sexta-feira, 26 de junho de 2020

NASCENTES: O BERÇO DAS ÁGUAS – ONDE TUDO COMEÇA

Imagem, CPT
Quando nos debruçamos sobre os estudos a respeito da questão hídrica, sob quaisquer aspectos, independente de estarmos falando de crise ou não, mesmo que seja para o simples entendimento de um (quase) mistério que cerca a importância da água em nossa vida, passa despercebido algo que é crucial para termos o entendimento necessário sobre esse líquido vital. Sabemos por um deslumbramento natural para onde vão as águas. Ou para os grandes rios, essa é uma resposta óbvia, mas, também sabemos que dos grandes rios o destino final das águas são os oceanos.
Mas, de onde vem a água? Mais do que um mistério, porque se torna evidente ao mínimo estudo sobre o ciclo da água, isso representa um aspecto da cultura que se criou a respeito desse líquido essencial para nossas vidas. Talvez por estar correndo livremente, pelo menos é o que se imagina, e ser considerado um bem comum (ao menos até então), há uma certa ignorância natural sobre a necessidade e importância de sabermos qual é o ponto de partida dos mananciais, córregos, rios... e até mesmo para se ter uma compreensão em sua origem da formação de lagos, lagoas, açudes, barragens, mares fechados, oceanos. Talvez a questão não seja a indiferença, e até mesmo é lícito considerar que não há ignorância a respeito disso. Mas é fato, que se negligencia o quão é crucial sabermos a origem da água, o conhecimento do ciclo hidrológico, e, naturalmente, a necessidade de protegermos as nascentes, por onde ela retorna à superfície nesse deslumbrante e permanente ciclo que não é infinito, como também não é o fogo, o vento, o ar... a vida.
Óbvio em tudo isso, também, é que sem água não há vida. O que torna esse líquido vital para o ser humano e para todos os seres vivos, de todos os gêneros e espécies.
Na verdade, não se pode falar em um início, de onde se originaria a água, visto que o ciclo, que por seu próprio significado compreende uma permanente rotatividade e renovação, nesse caso por sua essência, não nos permite apontar por onde ele começaria. Naturalmente estamos falando de uma dinâmica que não é meramente repetitiva, mas que devemos observá-la dialeticamente, pois carrega em si mesmo mais do que elementos da matemática. Estamos falando de contradições e de situações que envolvem a natureza como um todo, e, exatamente por isso as condições que são criadas pelas ações antrópicas, terminam por quebrar essa relação, afetando todo um processo que deveria ser permanente e completo em toda a sua complexidade.
É possível, no entanto, apontar um começo de uma brotação da água, por onde ela passa a circular pela superfície da terra, para além de toda a sua dinâmica subterrânea, como parte de seu ciclo. O ponto de partida das águas superficiais é, portanto, uma nascente, por onde a água irá brotar para seguir o seu curso formador de mananciais, rios até desembocar no oceano, e depois evaporar para reiniciar o ciclo. E nesse percurso a vida, em toda a sua essência, se servirá para sobrevivência. Fauna, flora, seres humanos, constroem seus habitats em ambientes que possam lhes garantir água para sobreviver. Mesmo que de forma desequilibrada, com regiões em escassez, ou em estresse hídrico, nenhum ser vivo pode prescindir desse líquido vital para suas vidas.
Nascente - Córrego Vaca Brava - Goiânia
Ocorre que a humanidade, de forma geral, e em nosso caso, o Brasil, com toda a abundância de água, se veem diante de uma situação alarmante quando se trata de recursos hídricos. Entender como isso acontece poderia parecer banal, visto que basta olhar para o ciclo hidrológico para compreender que esse processo precisa ser completado no tempo definido pela natureza. Mas como é possível faltar água, quando ela está disponível? Elementar, seu ciclo tornou-se incompleto, porque foi abortado por ação humana, decorrente das formas de organização, das escolhas dos lugares que fizemos por séculos e milênios, para habitarmos, e pela necessidade de produzirmos em alta escala a fim de alimentarmos uma população que cresceu demasiadamente, e mais ainda a sua capacidade de consumir. Ao exportarmos água, embutida nos produtos (água virtual), quebramos em parte esse círculo.
Contraditoriamente isso se deu exatamente pela capacidade que adquirimos de produzir alimentos a partir do desenvolvimento tecnológico, mas essencialmente por termos controlado esse líquido essencial para vivermos. Na lógica de cada sistema em seu tempo, a água foi se tornando um “bálsamo”, para utilizarmos uma palavra de origem meio asiática e meio africana, mas oriental em seu sentido clássico, como algo que causa conforto, alivia e consola.
Porém dois aspectos devem ser ressaltados para encontrarmos as razões que nos levam a uma encruzilhada, decorrente dessas ações predatórias, ou mesmo que se diga equilibradas quando se faz da tecnologia um mecanismo para ampliar produtividade, e que se aplica também no uso das águas, principalmente na agricultura e na indústria.
Um deles é o crescimento demográfico exponencial, em enormes cidades superpopulosas com péssimos recortes urbanísticos, onde sobressai a destruição de mananciais que foram fundamentais em seus inícios para abastecimento de uma população que cresceu aceleradamente, ao passo em que o recurso hídrico para atender a essa demanda foi se deteriorando pela absoluta ausência de preocupação em mantê-lo disponível para uso dessas cidades que se expandiam, tanto em termos populacionais quanto com o aumento de indústrias.
Nascente: Córrego Beija Flor - Setor Jaó (Gyn)
Nas cidades, outrora surgidas sempre próximas a córregos ou rios, o desprezo por esses mananciais tornou-se uma constante nas políticas desenvolvidas por inúmeros gestores, e pela própria população, que farta das inoperâncias administrativas transformaram esses cursos d’águas em esgotos abertos.
O resultado disso, e suas consequências são visíveis, e óbvias em seus resultados perversos, que se volta contra a própria população. E, para sermos mais diretos e objetivos, contra quase todo o tipo de vida, excluindo-se aqueles microrganismos que se proliferam em função dessas condições de falta de higiene e saneamento básico: fungos, bactérias e até mesmo vírus (embora exista uma polêmica sobre se esses são seres vivos ou não), mas que encontram nesses ambientes os hospedeiros para suas reproduções terrivelmente aceleradas.
Mas não são somente as águas superficiais, mananciais que cortam as cidades ou seus entornos, que se tornam condutores de doenças, motivados pela sujeira e poluição de toda espécie. As fossas, cavadas para dar suporte às necessidades que não encontram suportes em ações de órgãos públicos, ou a ausência de saneamento básico, carregam para os lençóis freáticos todo o tipo de microrganismos que contaminam as águas subterrâneas. Acrescente-se a isso diversos produtos químicos que fazem parte de nosso estilo de vida, tanto em áreas urbanas quanto em seus entornos e zonas rurais, com um enorme contingente de agrotóxico que causa um sem-número de doenças fatais, como diversos tipos de câncer, ou que deixam sequelas, com crianças nascendo com malformações genéticas.
Nascente: Córrego Botafogo
Goiânia
Outro aspecto reside na absoluta ausência de capacidade dos órgãos públicos no atendimento a uma quantidade enorme de bairros periféricos, a partir de um forte crescimento horizontal, que se espalha pelas grandes cidades, e agora com mais força em função de uma quantidade enorme de condomínios fechados, acentuando um problema sério: o esgotamento dos lençóis freáticos.
Se investigarmos encontraremos facilmente locais onde antes brotavam nascentes, e em alguns casos logo adiante poderíamos encontrar um pequeno lago. Mas atualmente vamos nos deparar com um ressecamento dessas nascentes e o gradativo desaparecimento desses lagos, que só retornam a acumular água quando o período chuvoso reaparece. Há naturalmente uma razão, dentre outras, para isso. A ampliação dessa população periférica, e de residências não servidas pelo abastecimento público, leva a que, seja individualmente ou via administrações de uma enorme quantidade de condomínios, a alternativa para que se tenha água a servir-lhes se dê pela utilização da água dos lençóis freáticos, por meio de poços artesianos. Tanto na dimensão de atender a toda uma comunidade, ou com os minipoços artesianos sendo construídos individualmente. E podemos ainda colocar nessa conta, com um consumo ainda maior, as grandes empresas, seja indústrias ou grandes atacadistas, que buscam as proximidades das rodovias e pontos distantes do centro urbano, naturalmente não servidos pelo poder público para o abastecimento hídrico.
As consequências de todo esse processo nos trás de volta ao começo: as nascentes. Com o nível dos lençóis freáticos diminuindo gradativamente pelo uso acentuado desses poços artesianos, e uma distribuição pluviométrica aleatória, a recomposição obedecendo o ciclo hidrológico se torna mais lenta do que naturalmente deveria ocorrer. Assim falta força nesses lençóis para trazer a água de volta para a superfície, por meio das nascentes. Ou, se não quisermos usar essa expressão, podemos dizer que por uma questão natural, o volume dos lençóis freáticos deixam de ser suficientes para trazer a água de volta, via nascentes, para a superfície, ressecando lagos, mananciais (que se tornam intermitentes) e provocando estresse hídricos, ou levando a situações de escassez permanente, caminho para o qual parece estarmos indo.
Não nos parece, diante de todo essa incapacidade pública de lidar com o problema, que as medidas que estão sendo pensadas venham para resolver os problemas. A recente aprovação de um projeto de lei que retira do poder público a responsabilidade com isso, e divide com a ânsia gananciosa das empresas privadas, não nos permite sermos otimistas quanto ao que acontecerá em um futuro próximo.
Nascente: Córrego Capim Puba - Goiânia
Incapaz de compreender a dimensão de uma realidade perversa, criada pela própria inépcia em lidar com essa questão, o estado abdica de assumir o protagonismo para adotar medidas urgentes e transfere para empresários sequiosos de lucros as ações tanto na gestão da água, quanto do saneamento. Não é preciso ser muito inteligente para perceber que tudo isso resultará em uma maior desigualdade no atendimento à essas demandas, como já aconteceu em outras partes do mundo, levando a que alguns governos recuassem nesses processos perversos de privatização desses serviços.
Se o poder público, abre mão de suas responsabilidades, e joga isso para o poder usurário, só restará às comunidades se juntarem, resistir e defender a todo o custo a manutenção de medidas que preservem as nascentes, que protejam os mananciais e que se preocupem em recompor uma natureza destruída pelo nosso estilo de vida, e pela lógica do funcionamento do sistema em que vivemos.
Como está acontecendo em outros países, está nas mãos dessas comunidades uma reação a tudo isso, pelo bem de suas sobrevivências. E não será exagero dizermos que estamos entrando numa era em que as próximas guerras, ou conflitos internos, se darão pela necessidade de defender os recursos hídricos, isso em meio a todos os tipos de desequilíbrios que já enfrentamos, como consequência de nossa incapacidade de lidarmos com o óbvio: a natureza é viva, permeada de contradições, e destruí-la é meio caminho andado para acabar com a nossa existência. Sem água, não há vida. E são pelas nascentes que elas devem retornar aos seus caminhos naturais.
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(*) As fotos, com exceção da primeira, foram feitas por alun@s da disciplina Geopolítica das Águas (2019), em um trabalho de grupo e seminário que visava avaliar as condições das nascentes na cidade de Goiânia e Aparecida de Goiânia.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

SOBRE A HISTÓRIA E AS ESTÁTUAS QUE SÃO ALVOS DA MULTIDÃO

“O historiador deixa a futurologia para os outros.
Mas tem uma vantagem sobre o futurólogo.
A história o ajuda, se não a predizer o futuro,
ao menos a reconhecer o que há de historicamente novo
no presente – e com isso, talvez, lançar luz sobre o futuro”.
(ERIC HOBSBAWM)[1]

Estátua de Churchill sofre ataque no Reino Unido - O Dia
Nestes tempos insidiosos nem tudo ficou limitado à resistência e o embate na luta contra o vírus “sars cov-2”. Despertou nas ruas, a partir dos Estados Unidos, historicamente preso a um passado sombrio escravagista, os clamores centenários de quem vive em estado de opressão permanente. As pessoas de pele negra, os pretos como orgulhosamente insistem em serem chamados, vítimas constantes de um racismo estrutural, tal como aqui no Brasil, tomaram as ruas acompanhados por multidões de gente que se assume antirracista, a fim de quebrar um ciclo de repressão policial violenta e mortífera que se repete há séculos.
Em meio a essa explosão de fúria justificada, como reação à violência absolutamente desnecessária e injustificada de uma estrutura policial racista e vinculada às ideias e comportamento típicas dos supremacistas brancos, uma onda que se espalhou por outras partes do mundo, tornaram-se alvos da multidão estátuas que glorificam colonizadores responsáveis por impor esse viés de uma permissividade que justifica no imaginário da sociedade a distinção entre heróis e bandidos pela cor de suas peles, pela condição social ou pelo local de moradia. Como se vê muito também aqui no Brasil, as periferias das cidades, as comunidades pobres são alvos permanentemente de ações violentas das polícias, quase sempre terminando em assassinatos de jovens inocentes. E inverte-se a ordem no sentir medo de quem.
Em sequência a essa reação, que levou a destruição ou a ameaça de retirada de estátuas de praças e locais públicos, uma série de questionamentos e reportagens circularam pelos meios de comunicação, tentando compreender esses atos tidos como extremos e de vandalismos, ou debatendo quais as importâncias desses símbolos que se espalham por praticamente todas as grandes cidades do mundo. Em muitos casos tornados atrativos turísticos pela grandiosidade das artes que os erigiram a essa condição, mas sem que a história possa expor a nu a plena realidade do que está por trás desses personagens.
Estátua de soldado confederado, nos EUA
derrubado pela multidão - O Estadão
Quando muito são apresentados relatos oficiais, que mais servem para criar falsos mitos em torno desses indivíduos (em sua imensa maioria homens, e brancos) por meio de uma iconografia manipulada, da valorização da imagem e do menosprezo pela história e por aqueles que eventualmente não possuíam vozes para se contrapor à força de seus colonizadores, dos mercenários que vagavam por esse país à caça de índios e ao saque de ouro, e dos coronéis cujas patentes foram adquiridas por atos políticos em função das forças regionais que possuíam.
O que nos falta fazer é a iconologia, para que possamos entender a história e/ou o tema que está por trás de cada um desses personagens, representados por estátuas, nomes de logradouros e construções públicas, e saber o verdadeiro significado de seus atos. Evidentemente com todo o cuidado para não cometermos o erro do anacronismo. Mas é essencial que a cada tempo possamos fazer uma revisão historiográfica ampla, de forma que a sociedade possa saber o que representa ou representou essas figuras. É claro que suas exposições dessa forma não é um mero sinal de agradecimento. Elas representam, por meio desse simbolismo, valores que estão ligados às classes sociais dominantes, em cada época. E, por prosseguirem dominando enquanto classes pelos tempos que advieram, significam a manutenção desses valores, e objetivamente visam prosseguir no intento de persistir no controle do poder político.
Estátua de Buda destruída pelo Talibã
 no Afeganistão - BBC
Portanto, são símbolos que tem suas valorações artísticas, embora alguns de profundo mal gosto, mas carregam na verdade elementos de uma cultura política, marcados pela imposição da força da classe dominante e a subalternação do pobre, da população mais fragilizada econômica e culturalmente. Em quaisquer circunstâncias que analisarmos, em qualquer país, essas estátuas representam esses poderes e sua manutenção. Houve uma época, ao final do século XIX e começo do século XX, que isso passou a se denominar “estatuamania”, segundo Eric Hobsbawm.
O que já foi chamado de “estatuamania” atingiu o auge entre 1870 e 1914, quando 150 estátuas foram erigidas em Paris, contra apenas 26 de 1815 a 1870 – e estas basicamente figuras militares, quase todas removidas depois de 1870. (...) Mas depois da Grande Guerra, com exceção dos novos memoriais de guerra universais, estátuas de bronze e mármore saíram claramente de moda”.[2]
Não devemos olhar para essas representações somente pelo aspecto artístico, que atrai a atenção muitas vezes pela beleza da plasticidade com que foi produzida. Porque ela carrega, sempre, um forte simbolismo. Qualquer que seja a obra de arte ela reflete uma concepção ideológica, muitas vezes marcada por um movimento que rompe com modelos anteriores, e se impõe com novos traçados, e que se adequa ao tempo em que foi construída. Independente de analisarmos sob o viés político à esquerda ou à direita. Ela é representativa de algum tipo de expressão que reflete aquele momento, ou para se contrapor ao poder estabelecido, e confrontá-lo, ou para reproduzir a ideologia dominante.
Mural de Guernica - Wikipedia
Conta-se que Pablo Picasso foi interpelado por um oficial franquista sobre a obra que estava sendo exposta, e que acabara de ser pintada. “Foi você que fez isso”? Teria perguntado o oficial. E Picasso teria respondido: “Não, foram vocês”. Era a pintura denominada “Guernica”, uma das mais importantes obras artísticas, representativa do estilo cubista, que teve neste artista espanhol uma de suas principais referências. Nela ele retratou o bombardeio alemão nazista, em 1937, sobre a cidade de Guernica, durante a guerra civil espanhola.
Por isso que não somente a iconografia é importante quando se trata de analisar uma obra de arte. Mas também é preciso fazer um estudo iconológico, que possa interpretar de maneira mais aprofundada todo o contexto que levou à produção daquela peça, os condicionantes históricos. Ou seja, que vá além da análise estética e compreenda a contextualização do tempo em que ela se deu e as concepções ideológicas que ela carrega.
Em sendo assim, podemos sim, e devemos questionar as razões de determinadas representações artísticas prevalecerem sobre um tempo que está além da sua existência enquanto objeto artístico a que ela se destinava. Sua permanência obedece a interesses que estão ligados aos poderes, às ideologias dominantes e à manutenção de status quo, com as consequentes determinações que estão por trás de todo o seu simbolismo: controle ideológico, conformação social e aceitação de uma história oficial, para além da realidade imanente.
Para prosseguir mais um pouco na análise feita por HOBSBAWM:
Há três demandas básicas que o poder costuma fazer à arte, e que o poder absoluto faz em escala bem maior do que autoridades mais limitadas. A primeira delas é demonstrar a glória e o triunfo do próprio poder (...); A segunda grande função da arte nesse contexto era organizar o poder como drama público. Rituais e cerimônias eram essenciais para o processo político (...); Um terceiro serviço que a arte poderia prestar ao poder era educacional ou propagandístico: ela poderia ensinar, informar e inculcar o sistema de valores do Estado.[3]
Estátua de Lênim derrubada por grupos
de extrema-direita  na Ucrânia - FSP
Historicamente acontecem, ou aconteceram, movimentos insurrecionais, ou revoluções, que se espalham por todos os tempos em diversos lugares do mundo. Para qualquer um deles que se imponha haverá simbolismos que estarão representados em obras artísticas, e que quase sempre, e inevitavelmente, eles substituirão outros que representavam os valores dominantes que existiam até então. Não é raro vermos essas representações artísticas, principalmente estátuas, serem derrubadas no bojo de algumas dessas revoltas populares, mesmo que elas não se sagrem vitoriosas. Mas caso o processo de transformação social se dê com a intensidade que compreende a alteração radical das classes no comando do poder político e econômico, certamente os símbolos que as representavam serão derrubados. Na melhor das hipóteses eles farão parte de algum museu, onde essas relíquias serão demonstradas para fins de compreensão da história de um povo, de um país, ou para análises estéticas enquanto obra de arte.
Pois bem, estamos vivendo um momento de intensas, embora não bruscas, transformações sociais. É aquele período identificado quando analisamos os declínios de formações econômicas e sociais, de transição histórica. Momento em que um modo de produção gradativamente vai sendo substituído por outro. Um tempo lento, que pode durar mais de um século. Esse processo tende a ser de intensos embates, revoltas sociais, crises econômicas de caráter estrutural e políticas, que são acompanhadas de aumento da criminalidade e desobediência civil. Nesse momento costuma ascender ao poder personagens populistas, com discursos fáceis, mas de comportamentos autoritários e antidemocráticos. Quando não há no horizonte uma formação social que possa substituir a decadente, essa transição pode ser ainda mais demorada e angustiante.
Estátua de padre investigado por pedofilia
na Polônia - Notícias ao minuto
Nessas condições é que vemos atualmente muitos questionamentos sobre personagens de caracteres duvidosos, ou de comportamentos fascistas e atos preconceituosos contra populações oprimidas, mas que são representados como heróis por meio de estátuas e denominações de pontes e logradouros, por diversas cidades do mundo. Foram governantes, militares, empresários, aventureiros ou mercenários, em épocas bem distintas da atual, embora alguns em passado bem recente. A maioria homens. Se destacaram, quase sempre, por adquirirem força e poder em ações de ocupação e colonização, contra populações aborígenes em continentes como a África, Ásia e América Latina. Mas são também personagens que enriqueceram internamente a cada um dos países dessas regiões por meio de escravização de indígenas e dos povos africanos, acumulação de bens a partir dessas ações e de saques de riquezas minerais e grilagens de terras.
Em Bristol, Reino Unido, multidão derruba
estátua de comerciante de escravos - GGN
Naturalmente, a radicalização social e política, a ocupação das ruas por multidões que se levantam contra atos agressivos de corporações militares e grupos organizados de cunho racistas e preconceituosos, tem se voltado contra esses ícones, estátuas que representam indivíduos que atraem a fúria dos que se levantam contra a opressão, as condições de desigualdades e a violência que atinge populações pobres, negras e as mulheres. A Temperatura tem subido aceleradamente em função de uma grave crise econômica, que já estava em curso e se acentuou com o advento de uma pandemia que praticamente deixou em marcha lenta o sistema capitalista. Como resultado dessa somatória de situações que se agravam, o brado das ruas tende a se acentuar, e essas representações estatuárias dos heróis das classes dominantes se tornarão cada vez mais alvos da fúria de uma multidão sequiosa de justiça.
Como já expressei em outras publicações, e como historiador, abomino a presença de uma estátua em pleno centro de Goiânia, na confluência de duas de suas mais importantes avenidas. Não devemos negar a importância e necessidade de estudar os feitos e fatos que estão por trás desse personagem, denominado por um apelido cuja versão, provavelmente fantasiosa, teria sido originada do espanto dos indígenas que ele tinha por prática aprisiona-los para escravizá-los e vende-los em São Paulo, de onde era originário. Embora vivesse boa parte de sua vida pelos sertões e morrido em Vila Boa de Goiás, atual Cidade de Goiás, Bartolomeu Bueno da Silva, Anhanguera, “Diabo Velho”, como ficou chamado, assim como os demais bandeirantes, e por meio das expedições denominadas “Entradas”, além de delimitar territórios se ocupavam em perseguir negros escravizados fugitivos e aprisionar índios.
Bartolomeu Bueno, filho - o Anhanguera
ou "Diabo Velho" - Goiânia, Centro
Naturalmente são personagens que devem ser entendidos em suas épocas, e estudados historicamente dando-lhe a dimensão exata de suas ações. No entanto, a perpetuação de personagens que com o tempo suas atitudes começam a ser questionadas pelos avanços da sociedade, na luta contra a opressão e por direitos humanos, representam afrontas a esses movimentos e às conquistas obtidas a muito custo e ainda de forma tênue. Suas exposições configuram-se ofensivas àqueles segmentos que trazem suas histórias de descendências marcadas pela discriminação, pelo viés racista e pelo ódio que se alimenta dessas deformações históricas que terminam por justificar discursos preconceituosos, de falsas meritocracias e de menosprezo contra as populações mais fragilizadas.
Anhanguera não é herói, nem merece o pedestal em que se encontra, representado por sua estátua, com um bacamarte na mão, símbolo da conquista e opressão. Os que reforçam esse falso mito perpetuam uma lógica de dominação colonial, de submissão e de um provincianismo que termina por reduzir o tamanho da importância e da valoração daqueles que construíram por seus esforços, trabalho e dedicação uma outra história, que representa muito mais os valores e cultura do povo goiano. Quem sabe outro símbolo melhor representasse a ocupação dessa região, de fixação no lugar, diferente dos preadores de índios e saqueadores de ouro, cujos resultados iam enriquecer outros lugares.
Mais recentemente Borba Gato foi o alvo de grupos ensandecidos, e ávidos por revisarem uma historiografia paisagística que enfeitam, ou enfeiam, as cidades, quase que como num movimento iconoclasta moderno. Tal qual outros bandeirantes, seu feitos "heroicos" vem repletos de perversidades contra povos originários. Acusado de ser preador de índios, saqueador de ouro, escravizador de negros e estuprador de mulheres indígenas, sua aura de "santo" só serve ao interesses da elite paulista, que se beneficiou desses atos de violência e tem sido usado culturalmente para formular o "mito do herói fundador". Representa perfidamente todo o processo sangrento de ocupação do sertão e o genocídio cometido contra indígenas e contra os negros. A despeito do "progresso" que se atribuiu a esses aventureiros, não se pode omitir seus atos homicidas, e, se seus feitos ao mesmo tempo não podem ser vistos anacronicamente, também não se pode negar o papel destruidor de grupos étnicos e extorsão de riquezas de um interior que se manteve pobre como decorrência de seus "feitos gloriosos" que regozijam as camadas dominantes.
Assim, no questionamento e na revisão historiográfica, torna-se necessário rever muitos mitos criados ao sabor dos interesses políticos das classes dominantes, no objetivo de manter submisso o povo, a idolatrar personagens que outrora oprimiam seus antepassados. Na radicalidade da luta, e nas transformações sociais, no advento de multidões que questionam tudo isso, essas revisões se dão na prática, no enfrentamento e na derrubada daqueles simbolismos que afrontam as lutas contra as desigualdades sociais, o racismo, a misoginia e todos os tipos de preconceitos.



NOTAS:
[1] HOBSBAWM, Eric. Um século de simbolismo cultural. In: Tempos Fraturados, cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Cia das Letras, 2013. P. 39
[2] HOBSBAWM, Eric. Arte e Poder. In: Tempos Fraturados, cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Cia das Letras, 2013. P. 271

quarta-feira, 17 de junho de 2020

CRISE HÍDRICA – UM CICLO DE DIFÍCIL RETORNO (*)


É impressionante como recorrentemente o problema hídrico é tratado somente no limite da necessidade. Há um provérbio popular que sintetiza bem isso: “Só percebemos o valor da água depois que a fonte seca”. Naturalmente, o interesse da grande mídia comercial está na criação de um sentimento de perplexidade, e da geração de temores e medos que compõem o universo dos jornais e telejornais sensacionalistas, em sua maioria. Às vezes até aparecem boas reportagens sobre o assunto. Mas pecam pela superficialidade, e pela insistência em tratar o problema da falta de água como decorrente dos gastos abusivos, ou excessivos, por consumidores urbanos.
Podem acontecer abusos, e certamente acontecem, no uso da água nas cidades. Mas longe está desta ser a principal razão da grave crise hídrica que ameaça não somente a economia, mas como nossas próprias vidas, humanos, animais ou plantas.
Sempre acontece um desvio do eixo central, das questões que são, de fato, as responsáveis pela forma como a falta de água se tornará, provavelmente tendo seu auge em 2050, no pior problema da humanidade para o século XXI.
A literatura acadêmica, focada em pesquisas sobre esse tema, tem apontado há mais de uma década, não somente os diagnósticos que indicam as causas da crise hídrica seja escassez ou estresse, como também indicam as necessárias medidas para amenizar esse problema. Mas, tanto o diagnóstico, quanto as medidas a serem tomadas, esbarram na forma perversa como funciona o sistema capitalista, ou decorrente da escolha de um estilo de vida altamente urbanizado, exageradamente marcado pelo consumismo, mas, principalmente devido ao fato de todos citadinos necessitarem adquirir os alimentos necessários à sua sobrevivência. Ao contrário de sistemas anteriores, por séculos e milênios passados, em nossa época os bilhões de pessoas que vivem nas cidades não produzem seus próprios alimentos. Essa equação, aliada à lógica gananciosa e usurária que marca a vida contemporânea, dificulta a tomada de decisões que são essenciais para conter essa crise.
O que nos reserva o futuro? Nossa água está acabando, a exemplo do que acontecerá com o petróleo? Nos últimos 50 anos, dobramos nossas terras cultivadas irrigadas e triplicamos o consumo de água para atender à demanda global de alimentos. Nos próximos 50 anos, teremos de dobrar mais uma vez a produção de alimentos. Será que haverá água para tudo isso?
Desvio de água - Rio Descoberto - You tube
Apesar de retornar à superfície por meio de um ciclo hidrológico que a renova sempre, a rapidez com que se dá o consumo esgota rapidamente a água superficial, ou mesmo os lençóis freáticos, o que levará inevitavelmente à escassez, ou ao estresse hídrico.
Mas há por parte dos órgãos públicos muita negligência na identificação e combate às causas que são geradoras de um consumo elevado e com intenso desperdício desse recurso.
Em diversos artigos que publiquei no meu Blog Gramática do Mundo, e que tem a água como referência, venho abordando esse tema diante da grave situação que passa o bioma cerrado. Abordei esse problema também quando a cidade de São Paulo correu um sério risco de desabastecimento, em decorrência da diminuição do volume de água do sistema Cantareira, conjunto de barragens que abastecem aquela cidade, por meio de dois outros textos.
De lá para cá, o problema tem se agravado, muito embora no caso específico do Estado de São Paulo, o governo tenha iniciado um conjunto de obras visando a transposição do rio Paraíba do Sul. Só que são soluções que não atingem o problema da redução dos níveis de água, e gerarão outros efeitos colaterais. No caso deste rio a situação já está crítica em alguns pontos, de diminuição do volume de águas, em função da destruição de suas margens e da poluição que tem afetado a reprodução de diversas espécies de peixes, alguns já à beira da extinção.
É preciso agir para evitar desabastecimentos nas grandes cidades, em todas as aglomerações urbanas, obviamente, até porque constitucionalmente a prioridade do uso da água deve ser para atender as necessidades humanas. Contudo, a gestão que os governos aplicam quando a questão é a água, se limita somente a isso. E não de forma preventiva, com algumas exceções. As medidas tomadas quase sempre acontecem quando o problema atinge o seu ponto crucial, de estresse ou de escassez hídrica, e aí precisa recorrer ao racionamento do uso da água.

ESTRESSE HÍDRICO E ESCASSEZ HÍDRICA
Precisamos esclarecer uma questão antes de prosseguirmos. O estresse hídrico ocorre quando há água, mesmo que em quantidade elevada, mas é insuficiente para atender a demanda, tanto do uso urbano, quanto na indústria e agropecuária.
Pode-se definir o estresse hídrico como resultado da relação entre o total de água utilizado anualmente e a diferença entre a pluviosidade e a evaporação (a água renovada) que ocorre em uma unidade territorial, em geral, definida por um país.
Já a escassez decorre pela absoluta falta de água numa determinada região, que pode vir a ocorrer também como consequência dos usos abusivos e da consequente diminuição do volume de água. Ou seja, o estresse hídrico pode vir a se transformar, futuramente, numa escassez crônica.[1]
A escassez hídrica é uma das medidas de avaliação geográfica de uma unidade territorial. Ela pode ser física e econômica. Quando a quantidade disponível de água de um país não é suficiente para prover as necessidades de sua população, existe uma escassez física de água. Se um país não tem recursos financeiros para levar água de qualidade e em quantidade suficiente à sua população, apesar de ela ocorrer em seu território, a escassez é econômica.[2]
Objetivamente pode-se encontrar resposta para as dificuldades de diversas regiões do mundo em ter acesso à água potável seguindo-se o processo produtivo, os mecanismos que levam à produção industrial, à criação de gado e, principalmente à agricultura, com uso intensivo de irrigação, completamente fora de controle. Neste último caso, embora a irrigação seja um elemento essencial para garantir produção de alimentos suficiente para alimentar a população, a preços acessíveis, a ausência de fiscalização sobre os métodos adotados, muitos deles feitos de forma clandestina, tem sido um fator de destruição de importantes rios. Aqui no Brasil isso é nítido, é sabido, mas não é fiscalizado como deveria. E quando há fiscalização e multas os punidos não pagam, em função do poder exercido pelos grandes produtores rurais, absenteístas em sua maioria, latifundiários e que são responsáveis por produção em larga escala de monocultura.
canal desvia água ilegalmente
Já desde há alguns anos o Estado de Goiás enfrenta problemas em decorrência de períodos de escassez recorrentes, como é peculiar no cerrado, provocada por prolongadas estiagens. Isso causou, como efeito colateral o esvaziamento de rios importantes para o abastecimento. A partir disso o estado intensificou a fiscalização em diversas bacias, como as dos rios Meia Ponte e Araguaia, a fim de garantir o direito da água à população urbana. Mas esse é um problema antigo, sem que haja punição aos que desviam água sem licença, ou quando a tem extrapola o limite do que lhe é permitido.
O que se vê, de forma impune, embora haja investigações do Ministério Público e da Delegacia de Meio Ambiente, é uma série de irregularidades praticadas por grandes produtores rurais, com desvios de águas do rio Araguaia por meio de extensos canais. No entanto isso já ocorre há tempos, e termina por se constituir em fatos naturais, pois há abertura de processos, a indicação de multas, mas esse setor consegue por meio de forte articulação política, concentrada numa bancada poderosa no Congresso Nacional, se livrar de qualquer punição. E seguem cometendo irregularidades no uso da água.
Poderíamos listar aqui diversos outros casos de irregularidades na captação de água para irrigação, bem como o desperdício gerado pelo uso de velhos pivôs centrais. Na região de Cristalina, onde desenvolvo uma pesquisa, muito embora haja em algumas propriedades técnicas mais sofisticadas, com uso de tecnologias modernas que controlam a emissão de água e até mesmo o horário em que isso ocorre, os abusos acontecem sem fiscalização. Soma-se a esses fatores a disputa entre irrigantes e investidores de Pequenas Centrais Elétricas (PCHs), bem como de obras mais suntuosas para geração de energias, barragens que prejudicam o curso normal das águas do rio São Marcos e de outros, e afetam também espécies da fauna fluvial, em alguns casos de forma irreversível.

AS ATIVIDADES HUMANAS E O CICLO DA ÁGUA
As mudanças climáticas, como dizemos, embora o correto é se referir a variabilidade climática, está a ocorrer, naturalmente. E não há dúvida que a ação humana contribui para acentuar desequilíbrios e potencializar transformações que, pelo tempo, demorariam mais a ocorrer, ou não se dariam com a intensidade com que acontecem. Portanto, as alterações climáticas são fato, acontecem, e a ação humana tem reflexo nisso.
A insistência em centrar no consumo urbano o problema da água, ou de considerar que o aquecimento global se deve principalmente a efeitos colaterais da industrialização, esconde a essência do problema, as reais causas que estão deteriorando nossa qualidade de vida no Planeta Terra. O interesse em desviar o foco, ou em construir versões sobre as causas, tem o objetivo de amenizar as responsabilidades sobre a maneira como o sistema capitalista esgota nossos recursos, destrói a natureza e impacta perversamente no clima, principalmente nas regiões com altos índices de urbanização, como decorrência de um estilo de vida que implica em consumir além daquilo que o planeta pode oferecer para produzir mercadorias.
As interferências das atividades humanas no ciclo hidrológico ocorrem em todos os continentes e por todos os países. Os impactos dessa intervenção no ciclo variam para cada região ou continente. De modo geral esses impactos são:
a) construção de reservatórios para aumentar as reservas de água e impedir o escoamento;
b) uso excessivo de águas subterrâneas;
c) importação de água e transposição de águas entre bacias hidrográficas.
Isso é apontado pelo professor José Galizia Tundisi,[3] referência nesse assunto, como o resultado desastroso de ações que são feitas sem a devida adoção de mecanismos protetivos, bem como ausência de planejamento para garantir que um bem imprescindível não corra o risco de se acabar.
Inevitavelmente, esse descontrole tem afetado o ciclo hidrológico, que por sua vez implicará em desequilíbrios climáticos e oscilação acentuada de temperaturas.
O fato é que há uma relação dialética entre a crise hídrica, as constantes mudanças climáticas, em um tempo mais acelerado que o normal e o intenso desenvolvimento capitalista. No entanto, é necessário ter a compreensão exata de quais são os elementos nesse processo que são os principais responsáveis por esse desequilíbrio.
Mesmo que não houvesse mudança climática, o mundo continuaria enfrentando o declínio no abastecimento de água per capita por causa do desenvolvimento econômico e do crescimento da população. Mesmo que pudéssemos congelar o crescimento populacional, a modernização significa maior consumo de carne, bens acabados e energia; tudo isso eleva o consumo de água per capita. Contrariando a crença popular, o crescimento populacional e a industrialização representam ao suprimento de água global um desafio ainda maior do que a mudança climática.
Captação irregular de água do rio meia ponte
Ou seja, são exatamente as condições criadas por um modo de produção acentuadamente predatório. Mas, tem sido mais difícil identificar as soluções porque o foco dos possíveis motivos geradores desses desequilíbrios se concentra nas consequências, e não nas causas.
É preciso termos claro que por trás de toda essa discussão existem elementos de geopolítica, e encobre as principais razões tanto para os desequilíbrios climáticos regionais como a escassez e estresse hídrico. Porque afeta interesses estratégicos, tanto econômicos como na disputa por recursos naturais.
Trocando em miúdos. O problema que se acentua gravemente no Brasil, mas que atinge também outras partes do mundo por diversos continentes, a deficiência hídrica, é causada por essa forma de desenvolvimento que destrói a natureza. E as medidas, ou repercussões dessa crise, só aparecem nos períodos em que ocorre ausências de precipitações pluviométricas.

AS ÁGUAS DO CERRADO
Vamos falar um pouco do Bioma Cerrado. Esse que já foi considerado por Guimarães Rosa como “a caixa d’água do Brasil”. E que de fato pode ainda ser assim chamado, por ser por meio de suas nascentes, córregos e rios, que se formam algumas das principais bacias brasileiras. Mas sabemos que o problema não se resume a um único bioma, afeta os demais de forma diferente pela especificidade em suas características geomorfológicas.
Ocorre que nos últimos anos houve uma intensificação acelerada da produção agrícola e criação de gado, impactando fortemente nesse Bioma. A redução dele decorre da exploração predatória, baseada na grande produção de monocultura, principalmente commodities, em propriedades latifundiárias que usam fartamente, por meio de grandes pivôs centrais, a irrigação como condição para aumentar suas produtividades. E o Estado é o financiador dessa situação, muito embora não o faça na mesma proporção, em termos de importância na cadeia de produção alimentar, com os pequenos produtores e com a agricultura familiar.
Mas além de citarmos a irrigação, é preciso identificar um problema anterior. O desmatamento, que destrói aceleradamente o Cerrado e leva ao fim, além de uma rica biodiversidade, as veredas, principais fontes de água, por cujas nascentes formam-se córregos e rios. Tanto o desmatamento, como o pisoteio do gado, são fatores destrutivos que vão reduzindo a capacidade de recarga e consequentemente transformarão mananciais de perenes a intermitentes. Registre-se que o Centro-Oeste é o maior produtor de gado bovino do Brasil, e somando-se com a região Norte, concentram mais da metade dessa produção. Justamente as regiões que atualmente mais são afetadas pelo desmatamento.
Pivôs ilegais - rio araguaia
É óbvio que a consequência disso será a diminuição do volume de águas que verterá para os principais rios que formam grandes bacias. Aliado a isso, as intervenções que são feitas para construção de barragens, sejam para Pequenas Centrais Elétricas, ou para Grandes Centrais Elétricas, causam fortes impactos também sobre a fauna fluvial e gradativamente reduzem o tamanho e a importância daquele rio. A destruição de suas margens, ou matas ciliares, consequência do desmatamento, da extração descontrolada de areia e em muitos casos devido a garimpos clandestinos, são outros fatores que transformam a paisagem por todo o percurso de montante à jusante e vão reduzindo o volume desses rios até que em alguns casos eles cheguem à sua foz na condição de um pequeno riacho.
Essas ações predatórias são as principais razões pela redução da capacidade hídrica de uma determinada região. E isso tem acontecido numa escala criminosa no Bioma Cerrado, a ponto de até mesmo a capital federal, construída bem no coração desse bioma, passar pela primeira grande crise de escassez, levando a necessidade de rodízio na distribuição a fim de evitar uma situação mais drástica de absoluta falta de água.
Mas embora seja óbvio para os que estudam os problemas hídricos, inclusive da gestão, onde estão as origens dos problemas, os lobbies organizados que reforçam o poder dos grandes proprietários de terras, representados por uma grande bancada de parlamentares no Congresso Nacional, pressionam os governos para que isentem as dívidas daqueles produtores flagrados em ilicitudes na exploração da água.
Utilizando-se do argumento de que a produção de alimentos é uma necessidade para alimentação de uma população crescente, reivindicam mais investimentos para ampliar a área irrigada, sob o pretexto de que há ainda no Brasil um enorme potencial hídrico a ser explorado. O que pesa, na verdade, para além dos rumos que pode ir nossa capacidade hídrica, é a ganância e os lucros que são gerados para manter a opulência de uns poucos, que estão sempre protegidos desses infortúnios, já que a escassez de água afeta principalmente a população mais pobre.
Outro aspecto, de certa forma também de difícil solução, haja vista a incompetência dos gestores na administração pública, cujo foco é sempre a eleição seguinte, é a absoluta ausência de um planejamento adequado que identifique quais setores são estratégicos para a manutenção e fortalecimento do espaço vital seja nacional, ou regional.
Esgoto no meia ponte - Domício Gomes - O Popular
E no caso das grandes cidades, principalmente as capitais, as condições de crescimento levaram a uma absoluta inoperância na preocupação com o abastecimento de água na mesma proporção e aceleração com que se dava o crescimento populacional. Enquanto isso, nascentes foram sendo aterradas, córregos transformavam-se em canais e a quase totalidade dos mananciais que cortam as zonas urbanas foram transformados em depósitos de descargas de dejetos de casas e indústrias, constituindo-se em verdadeiros esgotos a céu abertos. As águas que por ali circulam em tempos de grandes pluviosidades perdem-se na podridão e não são aproveitadas para consumo. Em tempos de estiagem o que prevalece são os líquidos que saem dos esgotos.
No entorno das cidades, os cinturões verdes, de produção hortifrutícolas, disputam boa parte dessa água e a usam para irrigação. Até aí se pode dizer ser um uso tolerado, na medida em que são produtores que abastecem as feiras e centrais que distribuem frutas e verduras essenciais em nossa alimentação. O problema é que não há fiscalização adequada, nem se busca usar de novas tecnologias para amenizar os gastos de água. Invariavelmente o poder público prefere grandes financiamentos para empreendimentos de produção para exportação, menosprezando a importância do pequeno agricultor. Que de outra forma não consegue adequar seu sistema de irrigação às necessidades de controle do consumo de um recurso em estágio crescente de escassez.
Assim, sem o devido planejamento, as águas que cruzam as cidades foram se tornando impróprias para o uso, e as que as circundam, ou mesmo que estão prestes a serem captadas pelos sistemas de abastecimentos, vão tendo o volume reduzido pelo uso que se faz dela para irrigação a montante. Só que essa é uma situação absolutamente previsível. Assim como é a previsibilidade de que após o período chuvoso, já que a água que escorre por esses mananciais torna-se imprópria para consumo e perde-se rapidamente nas vias impermeabilizadas, um novo período de estiagem, sempre com maior intensidade, virá para preocupar e gerar pânico e revolta entre as pessoas.
A alternativa encontrada por muitos, os que tem condições para isso, naturalmente, inclusive condomínios horizontais e empresas, é recorrerem à instalação de poços artesianos. Ora, como a cidade cresce acentuadamente, e se espalha por uma periferia cada vez mais distante do centro, o abastecimento público de água demora a atender a essa crescente demanda. A retirada de água dos lençóis subterrâneos assume assim a condição de prover inúmeras residências do abastecimento necessário, obviamente. O que resulta disso? O aumento da retirada de água desses canais subterrâneos faz com que eles se esgotem gradativamente, reduzam o volume hídrico, forçando a que cada vez mais seja necessário aprofundar os poços para atingir o lençol freático e extrair a água. Ao mesmo tempo, isso vai afetar o processo de recarga e será também gerador do esgotamento de inúmeras nascentes, cujas águas se dispersam para outras regiões por efeitos naturais e vão desaparecendo como decorrência da diminuição da quantidade que existem nesses lençóis e aquíferos.

O QUE PODEMOS CONCLUIR DE TUDO ISSO?
Os principais problemas são gerados, portanto, pela destruição acelerada da natureza, pelo desmatamento em larga escala e a consequente destruição de nascentes, córregos, riachos e rios. O maior perigo do mundo, inegavelmente, está na possibilidade de uma escassez geral da água, por não haver nenhuma alternativa para a humanidade com o fim de um líquido que é vital
Rio Meia Ponte - Goiânia - O Popular
Não me parece que tudo isso dito aqui seja novidade. E vou terminar da forma como comecei. Sempre que a situação chega num ponto crônico em função do aumento do período de escassez, soa o alarme, a mídia se alvoroça, confunde na explicação, cria um pânico que é natural, já que a falta de água é a pior coisa que existe para a vida. Aí temos alguns momentos de preocupação, e vemos as autoridades se debaterem com uma situação que não poderá ser resolvida no auge de um estresse ou uma escassez real.
O que sempre procuro propor quando discuto essa questão, portanto, é que devemos urgentemente encontrar o eixo correto para identificar as causas que estão nos levando por um caminho que pode tornar-se difícil de recompor o que se está a destruir. Claro que ainda é possível corrigir esses rumos, a ciência ajuda, com certeza. Mas é na gestão, no planejamento estatal e fiscalização severa, que devem se concentrar as principais correções.
Mas, eis que de repente, vem a chuva! É como o soar dos sinos, alertando para um novo tempo. População, meios de comunicação e autoridades se aquietam aliviados. Eis que a preocupação passa a ser a quantidade e a força com que cai a água, e as atenções passam a voltar-se para aquelas populações, as mesmas vítimas principais da falta de água, que vivem em áreas de riscos e correm o perigo de serem arrastadas por enchentes causadas pelas péssimas condições da arquitetura das cidades e dos ambientes urbanos. Boa parte desta água, como visto, não poderá ser aproveitada, porque vai escorrer para mananciais altamente poluídos.
Eis o cúmulo da contradição e isso se repete terrivelmente com data marcada. Como sair disso? Com participação efetiva da sociedade, por meio de organizações sociais, universidades e associações que pressionem governos a adotarem medidas reparatórias, preventivas, diante da crise hídrica, e não somente quando o período de escassez atinge o seu auge. Aí é como ficar vendo o cachorro correr atrás do próprio rabo. E enquanto isso a água se esvai.


NOTAS:
(*) Este texto é uma adaptação de um artigo publicado neste blog em 2017: https://gramaticadomundo.blogspot.com/2017/11/enquanto-chuva-cai-agua-se-esvai.html
[1] RIBEIRO, Wagner Costa. Geografia Política da Água. São Paulo: Annablume Editora, 2008. Pág. 62.
[2] Idem.
[3] TUNDISI, José Galizia. Água no Século XXI: Enfrentando a escassez. São Carlos: RiMa, IIE, 2003. Pág. 14-15.