% de reajuste, e que os aumentos nos benefícios não atenderiam aos aposentados e aposentadas. Ao fazer isso, os interlocutores do governo mexeram num vespeiro, pelo fato de termos um grande percentual de perdas salariais nesses dez últimos anos, que está em torno de 40%.

Por fim, enfatizo minha opinião pela negociação, mas penso, como a maioria, que ficarmos sem reajuste este ano é inaceitável. Já apresentamos a proposta, e esperamos que o governo tenha juízo, a fim de evitar a extensão das greves, e garanta um percentual este ano que possa fazer diminuir as perdas salariais desse período. E mais do que isso, que possa corrigir algumas distorções em nossa carreira, a começar por cumprir o piso salarial do magistério, que ele próprio cobra que os estados e municípios cumpram.

Resta o nosso dilema. Uma paralisação nossa, diferentemente de uma fábrica, ou de um setor de fiscalização, não afeta o processo de produção. Em alguns casos com parada completa da cadeia produtiva. Uma greve no serviço público, tão atacado pelo neoliberalismo e com um fantasma de uma reforma administrativa pairando sobre nossos pescoços, só afeta na relação com o governo, e contribui para o desgaste do mesmo. Mas não tem impacto político na sociedade. Seguramente ampliará aquilo que nos consome e já é motivo de muitas preocupações: o aumento da evasão de estudantes, principalmente em áreas de licenciaturas. Ademais, complica muito nosso calendário, que, a muito custo, deveremos normalizar neste ano. Sendo este mais um fator de desgaste e enfraquecimento das instituições de ensino superior. Porque ao fim, e ao cabo, seremos obrigados a repor todos os dias paralisados.

Não adianta fechar os olhos para essas questões, porque afetam nossas rotinas, a depender do quanto uma greve demora a chegar ao fim. Porque sabemos como ela começa, mas não como ela pode terminar. Tudo isso deve ser balizado no momento em que formos tomar uma decisão radical. Que poderá acontecer, caso o governo insista em negar reajuste este ano. Torço para que o Governo Lula – porque votei nele e o apoio - não repita os equívocos de outros governos, de direita, que por muito tempo deixaram a comunidade universitária sob cerco permanente, tensões e negativa de reconhecer nosso direito a reajuste anual.


domingo, 10 de dezembro de 2023

16 ANOS SEM NOSSA QUERIDA ANA CAROL

COMO COMPREENDO A MORTE E COMO SINTO A PRESENÇA DE QUEM JÁ MORREU, E QUE ESTÁ NAS LEMBRANÇAS, EM NOSSAS MEMÓRIAS

https://youtu.be/JVhPrA6zmI8

Há 16 anos vivi o pior momento de minha vida. No fatídico dia 13 de dezembro de 2007, perdi minha querida filha Ana Carolina, aos 10 anos de idade. De lá para cá, claro, muita coisa mudou. Nós envelhecemos, o mundo se transformou radicalmente, e posso dizer sem medo de errar, para pior. Isso não se refere a mim, mas as sociedades, como um todo. Se afunila uma crise sistêmica que passa imperceptível, porque as pessoas vivem suas rotinas e os meios de comunicação procuram formas de evitar considerar a existência de uma realidade tóxica, causada pelo acirramento das contradições nas sociedades.

Algo não mudou, no entanto, na minha rotina após esses 16 anos vividos, mais sofridos do que antes, de lembranças latentes e permanentes. Porque quando perdemos uma filha, ou um filho, jamais esquecemos... nunca esqueceremos. O que não mudou, então, é a nossa permanente presença, sempre no dia 13 de dezembro, em visita à sua sepultura. Outros dois momentos nos levam até lá, a data de seu aniversário, em 05 de março; e no dia dedicado aos mortos, 02 de novembro.

Em uma das crônicas que escrevi para o livro que dediquei a ela, “DEPOIS QUE VOCÊ PARTIU”, eu explico por que não professando nenhuma religião, mantenho essa rotina, ao lado de minha companheira Celma Grace. Ela, diferente de mim, que sou ateu, é agnóstica, e professa a sua espiritualidade à sua maneira.

Infelizmente, para nosso sofrimento e enorme tristeza, já não temos mais nossa filha entre nós. Ela permanece nas lembranças, e na crença dos que acreditam haver alguma forma de experiencia espiritual após a morte. Eu, como materialista que sou, não tenho essa crença, embora respeite quem quer que assim veja o mundo, ou o pós-mundo.

Então o que me leva rotineiramente ao cemitério, a visitar uma sepultura onde o que existe são os restos mortais de minha filha? Sei de outros amigos que passaram pela mesma dor que eu, e adotam outro comportamento. Respeito, pois cada pessoa lida com a morte e com a perda de entes queridos de maneira diferente. E isso não significa sentir menos ou mais essas perdas. Mas representam escolhas de cada uma dessas pessoas, que seguramente carregam dentro de si seus sentimentos sinceros. Não as julgo.

Para mim a morte é algo sempre presente em nossas vidas. Não sabemos quando, nem escolhemos a forma como vamos morrer. Embora alguns resolvam, por questões psicológicas e angustiantes, tirar a sua própria vida. Mas a morte é inevitável, e a única certeza que temos na vida: que em algum momento de nossas vidas cessaremos de existir e morreremos.

Para um materialista, isso para além de me considerar ateu, porque essa é uma denominação “concedida” pelos cristãos, lidar com a morte pode ser mais angustiante do que para quem acredita na espiritualidade, e na existência de uma vida pós-morte. A religião se torna, assim, um refúgio, por onde se aceita a morte e se prepara para ela. Ou, de maneira mais contundente, o espiritismo.

Não creio nisso. A morte, na concepção materialista é o momento em que deixamos de existir para a vida, e o nosso cérebro para de funcionar. Mesmo que por um certo tempo, por meio de aparelhos, partes de nosso corpo ainda funcionem, e por isso são utilizadas para transplantes, já não há mais vida em um corpo onde o cérebro tenha parado de funcionar. Ocorre de, em algumas vezes, haver uma falência múltipla de órgãos, que implicará também no fim daquele corpo. É trágico tratar disso, mas é a pura consequência de nossa existência. De uma maneira, ou de outra, passaremos por isso.

Penso na morte como um sono profundo, definitivo, onde não haverá mais a possibilidade de sonharmos, e do qual jamais sairemos. É o fim, dessa vida. Sem reagir, o corpo padece e se consumirá ou na forma tradicional do sepultamento, ou no método que cresce como escolha, da cremação.

Restarão as lembranças, que estarão presentes nas mentes dos que ficarão vivos, de maneira mais fortes nos primeiros momentos daquela perda, ou de forma significativa pelo resto da vida das pessoas que vivenciaram a história de quem partiu, particularmente os parentes, e mais especialmente em datas específicas. Porque, por mais que amemos aquelas pessoas que já partiram, nossas vidas devem seguir em frente. Porque continuamos a viver.

Mas essas lembranças, os possíveis diálogos imaginários que possamos fazer para quem morreu, principalmente uma filha, não tem a ver com a crença na permanência de um espírito que vaga até encontrar um “paraíso”, onde os encontraremos quando também morrermos. Para mim, se trata de estabelecer um diálogo com minhas próprias lembranças, e de manter sempre presente o amor que sinto pela minha filha, apesar de ela não estar mais entre nós.

Para mim, importa agora tê-la viva nas minhas lembranças, em minhas memórias, principalmente ela, porque perder uma filha um filho, foge do que imaginamos ser a ordem natural de nossas vidas. Esperamos sepultar nossos pais, e desejamos que eles vivam até os cem anos, com saúde. Já nossos filhos e filhas, perdê-los é como retirar partes de nossos corpos. É uma ferida que jamais cicatriza, se mantém aberta, e cuidamos dela de maneira diferente, dependendo de como cada um, ou cada uma, veja a morte. E aprendemos a viver assim.

Não é uma questão de ser religioso ou não, acreditar na espiritualidade ou ser ateu. É um sentimento que extrapola qualquer relação com crenças religiosas. A única coisa que precisamos para manter presente esses sentimentos e essas relações é o amor. Esse é o sentimento que percorre nosso corpo, entre o coração e o cérebro, e nos faz manter nossas lembranças sempre num estágio de permanente presença, que nos faz sonhar até mesmo com quem já não está mais entre nós.

Embora não seja visto assim, o coração tem um papel fundamental nessa relação. Para mim, é lá que está o “deus” que cada um de nós procura. Pode ser um deus de bondade, ou um deus que justifique todas as perversidades, guerras, mortes, crimes. Ele se liga inevitavelmente com o cérebro, e esses dois órgãos agem concomitantemente definindo nossas vidas, nossa forma de ser e o nosso caráter. Não é o que “criamos” pelo nosso cérebro que nos faz ser o que somos. Importa pouco “inventarmos” um deus, se nossos corações estiverem estimulados por ódios e por indiferenças diante das coisas, das outras pessoas e de uma realidade social perversa. Infelizmente, a maior parte da humanidade se refere ao coração de maneira abstrata, figurativa.

Eis porque mantenho minha rotina, mesmo sendo “ateu”, de ir frequentemente ao cemitério, nas datas especiais, para ali, em frente à sepultura de minha filha, travar um monólogo, embora eu queira ser que se trate de um diálogo. Mas é um monólogo. Ela não me ouvirá. Mas do meu coração trato como se ela estivesse ouvindo, e minhas memórias em minha mente, trazem as lembranças de sua vida, no tempo em que esteve conosco.

Essa é a primeira vez, de tantas vezes que já escrevi sobre esses sentimentos que nutro por minha filha, desde quando ela partiu, em que faço referência explícita à minha condição de ateu, ou materialista.

Quero assim romper com essas concepções odiosas, de quem julga por meio de um coração recheado de ódio e intolerância, ser melhor por “crer” em um deus. Ter uma religião, ou acreditar em um deus, não torna as pessoas melhores, nem piores. O que define uma pessoa é o seu caráter. Não é possível imaginar que existe um deus de perversão, que estimule o ódio, que justifique a intolerância e os crimes praticados em seu nome. O que vemos ao longo dos séculos, e milênios, são violências sendo praticadas em nome de Deus. Nessas condições o que determina esse comportamento é a ilusão criada nas mentes, que impõe a essas pessoas um grau de intolerância que a leva a não aceitar que o outro não seja seguidor de suas crenças, e o faz sentir ódio e até matar, com a justificativa perversa que todos tem que acreditar em seu deus.

O materialista não age no sentido de combater de forma odiosa as crenças na espiritualidade ou nos mitos, que a nosso ver, são criados pelo ser humano. Mas visa explicar o mundo pela concretude da vida. Por meio dos sentidos, da objetividade de nossa existência real, daquilo que é comprovável. No entanto, compreendemos que o ser humano sempre precisou da crença em deuses e na existência da vida para além da morte, como forma de serem resilientes diante de adversidades inevitáveis, até mesmo como lidar com a morte. Isso não é necessariamente algo ruim. Se torna ruim quando se transforma numa justificativa para a disseminação de ódio e intolerância, quando se deseja obrigar, por meio dessas crenças, que todos os demais se enquadrem nessas concepções. Isso é o que se chama, doutrinação.

Assim, sigo visitando minha filha em sua última morada. Transportando os sentimentos bons de sua existência para o meu coração e mantendo-a sempre presente ao meu lado. Sofro, choro, sinto tristeza... sua ausência é para mim ainda incompreensível e resultado de uma perversão. Afinal, filhos não deveriam morrer antes de seus pais. Mas cada vez mais não temos como evitar isso, em um mundo transtornado, cujos valores se vão com enorme intensidade precipício abaixo. Doenças como câncer e leucemia, vírus, bactérias, pesticidas, guerras, esses dentre outros elementos nocivos, aliados à própria perversão humana, seguem vitimando crianças em grau insuportável. E, apesar de tudo isso, sinto alegria em alguns momentos, me divirto, mantenho algumas esperanças, porque, como disse, sigo vivo em meio a tudo isso. Só não perco a empatia, mesmo com a frustração por ver o mundo indo em direção oposta a tudo o que sonhei. Eu até posso ser um pouco pessimista, embora me julgue sendo realista, mas a geração de meu filho tem a obrigação de ser otimista, ou de acreditar em um mundo diferente décadas adiante.

No silêncio que cerca a sepultura de minha filha, tento ali me comunicar mentalmente, e nesses pensamentos transmito as minhas sensações sobre o mundo, a falta que ela faz, e fico ainda a imaginar como seriam nossas vidas com ela entre nós, hoje com 26 anos. Seguramente estaria ao lado daquelas pessoas que incansavelmente lutam contra as injustiças sociais, pelos direitos das mulheres, se incorporando às causas antirracistas e por um sistema social mais justo e menos desigual.

Sei que ela seria uma guerreira, como a Mulan, personagem forte da história, ou do folclore, oriental chinês. Em um dos últimos diálogos que travei com ela, ainda antes de ser levada para a UTI, disse que ela era uma guerreira, e perguntei com qual personagem ela se identificava: Mulan ou Pocahontas, filmes que havíamos assistidos juntos. Ela escolheu Mulan. Até hoje vejo e revejo os filmes sobre a Mulan, que eternizo nas lembranças que tenho dela.

Assim, essa rotina, e esse diálogo imaginário com minha filha, persistirá enquanto eu estiver vivo. Lá, onde seu corpo repousa, também estão sepultados meu pai e minha mãe. Também é um sentimento de perda enorme, muitos de nós sabemos disso. Mas nada comparável ao sentimento que ainda sinto, com um misto de revolta, pela morte de minha filha.

A razão da revolta está explícita no texto. Porque sempre considerei que são os filhos que devem enterrar seus pais e mães, e não o contrário. Só que esse é um sentimento, que nem sempre segue o destino que desejamos e muitas vezes não temos como evitar.

Encerro por aqui, mais uma crônica que tem para mim um objetivo claro, amenizar as minhas angústias e saudades de minha filha. Ana Carol está eternizada em nossas memórias, mas merecia ter vivido por muito mais tempo do que viveu. Seguirei, portanto, produzindo textos como esses, mesmo depois de tantos outros que já escrevi e se encontra no meu livro e neste blog Gramática do Mundo. Blog este que foi justamente criado para servir de anteparo, ou de catarse, ao sofrimento que se impôs sobre nós desde sua morte.

13 de dezembro trará, sempre, essas lembranças mais fortes. E os finais de ano, bem como as festas que tradicionalmente festejávamos, jamais serão como eram nos tempos em que Carol estava conosco. Se tornou um tempo frio e sombrio, que procuramos alimentar de esperanças com a presença de nosso filho, de nossos parentes, amigos e amigas. Mas nada será como antes.

Me resta seguir o lema que adotei, e que intitula o meu blog: “Carpe diem quam minimum credula postero!”[1] Até que o amanhã não exista mais para mim.



[1] "Odes" (I, 11.8) do poeta romano Horácio (65 - 8 AC): Carpe diem, quam minimum credula póstero. (Aproveite o dia, confia o mínimo no amanhã).

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

MINHAS AVENTURAS PELAS CERCANIAS DO ANTONIO ACCIOLY, A TOCA DO DRAGÃO

O ano de 1978 foi importante para mim, e, como veremos mais adiante, foi também um ano de destaque para dois outros personagens que se destacaram na Campininha, mais especificamente nas imediações da Rua do Comércio, Travessa G e rua P-25.

Por ali eu aportei nesse ano, vindo do interior goiano, de Morrinhos, onde vivi por cinco anos após chegar da Bahia, nascido que sou em Alagoinhas, recôncavo baiano. Não foi um bom ano para mim, embora importante, por ter vindo pra Goiânia. Mas as dificuldades eram muito grandes para conseguir emprego. Na minha rotina, de todos os dias sair de bicicleta para procurar emprego, a rota era sempre pelo caminho da P-25 que me levava à 24 de outubro.

Minha primeira residência foi em um conjunto de barracões, na rua do Comércio quase esquina com a Senador Jaime. Pouco tempo depois, com a chegada de mais amigos da cidade de Morrinhos, passamos a morar em uma casa na mesma rua, na frente dos barracões. Nosso circuito era dali para a 24 de outubro e nos finais de semana para a Vila Santa Helena. Nesse trajeto que envolve a P-25, a 24 de Outubro e a Senador Jaime, um imenso espaço nos atraía. E às vezes parávamos para ver alguns treinos do Dragão da Campininha. Tempos depois passei também a frequentar o restaurante Salerno, situado sob as arquibancadas do Estádio Antonio Accioly. Quase sempre à noite, para aproveitar de um ótimo escaldado que ali era servido, dentre outras refeições.

Fiquei muito tempo atraído pelos treinos do Dragão, mas sem ainda demonstrar interesse em virar torcedor. Eu tinha uma outra paixão esportiva. Desde minha infância, ainda na Bahia, aprendi a torcer para o Vasco da Gama, como decorrência de disputas de futebol de botão, diversão que nos envolvia bastante, e de forma organizada. Disputávamos torneios, com tabelas, juízes e regras, em jogos de botões de acrílicos. E desde que fui sorteado para ficar com o time da cruz de malta tornei-me torcedor, já são mais de 50 anos como vascaíno. Eu ainda tinha a crença de que deveríamos torcer somente para um time, e me mantinha fiel ao Vasco, paixão que carrego até hoje, e naturalmente morrerei vascaíno, e com uma outra paixão no futebol. 

Mas, como em todos os estados, as rivalidades que chamam a atenção no futebol são as dos clubes regionais, e no caso de capitais, os times que, sendo mais fortes, terminam polarizando e ampliando suas torcidas. Esse é o grande deleite do futebol, a rivalidade. Eu acompanhava de longe as discussões polêmicas e apaixonadas sobre os times aqui de Goiânia, embora eu estivesse bem perto da toca do Dragão. Bem ali ao lado de onde eu morava.

Aos poucos fui entendendo que para participar das resenhas com os amigos, era preciso eu fazer uma escolha sobre qual time eu iria torcer aqui em Goiânia, lugar para onde eu me mudara e acreditava ser aqui o ponto da curva do meu destino. Como de fato foi... tem sido.

Naquela década o dragão, infelizmente não estava cuspindo fogo. Somando-se da última conquista, em 1970, isso falando em campeonatos estaduais (em 1971 foi campeão do torneio integração disputando o título com a Ponte Preta, no estádio Olímpico), o Atlético voltou a ser campeão somente em 1985, em cima do Goiás.

O que pesou a favor do Atlético, foi a rivalidade entre Goiás e Vila Nova, que se acentuava naquele período, porque os dois passaram a polarizar a disputa, e isso me fez distanciar dos dois, já que eu procurava não tomar posição quando os amigos iniciavam uma discussão. E fui sendo empurrado a escolher por qual time eu iria torcer, saindo da polarização que existia na época, e não me importando para o fato do Dragão estar em um jejum tão longo. Afinal, nós éramos vizinhos, compartilhávamos o mesmo bairro, e isso em si já seria um fator preponderante que foi definindo a minha escolha.

O Dragão tinha seus brilhos, além das labaredas que soltava. O final da década de 70 fez surgir uma das melhores duplas do Atlético, e dois dos melhores jogadores goianos daquela década: Baltazar e Gilberto. Gilberto era um craque, com um estilo refinado de jogo que fez despertar o interesse de grandes clubes, indo jogar no Fluminense. Baltazar tinha um faro de gol impressionante, e justamente em 1978 ele arrebentou, marcando 31 gols e se tornando recordista na artilharia em campeonato goiano, depois indo jogar no Grêmio e de lá rumou para a Europa, indo jogar no Atlético de Madri. 

Eu via ali mais um argumento para escolher o Dragão, aqueles jovens atraíam a atenção de uma nova geração, e eu passei a me envolver cada vez mais, participando das resenhas destacando o brilho dos jogadores atleticanos. E minha curiosidade aumentava cada vez que passava pelo Antonio Acioly, cotidianamente, já que eu precisava sair de onde eu morava, na Travessa G, e ia até a 24 de outubro, pegar o coletivo para ir trabalhar.

No entanto havia uma coisa que me incomodava ainda, e talvez por isso eu tenha demorado tanto a assumir ser torcedor de fato do Dragão: as cores de sua camisa principal, o vermelho e preto. Por ser vascaíno isso me incomodava, por me lembrar do rubro negro carioca, maior rival do time da cruz de malta. Eu vivia então o dilema de sentir a atração pelo dragão e me ver preso àquele simbolismo. Aos poucos fui eliminando essa cisma, porque afinal havia outros clubes rubro-negros, como o Vitória da Bahia, o Sport de Recife, o Athletico Paranaense. Dessa forma me aproximei cada vez mais do Dragão, já decidido a ser essa a minha escolha por um time goiano.

Mas houve um fato interessante, que terminou definindo a minha condição de atleticano, e me orgulhando disso. Em 1979, já estando mais tranquilo por ter encontrado emprego, me matriculei no Colégio Objetivo, na Avenida Mato Grosso. Era difícil para mim compatibilizar o emprego com o estudo, pois eu trabalhava como almoxarife em uma empresa de construção civil na Avenida Mutirão, Setor Oeste, e nem sempre conseguia sair a tempo de chegar para assistir a primeira aula.

Ora, o que tem essa minha passagem pelo Colégio Objetivo, com a história de eu me tornar torcedor do Dragão. Pois bem, eu nunca fui muito CDF (os mais antigos entenderão essa sigla), mas preferia sentar-me mais à frente do que no fundo da sala, já que lá quase sempre encontramos os que adoram distrair a atenção dos demais. E naquela turma minha não era diferente. Dentre esses havia dois que se destacavam, e gostavam de “bagunçar” a aula. Esses dois eram ninguém menos que Baltazar, que estava arrebentando em campo, e o Gilberto, outro que estava jogando o fino da bola.

Pronto, me senti em casa e mais próximo ainda do Atlético. Eles bagunçavam de fato, em campo e na sala de aula. Afinal, estavam vivendo um ótimo momento. Eu não consegui me manter no curso, em função dos constantes atrasos, mas os dois também não. Naquele ano um foi para o Rio de Janeiro e o outro para Porto Alegre, e depois fizeram sucesso tornando-se craques e ídolos em seus times.

Assim os deuses do futebol me faziam ficar cada vez mais perto do Dragão, e fui definindo aos poucos a minha condição de torcedor rubro negro goiano. Em 1979 me mudei da vila operária. Só naquela cercania eu morei em três casas, na Rua do Comércio, Travessa G e Rua P-19. Apesar de me mudar daquela região, indo para outra bem distante na parte leste de Goiânia, onde vivo até hoje, meus laços com a Campininha permaneceram ainda por mais tempo, e bem ao lado do Estádio Antonio Accioly. Em 1980 fui trabalhar no jornal Diário da Manhã, que começou a circular naquele ano, e ali trabalhei até 1983, tempo mais do que suficiente para me fazer definir minha escolha e me tornar definitivamente atleticano, com muito orgulho. 

Em 1985, quando o Dragão foi campeão, nossos destinos já tinham sido cruzados. Essa foi uma decisão acertadíssima.

DRAGÃÃÃÃOOO!!!


quinta-feira, 23 de novembro de 2023

OS ERROS DE ESTRATÉGIA DA ESQUERDA BRASILEIRA, NO COMBATE À EXTREMA-DIREITA E AO FASCISMO

Imagem - Site Barão de Itararé

Vou ser duro nessa minha análise crítica. Não propriamente sobre a conjuntura na Argentina, mas sobre como as esquerdas latino-americanas têm se comportado diante das escolhas políticas que precisaram encarar. Para saber como vamos lidar com esse crescimento da influência, principalmente entre as massas populares, da extrema direita, é preciso saber como e porque chegamos até esse ponto. 

Alguma resposta precisa ser dada. Não adianta ficar nos indignando com as escolhas que o povo faz, ou como boa parte desse povo tem incorporado esse discurso fascista... ou neo-fascista... ou neo-nazista... Afinal, vamos culpar aqueles que assimilaram o discurso da extrema-direita apenas tratando-os como ignorantes e alienados? Um rebanho de cegos seguidores de “mitos”, personagens ridículos de uma nova forma de fazer política? Como os apelidaram os cientistas políticos: os outsiders. É essa a explicação para todo esse turbilhão de alterações conjunturais em sociedades radicalizadas politicamente?

Eu aprendi ao longo de minha formação política, desde quando entrei na universidade como estudante, no começo dos anos 1980, que a metodologia mais importante para a compreensão da realidade é a dialética, criada por filósofos na antiguidade, e aperfeiçoada no século XIX por Hegel e depois Marx e Engels. Por essa metodologia, e por essa dimensão filosófica, compreendemos o quanto é fundamental entendermos as contradições que governam nossas vidas, na natureza e na sociedade.

As contradições, o seu choque a partir das lutas dos contrários, o conhecimento da realidade objetiva, compreendendo as causas geradoras dos fatos, seus efeitos e as consequências, nos possibilitam ter a dimensão da realidade objetiva e concreta.

Assim, podemos dizer que não existe nenhum fato que não possa ser explicado a partir de suas causas geradoras. Ele, esse fato, tem uma razão de existir. Não surge do nada, nem podemos conceder ao acaso a condução do processo histórico. O que precisamos é saber fazer uma análise concreta da realidade objetiva. Ponto!

Quero ser enfático em uma questão, pois acredito que é consensual entre os que possuem ligações com a esquerda: desde a virada dos anos 2000, mais especificamente a partir do ataque às torres gêmeas, chegando ao ápice com a crise dos chamado “sub-primes” e da especulação imobiliária nos EUA em 2008, como consequência da ganância que é o motor do capitalismo, o mundo entrou em uma crise econômica sistêmica da qual não se recuperou. De lá para cá o que vemos no planeta é uma forte disputa geopolítica pelo controle da economia, com a disputa pela hegemonia entre grandes potências, principalmente EUA e China. A Globalização mudou de lado, foi demonizada por Donald Trump e defendida por Xi Jin Ping.

Ora, como a esquerda se comportou desde a queda da União Soviética e da crise do chamado Socialismo Real? Substituímos um discurso revolucionário, de questionamento das estruturas do sistema capitalista, como altamente perversa a impulsionar uma vergonhosa desigualdade social, pela disputa eleitoral através dos caminhos da chamada “democracia ocidental”. A fim de atingir o poder político, assumir o controle político e comandar os destinos do nosso país. Assim como também passou a acontecer em outros países.

E deu certo, no aspecto político. Houve uma onda de eleições de lideranças de esquerda assumindo governos na América Latina e em outras partes do mundo. Até mesmo Barak Obama entrou nessa conta. Embora muito do que ele prometeu não foi cumprido. Mas ele foi importante, como os demais governos de esquerda em um aspecto: fez despertar com bastante força a luta identitária, antirracista e do empoderamento das mulheres. Questões importantes, a reforçar a necessária luta dos direitos humanos.

Acontece que o capitalismo não se movimenta por esses caminhos. O que determina a sua essência são as questões econômicas, a base, ou a infraestrutura que constrói todo o arcabouço do sistema. Inclusive no aspecto do sucesso ou fracasso de um determinado governo, seja à direita ou à esquerda.

Então precisamos separar três aspectos. O econômico, o político e o social. Quando é possível a um grupo político alcançar sucesso na democracia? Quando há um fracasso econômico no comando do Estado, levando a que a população passe a ter descrédito por aquele grupo partidário ou ideológico que está à frente do governo. Assim aconteceu por muito tempo, quando levantamos a bandeira anticapitalista, em defesa de um sistema mais justo socialmente, e contra as estruturas construídas dentro da lógica sistêmica capitalista. Bem como no ataque forte e ideológico contra as classes que comandavam, e comandam, o poder econômico seja com as grandes corporações, bancos e indústrias, a burguesia urbana; e contra o grande latifúndio, produtor de monocultura para exportação, perfidamente concentracionista. Passamos a combater cada vez mais o rentismo e o latifúndio. E a esquerda cresceu, à medida em que a crise econômica capitalista se intensificava.

Ora, com o poder político na mão, e o controle do governo seja na federação ou em estados importantes, o que coube a esquerda fazer? Aí podemos usar de forma ilustrativa a metáfora do cachorro que corre atrás dos carros exibindo os dentes para os pneus. Mas o que fazer quando esses veículos param? Não tem o que fazer. Ou pouco há para fazer.

Talvez eu esteja sendo bastante duro, até mesmo nessa comparação. Tudo bem. Mantenho o meu raciocínio. Vamos debater a questão, caso alguém se disponha. Por muito tempo esbravejamos contra o caráter desigual, perverso e concentrador de riquezas do capitalismo, e por isso a esquerda angariou um número cada vez maior de simpatizantes, socialistas ou não. Essas pessoas, através do discurso da esquerda, compreendiam a perversão na lógica sistêmica capitalista.

No entanto, o que se ofereceu para essa massa? O discurso do social, dos direitos humanos, de gênero e do antirracismo. Todas as questões absolutamente importantes numa sociedade desigual e preconceituosa. Mas e quanto às críticas feitas ao caráter perverso, desigual e concentrador do capitalismo? Ou às mudanças na economia que possibilitaria uma melhoria nas condições de vida das pessoas, que veriam não mais o paraíso nos céus, mas a garantia de vida digna na terra?

Deixou-se de lado o discurso antissistema e se passou à absoluta ineficaz tarefa de salvar o capitalismo, ou de pelo menos tentar moderar suas perversões. E, no controle do Estado, a difícil tarefa de lidar com contradições que impunham a necessária subserviência de seus governos aos poderes dos senhores locais, personagens corruptos que por décadas dominam a política passando a herança de suas riquezas e de suas influências políticas para filhos e filhas.

As oligarquias agrárias regionais só se fortaleceram. E passamos a mudar a nomenclatura da luta contra esses segmentos. Deixamos de nominá-los de latifundiários para nos referirmos a agronegócio. Isso é como deixar de classificar os venenos que se espalham pelas produções como agrotóxicos e passar a chamá-los de “defensivos agrícolas”. Esse foi um dos erros, porque o “agro virou pop”, e se tornou a alavanca do PIB nacional. E os fazendeiros latifundiários prosseguiram ampliando seu poder e grilando cada vez mais terras.

Amenizamos as críticas aos bancos, porque eles passaram a ser parceiros importantes em muitos programas e políticas de governos. E se adequaram bem ao discurso de “investimento no social”. A burguesia migrou fortemente para o rentismo e a indústria brasileira foi indo ladeira abaixo, escorada no investimento estrangeiro em novas fontes de tecnologias que, por óbvio, expulsou milhões de pessoas de seus empregos. E lá se vai aumento na concentração de riquezas e de renda.

Fomos perdendo gradativamente nossos discursos revolucionário, à medida em que se percebia a possibilidade de ascensão ao poder, mediante a participação no processo eleitoral. E isso aconteceu, e foi se espalhando.

Mas sem nenhuma mudança no caráter desigual da estrutura do sistema, já em meio a uma crise forte, oriunda de uma globalização fracassada. Os Estados se fragilizaram salvando corporações financeiras, e até mesmo grandes fábricas automobilísticas, e o desemprego foi se espalhando cada vez mais. Ao mesmo tempo, o parlamento majoritariamente conservador insistia em cortar direitos dos trabalhadores, seja no tocante ao trabalho, como na questão previdenciária.

E a esquerda no Poder. Em meio à crise econômica e tentando geri-la. Pois, claro, é papel de quem está no governo. Sendo assim, de pedra nos tornamos vidraças. As pessoas, que acreditaram no discurso da construção de uma nova sociedade, de redução das desigualdades, tornaram-se revoltadas, ressentidas, desesperançadas e fragilizadas em suas condições sociais. Frustradas em suas melhores expectativas de passarem a viver com dignidade.

Isso aconteceu por um tempo, para boa parte da população, por meio de programas sociais importantes, que amenizaram as condições péssimas de vida de dezenas de milhões de pessoas. Mas isso não foi sustentável. Simplesmente porque não é somente sair da miséria para a pobreza que contenta as pessoas no capitalismo. Pior ainda é uma classe média não ser saciada em sua expectativa de chegar ao topo da pirâmide social. Naturalmente ela se radicaliza e joga por terra todo o apoio concedido, se suas expectativas não são atendias.

O que temos assistido neste século é um fracasso econômico dos estados na tentativa de salvar um sistema moribundo, mas que mantém as classes dominantes cada vez mais ricas, no limite de suas vergonhosas contradições, pois isso se dá com um aumento crescente do endividamento da maioria da população. Diante disso, e da impossibilidade de apresentar aquilo que foi oferecido por décadas, de a esquerda assumir o poder para combater a desigualdade que o capitalismo impunha, o que restou aos governos progressistas foi elevar o tom na defesa de questões sociais, radicalizando na defesa de legislações e políticas que pelo menos amenizasse o sofrimento de boa parte da população, sujeita a preconceitos os mais perversos possíveis.

Só que isso despertou, por outro lado, uma extrema-direita que vivia nos porões da política, sem até então nenhum tipo de protagonismo que a colocasse como alternativa ao poder, sempre disputado entre a esquerda, centro e centro-esquerda no espectro político brasileiro, desde a redemocratização do país. Aliou-se ao fundamentalismo evangélico e ao movimento conservador católico carismático, alguns pastores se tornaram parlamentares e construíram um forte movimento dentro e fora do Congresso Nacional, passando a influenciar os rumos da política institucional e a liderar uma malta de pessoas desiludidas, fracassadas e assustadas com a falta de perspectiva e insegurança crescente. Foi fácil arrastar essa turba para engrossar a pauta da extrema-direita, juntando a alta burguesia, os latifundiários e os movimentos religiosos conservadores.

Por outro lado, foi instrumentalizado todo um aparato midiático tradicional e oficial, na defesa dos interesses das camadas dominantes, e uma onda de influenciadores religiosos e outros personagens oportunistas, a fim de desconstruir todo o discurso da esquerda na defesa de um sistema alternativo ao capitalismo. E, mediante a acusação de corrupção (sempre um risco para quem controla o estado) e de usar as instituições para o interesse ideológico, construindo uma falsa narrativa de guerra cultural, disseminando entre a população dúvida e raiva.

A partir de todo esse movimento, e enquanto a esquerda se enrolava tentando gerenciar a crise do estado capitalista, a extrema-direita ergueu o discurso de “anti-sistema”. Numa postura absolutamente hipócrita, porque esse segmento se coloca contra as estruturas políticas e a democracia (embora defensores do autoritarismo e das ditaduras), não contra o sistema capitalista. Mas é uma dubiedade que confunde pessoas que não possuem discernimento suficiente para compreender a dimensão de cada significado desses objetivos. E o discurso “antissistêmico” da extrema-direita passou a envolver principalmente quem por muito tempo era os pilares dos discursos revolucionários: a juventude. Isso foi muito marcante na Argentina, mas também aqui no Brasil.

Mesclando o discurso forte, antissistema, com a pauta conservadora dos costumes, na contraposição às lutas encampadas pela esquerda, e tornada praticamente a principal bandeira de suas ações, a extrema-direita passou a se fortalecer, e, a construir um forte discurso reacionário, na defesa de questões que se imaginava estarem resolvidas, a ponto de surgirem personagens defendendo a aberrações de governos ditatoriais militares. E isso sendo aceito e disseminado na sociedade, desde o topo à base da pirâmide social.

Nessas circunstâncias, não criadas pelas esquerdas, mas pela tentativa de se adaptar-se a elas e amenizar a crise (condição natural para quem assume governo em um Estado capitalista) a extrema direita foi acuando cada vez mais os setores progressistas e a apresentar os mais diabólicos e extremistas personagens, com discursos claramente fascistas, eivados de todos os tipos de preconceitos e fortemente violentos.

Isso levou os setores conservadores a construírem uma base parlamentar enorme, como nunca se viu na política brasileira, e a ganharem eleições nos estados e no governo brasileiro, mas não somente por aqui. Isso já vinha acontecendo pela Europa (Itália, Polônia, Hungria, Grécia...), nos Estados Unidos, e em boa parte da América Latina, até chegar ao mais novo energúmeno a ser alçado à condição de presidente: o histriônico Milei, agora eleito presidente da Argentina, a meu ver, sem muita surpresa. Porque tudo isso que relatei anteriormente, embora com foco no Brasil, aconteceu também na Argentina. E ainda vai acontecer em diversos outros países, enquanto a esquerda não voltar a ter um discurso forte, verdadeiramente contra o sistema capitalista, e apontando objetivamente alternativas a essas estruturas perversas que existem.

Não estou apresentando nenhuma receita, e sei que essa é a parte mais difícil. Mas só sai de uma enrascada tentando entender como se chegou a ela.  E se me prolonguei nessa abordagem, falando o que pra mim por todo esse tempo sempre foi o óbvio (e já escrevi muito sobre isso neste blog), é para dizer que não há surpresa nenhuma no que está acontecendo. A esquerda precisa mudar a estratégia. Como a extrema-direita fez. Para retomar um discurso que já se fazia até as datas iniciais deste século. Ou seja, naquele momento em que as pessoas começaram a acreditar nos discursos e eleger partidos de esquerda para os governos, como consequência da crise sistêmica capitalista.

Não estou sugerindo que se esqueçam bandeiras importantes na luta pelos direitos humanos, nas questões de gêneros ou antirracistas. Mas essas não podem se constituir em embates radicalizados, de importância maior do que aquelas que nos mostrem, de forma geral, quais são as raízes de todos esses males que nos consomem. É necessário que saiamos da especificidade e retomemos bandeiras gerais, de fato antissistêmicas, num enfrentamento ideológico claro, de forma a contribuir com a formação política e intelectual das camada oprimidas, no objetivo daquilo que sempre nos miramos, mesmo que numa esperança utópica, da construção de um sistema mais justo e menos desigual. Apontar as mazelas do capitalismo, mesmo para quem é parlamentar ou está em um governo, deve ser o objetivo de quem se elegeu criando expectativas e estimulando sonhos dos desfavorecidos socialmente, e de uma classe média que por muito tempo apostou nas pautas dos partidos de esquerda.

O combate à pobreza e à desigualdade social não pode ser travado sem deixar claro que essas condições são criadas por um sistema injusto, escorado na ganância e na usura. Só assim poderemos nos livrar dos Bolsonaros e dos Mileis, que podem se multiplicar, caso a esquerda não seja convincente na apresentação de alternativas ao sistema capitalista. E é preciso deixar claro que a extrema-direita não é, nem nunca foi, antissistema. Mas usa de um discurso escorado na falsa e hipócrita defesa de costumes, apoiando-se no medo que se dissemina na maneira como se dá essa comunicação, por meio da religião, embora também reflexo da crise: fragilidade, ignorância, medo e ressentimento, alimentam a extrema-direita e faz ressurgir a sombra do fascismo.

É difícil reverter isso? É. Mais difícil, no entanto, está sendo viver nessa conjuntura política e nessa crise estrutural sistêmica. E enquanto eu escrevia esse texto me deparei com o mais novo trabalho sobre as desigualdades sociais, refletidas no Relatório da Oxfam sobre o consumo dos 1% mais ricos, escandalosamente maior do que os 99% restante. E que “Em 2030, as emissões do 1% mais rico do mundo deverá ser 22 vezes superior ao limite seguro de emissões permitidas”.

Ou seja, não há salvação para a humanidade enquanto perdurar essa lógica que movimenta expansivamente o sistema capitalista. É dever da esquerda retomar seu discurso e sua prática revolucionária antissistêmica. Refazer a utopia, e fazer as pessoas sonharem novamente com um outro mundo, sem essa lógica perversa e desigual que o capitalismo impõe. Antes que seja tarde.

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* Esse artigo foi produzido, com algumas alterações, a partir de um vídeo publicado no Canal do YouTube @ROMUCAPESSOA: https://youtu.be/bEA-2vFPzik