Só quem convive
com a política consegue compreender a complexidade que está por trás das
difíceis relações que são necessárias em um ambiente democrático. O parlamento
é, neste particular, um palco onde os acontecimentos nem sempre seguem a lógica
desejável. As correlações de forças impõem, necessariamente, negociação,
pactuação, alianças e concessões. Depende da conjuntura, que em momentos de
crise se modifica numa rapidez muito grande, principalmente quando se lida com
uma maioria fisiológica, mais facilmente suscetível a seguir governos que se
dispõem a ceder a suas chantagens, em busca de vantagens pessoais.
O ambiente
político brasileiro atingiu um limite pernicioso, alçado a essa condição pela
obsessão golpista dos que controlam a economia e de seus representantes,
conservadores e direitistas. Para ter noção dessa complexidade é preciso
mergulhar na composição congressual, no perfil desses parlamentares e das
dezenas de partidos que surgem com o intuito de facilitar as barganhas daqueles
que julgam não ter espaços em seus partidos de origem. E assim, quanto mais
partidos cujos objetivos não é a política, mas as negociatas, mais torna-se
difícil conter rebeliões e a ascensão de lideranças oportunistas, que se tornam
porta-vozes dos “enjeitados”, e dificulta a governabilidade. No caso de um
sistema presidencialista, essas dificuldades emparedam qualquer governante e o
força a negociar em condições indesejáveis, pois sob pressão, diante da
necessidade de ser aprovados projetos imprescindíveis para a condução das ações
governamentais.
Portanto, estou
partindo de um pressuposto quando faço essa análise: o caos político atual. Mas
não de um desejo de ver a política derrotada. Mas me pergunto: diante das
circunstancias postas, em que está em curso um processo de impeachment
absolutamente fraudulento, um golpe aplicado para apear do poder quem foi
legitimamente eleita, e garantir às forças conservadoras a retomada do controle
do estado por meios ilegítimos, corrompendo a democracia e se beneficiando de
uma justiça seletiva, qual deveria ser a estratégia da esquerda na relação com
esse parlamento?
Ora, se o embate
dos últimos meses tem sido contra o golpe que está prestes a destituir a
presidenta, e isso se deu como decorrência de um parlamento corrompido e
dominado pelo fisiologismo, porque haveria de ser uma preocupação, nesse
instante em que se aproxima a hora fatal desse processo, retomar a estabilidade
da condução dos trabalhos parlamentares?
Pensemos em
primeiro lugar, antes de analisar a estratégia adotada pelos partidos de
esquerda, o que possibilitou esse ambiente golpista. Naturalmente isso só foi
possível porque a presidenta Dilma perdeu toda e qualquer relação política
sobre esses parlamentares, controlado que era pelo presidente da Câmara Eduardo
Cunha. Somente essas fragilidades na relação política, aliado às investigações
da Operação Lava Jato, que mirou em dezenas de parlamentares, incluindo aí suas
principais lideranças, possibilitaram esse desequilíbrio político que criou um
caos institucional e depôs a presidenta. Se tivesse o controle do parlamento e
com isso mantivesse o apoio da maioria, em uma Câmara pacificada, dificilmente
o impeachment teria avançado.
Partindo desse
pressuposto, um Congresso caótico dificulta a vida de Michel Temer e sua
governabilidade. E olhando agora para o momento da escolha do novo presidente
da Câmara, em função da renúncia de Eduardo Cunha, agora prestes a perder o
mandato e, provavelmente, ser preso pelos crimes que estão sendo apontados nas
investigações da Lava Jato; e estando em curso ainda o processo de cassação da
presidenta, cuja definição final irá coincidir com o momento em que será selado
também o destino de Cunha, qual deveria ser a estratégia da esquerda?
Ora, pode-se
dizer, e isso é correto, que a política sai perdendo com um parlamento
submetido ao controle de um grupo que esteve por todo esse tempo fiel às
artimanhas e perversidades de um indivíduo corrupto, fisiológico e reacionário.
Mas, diante da provável cassação da presidenta, mediante artifícios golpistas,
em que a grande maioria desse parlamento votou para derrubá-la, e com um
governo ilegítimo ainda enfraquecido por ter muitos de seus ministros
envolvidos com atos corruptos, não parece ser difícil supor que os
parlamentares de esquerda deveriam criar dificuldades de governabilidade para o
governo golpista.
Nesse sentido, por
inverso, os demais partidos, conservadores, de direita ou de centro, esses sim,
deveriam estar preocupados em dar condições para estabilizar a política, de
forma a garantir sucesso para o presidente Michel Temer, posto lá
provisoriamente, e às vésperas de ver decidido seu destino. A instabilidade do
parlamento, considerando que o impeachment seja mantido, com a destituição da
presidenta Dilma, poderia dificultar a aprovação de medidas que estão sendo
preparadas para retirar direitos dos trabalhadores e consolidar um programa de
redução do Estado, mediante privatizações, e de uma agenda conservadora que
mira nos comportamentos e nas liberdades individuais. Sem liderança forte, esse
grupo fragmenta-se, como já aconteceu em outras situações.
Não me parece ter
sido uma estratégia adequada da esquerda avalizar um nome do partido mais ideológico
à direita do espectro político. O DEM foi alçado ao cargo de maior importância
na iminência do afastamento da presidenta Dilma. Rodrigo Maia, além de presidir
a Câmara dos Deputados, poderá ser o vice-presidente. Claro que tudo isso poderá
acontecer, mesmo sem o apoio de parlamentares de esquerda, mas, diante do
embate vivido nos últimos anos, alimentado pelo grupo PSDB-DEM-PPS como
decorrência da não aceitação do resultado eleitoral, e do “despertar das bestas”
reacionárias, torna-se necessário sinalizar para a população como se divide
esses campos ideológicos. Quem é quem nesse jogo político que está implantando
mudanças políticas que atrasam os avanços democráticos do país e visam eliminar
direitos sociais e liberdades individuais.
Quanto ao
argumento de derrotar o candidato do Cunha, me parece neste momento bastante
pueril. Cunha já está derrotado. Será cassado e provavelmente preso. É um
cadáver político insepulto. Já o grupo, denominado Centrão, que ele arrebanhou
e liderava, e junte-se aí uma bancada evangélica conservadora, são fisiológicos.
Vão para onde sopra o vento. Não são tolos, e esquecerão rapidamente de seu
pérfido líder. Seus componentes são permissivos e precisam ser desmoralizados
para a população para que haja uma renovação na próxima eleição. Mas,
pacificá-lo, num momento crucial de definição dos destinos da presidenta Dilma
foi um grande equívoco e uma estratégia que mira somente na estabilidade do
parlamento.
Ora, que
estabilidade? A favor de quem? Eles serão rapidamente convertidos com as
nomeações para milhares de cargos de segundo e terceiro escalão que ainda não
foram preenchidos, e por seus perfis conservadores colaborarão para aprovação
de medidas antipopulares, como já prometeu o próprio presidente interino
golpista Michel Temer. Este sim, precisa ser ferrenhamente combatido, e não
merece um parlamento pacificado para facilitar a aprovação de seus pacotes de
maldades.
Fonte: Conexão Jornalismo |
O melhor cenário
no segundo turno da Câmara seria com a presença de um candidato que não
contasse com o aval dos golpistas. E a esquerda perdeu a oportunidade de fazer
isso, ao não se unir em torno da candidatura do Deputado Marcelo Castro, do
PMDB, que votou contra o impeachment. Mas o pragmatismo político prevaleceu, e,
inexplicavelmente para a maioria da população, parlamentares que gritam NÃO VAI
TER GOLPE! e FORA TEMER! preferiram um candidato golpista... contra um
candidato golpista, identificando o que seria menos ruim para garantir a
estabilidade do parlamento e a melhoria nas relações políticas que permitam
evitar o rolo compressor da maioria. Eu entendo, embora não concorde, mas não
creio que a maioria daqueles que se unem nessa indignação venha a compreender
essa posição.
Não acredito em
redenção democrática com a atual composição desta Câmara dos Deputados, muito
menos tendo na presidência um parlamentar do DEM.
Isso é certo. Vamos ajeitando o rumo. |
Mas, esta é apenas
uma análise, e, portanto, está sujeita a ser desmentida pelos fatos que virão,
e até mesmo a depender da confirmação, ou não, da cassação do mandato da
presidenta Dilma e a consolidação do golpe de estado institucional. Aguardemos
então, os próximos capítulos, neste longo ano político de 2016. Mas seja qual
for os rumos a ser tomado, me mantenho no mesmo caminho que tenho seguido, e
com total confiança naqueles parlamentares progressistas, principalmente os do partido que estou filiado desde 1980, o PCdoB, que convivem com situações difíceis,
mantendo suas combatividades em um ambiente permissivo e deprimente como o
atual congresso nacional. A luta continua! Fora Temer!
Enquanto elaborava
essa análise fui procurado pelo jornalista Renato Dias para uma entrevista ao
Jornal Diário da Manhã, exatamente sobre o quadro político brasileiro. O que eu
disse em certa medida está contido no que eu estava escrevendo aqui, mas
insiro-a abaixo pois ela tem outros aspectos que seriam a conclusão do que
finalizaria este artigo. Leiam a seguir:
TEMPOS SOMBRIOS NO BRASIL: OBJETIVO
DA LAVAJATO É PRENDER O LULA.
Entrevista com
ROMUALDO PESSOA
Por Renato Dias.
Jornal Diário da Manhã
https://impresso.dm.com.br/edicao/20160717/pagina/11
Diário da Manhã - Eduardo Cunha será cassado?
Romualdo Pessoa Campos
Filho – Eu tenho certeza disso. Há atualmente entre os principais partidos, a
necessidade de apresentar, com a cassação Cunha, um sentimento de conformidade.
Ou seja, de volta à normalidade nos trabalhos legislativos. Obviamente há por
trás disso, com a “imolação desse bode”, a tentativa de livrar aqueles
parlamentares que estão sob fogo cruzado da Procuradoria da República e do
Supremo Tribunal Federal. Mas é evidente que a cassação dele é uma questão de
justiça. Aliás ele já comete esses mesmos crimes que estão agora sendo
julgados, desde a década de 1990. Ele e outros que ainda deverão ser julgados.
Espero.
DM - O que muda com a eleição do novo presidente da Câmara dos Deputados?
Romualdo Pessoa Campos
Filho – A eleição de Rodrigo Maia serve para garantir essa sensação de
normalidade. E dá o equilíbrio aos grupos que forçaram o impeachment da
presidenta Dilma Roussef. O Bloco PSDB-DEM-PPS, se vê assim representado não
somente com a presidência da Câmara, mas com a vice-presidência do país, no
caso de se consolidar o impeachment. Apesar de muito ter sido dito sobre o
apoio de Michel Temer ao Rosso (PSD), é evidente que a eleição de Maia lhe dá
mais tranquilidade, pois abre mais possibilidades de negociações pela política.
Diferente do comportamento adotado pelo chamado Centrão, liderado por Eduardo
Cunha, esse bloco de centro-direita que se vê agora representado pelo Maia
comunga das mesmas ideias contidas nas propostas de reforma do governo golpista,
principalmente no campo econômico. Vai garantir a ele aprovar projetos e até
mesmo alterar artigos constitucionais. E isso é péssimo para os trabalhadores e
trabalhadoras. Talvez não fosse diferente com o Rosso, mas manteria a Câmara sob
tensão e fortes conflitos. Penso que o grande beneficiário desse processo foi
Michel Temer.
DM - Impeachment, sem crime de responsabilidade, é golpe?
Romualdo Pessoa Campos
Filho – Com certeza. O julgamento da presidenta não é por questões jurídicas, nem
por possíveis crimes que ele tenha cometido. Ainda esta semana o Ministério
Público, por meio de um parecer enviado à justiça pelo Procurador da República
no Distrito Federal, Ivan Marx, concluiu que não configuram crimes as acusações
que pairam sobre a presidenta. E ele pede o arquivamento do pedido de
investigação para apurar infração penal. Essa é mais uma evidência de que o
processo em curso, que objetiva afastar definitivamente a presidenta
legitimamente eleita é uma fraude. Um movimento político, que buscou um
pretexto e encontrou nas sandices e ódio de Eduardo Cunha o caminho para
implementar um golpe institucional, mas nitidamente anticonstitucional. É um
golpe de estado de caraterísticas diferentes dos tradicionais, mas que já se
repetiu em diversos países aqui na América Latina, Central e no Leste Europeu.
DM - Dilma Rousseff pode voltar?
Romualdo Pessoa Campos
Filho – Há possibilidades, na medida em que fica nítido o caráter golpista
deste movimento. Além do que pouco se alterou desde a posse de Michel Temer
como interino na economia. Ao contrário, o desemprego tem aumentado, os preços
de alimentos dispararam, dívidas dos estados de forma vergonhosa foram adiadas,
e as reformas já discutidas apontam para retirar dos trabalhadores os direitos
conquistados com muita luta nas últimas décadas. Tudo isso a ser feito por um
governo que não foi eleito.
DM - Paulo Henrique Amorim diz que Lula será preso. O senhor acredita
nessa possibilidade?
Romualdo Pessoa Campos
Filho – Ele sempre foi o principal alvo. O objetivo da Lava Jato, desde o
começo é prender o Lula. Ele continua sendo o fantasma a preocupar os partidos
conservadores e de direita, que por três eleições tentavam retomar o poder
pelas eleições, e não conseguiam. Lula é o fantasma que atormenta esses
setores, na medida em que, se for candidato em 2018, poderá vir a ser eleito
mais uma vez. Mas, é evidente que a prisão de Lula só será possível se surgirem
provas irrefutáveis de seu envolvimento nesses esquemas que estão sendo
investigados. Pela sua dimensão política, aqui no Brasil e no exterior, uma
prisão com base em delações de indivíduos dispostos a não ir para cadeia
certamente causará uma enorme estranheza e provocará todos os tipos de reação.
DM - A Justiça, no Brasil, é seletiva?
Valdir Misnerovicz, líder do MST preso em Goiás |
Romualdo Pessoa Campos
Filho – Sim. Sempre foi. Isso é secular, é uma herança perversa dos tempos
coloniais, da forma como se comportavam os que possuíam fortunas. Somente quem
não estuda história não entende como isso prevalece até os dias atuais. Eu
pesquisei não só a Guerrilha do Araguaia, mas também as condições em que ficou
a região onde o conflito aconteceu. Ali, no Bico do Papagaio (Sudoeste do Pará,
Norte do Tocantins e Sul do Maranhão), no final da década de 1970, por toda a
década de 1980 e ainda nos tempos atuais, os conflitos pela terra levou à morte
milhares de trabalhadores rurais e de lideranças políticas e sindicais. Os
grileiros e suas milícias criadas pela UDR, atuavam livremente com o apoio das
polícias e sob a proteção da justiça. Foram poucos os crimes ali cometidos que
os seus assassinos foram a julgamentos. E os que foram terminaram sendo
absolvidos ou contaram com a leniência da Justiça para se verem livres. Isso
persiste, lá e em qualquer lugar do país. Aqui em Goiás, por exemplo, existem
hoje presos políticos por conta de suas atuações junto ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Central dos Trabalhadores e
Trabalhadoras do Brasil (CTB). Inclusive um ex-aluno nosso, do Instituto de
Estudos Socioambientais da UFG (IESA), que terminou o metrado há pouco tempo,
Valdir Misnerovicz, se encontra preso, acusado de liderar uma “organização
criminosa”, acusação odiosa aplicada a uma das mais importantes organizações
que luta pelo direito constitucional à terra para os camponeses. Ora, há
exemplo maior de seletividade do que essa? Dentre tantas, naturalmente, basta
fazer um censo presidiário para ver.
DM - A esquerda, no Brasil, não deve se reinventar?
Romualdo Pessoa Campos
Filho – A esquerda brasileira é um caso para psicanálise. Eu participo há
décadas o mesmo partido, sou hoje mais um filiado do que um militante. Como o
historiador Eric Hobsbawm, sem querer me comparar a ele, naturalmente, mantenho
a coerência pela escolha ideológica do que eu compreendo ser a melhor leitura
do marxismo aqui no Brasil. Com isso não desejo menosprezar as demais. Só que
também divirjo em alguns momentos e tenho a liberdade para opinar sem nenhum
tipo de patrulhamento. Mas é inadmissível ver uma direita se articular e se
unificar em torno do objetivo central, que é a tomada do poder, muito embora
haja também contradição em seu seio, e não ver a mesma iniciativa por parte da
esquerda. Ao contrário, se divide mais nesse processo e passam a se atacar
quando o impossível consenso não se faz. Isso sempre aconteceu, e é lamentável,
mas pior ainda é ver o país passar por uma crise em que uma presidenta de um
partido de esquerda foi golpeada e apeada do poder por esses setores de direita
e mesmo assim o entendimento não acontece.
DM - O que deveria conter uma Reforma Política?
Romualdo Pessoa Campos
Filho – Uma reforma política só seria possível com a eleição de uma Assembleia
Nacional Constituinte. Eu defendo que a presidenta Dilma retorne ao cargo onde
o povo a colocou e encaminhe ao Congresso Nacional um plebiscito para que o
povo se manifeste sobre uma antecipação das eleições presidenciais. Seria o
melhor para o país. Mas é impossível
governar com esse sistema político atualmente vigente. Só que não dá para essa
reforma ser feita por um Congresso deslegitimado como o atual. Não há mais
confiança do povo nesses parlamentares, e o que eles fazem não se coadunam com
os desejos e necessidades da população. Seus interesses são corporativos, de
setores bem servidos economicamente na sociedade, ou representantes de
propostas conservadoras religiosas que tentam absurdamente moldar as pessoas,
mesmo os que não seguem suas religiões, aos seus desejos e representações
ideológicas. Portanto, qualquer reforma política neste momento, a meu ver,
passa pela devolução do poder a quem é de direito e pela convocação de um
plebiscito para novas eleições. A reforma política deve ser consequência desse
processo, a partir da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte eleita
exclusivamente com esse objetivo.
DM - O que há de atual no marxismo?
Romualdo Pessoa Campos
Filho – Depende da leitura que se faça dele. Eu sempre gosto de citar uma frase
de Hobsbawm, em que ele diz que um historiador não pode, jamais, cometer o erro
do século. Ou seja, não pode trocar um século pelo outro. Isso é o que em
história chamamos de “anacronismo”. Essa era uma preocupação de Marx e é sobre
ele a citação de Hobsbawm. Então, se lemos as obras de Marx hoje, devemos em
primeiro lugar ter a clareza do tempo em que ela foi escrita, pois muito do que
ali está contido diz respeito às condições estruturais e conjunturais de sua
época, o século XIX. Portanto, eu não posso desconsiderar, ao ler as obras de
Marx que vivemos uma época completamente diferente, principalmente na
velocidade com que se dão as transformações econômicas e sociais, daquele tempo
vivido por Marx. Mas, é evidente que quando o Marx se debruçou para analisar as
relações econômicas que se consolidavam e moldavam o capitalismo, e isso ele,
juntamente com Engels, fez na magistral obra O CAPITAL, seu enfoque foi
estrutural, de compreensão sobre os mecanismos de funcionamento de um modo de
produção que se afirmava em seu tempo, mas cujas relações definiam bem como ele
seria. Assim, quem quer conhecer os mecanismos de funcionamento do Capitalismo
deverá, inevitavelmente, ler essa obra. Isso tanto é verdade que logo depois
que explodiu a crise econômica atual, no ano de 2008, as editoras correram para
reeditarem praticamente todos os livros e economia de Marx, principalmente O
CAPITAL. Mas o “marxismo” não é uno, e
existem várias leituras do que se tornou
uma linha de pensamentos e de construção ideológica a partir das idéias
de Marx e Engels. As lutas revolucionárias e os embates entre correntes de esquerda
levaram a proliferação de uma grande quantidade de grupos marxistas, mas com
leituras diferentes, e muitas absolutamente anacrônicas, desconsiderando-se as
diferenças entre as épocas passadas e as atuais. Isso leva a equívocos na
interpretação das obras de Marx. Mas não só de Marx, como também de seus
principais seguidores.
DM - A luta de classes acabou?
Romualdo Pessoa Campos
Filho – De jeito nenhum. Está mais visível do que nunca. E nunca desapareceu. O
mundo é constituído por classes sociais, e há um permanente embate entre os que
controlam as riquezas e os que só dependem da sua força de trabalho para
sobreviver. Essa lenda de fim da luta de classes foi implantada na cabeça das
pessoas, inclusive e lamentavelmente nas universidades, como consequência do
processo de globalização e a derrota do socialismo. Era preciso criar as
condições para vender ao mundo a ideia de “fim da história” com o capitalismo.
Negar a luta de classes era a condição para implementar o neoliberalismo e
apontar para as pessoas que qualquer um poderia se beneficiar com as
transformações tecnológicas de um capitalismo que precisava se reestruturar
diante de uma crise que vinha da década de 1970. As diferenças geradas por esse
processo só fizeram aprofundar mais ainda as desigualdades sociais, a
concentração da riqueza e, com a intensificação da crise, do aumento do
desemprego. Vivemos atualmente uma situação em que fica mais do que evidente
uma luta de classes, embora, como decorrência de uma forte evangelização
neopentecostal, com a dita “teologia da prosperidade”, muitos ainda insistem em
negar o óbvio.
DM - O socialismo ainda é uma possibilidade histórica?
Romualdo Pessoa Campos
Filho – Sim, claro. Creio que os ideais do socialismo sempre estiveram
presentes nos tempos em que se constituiu a civilização ocidental, de uma
cultura inspirada no cristianismo primitivo. Se pegarmos, por exemplo a
expressão “comunhão” e “comunismo”, elas têm o mesmo significado: “comum união”,
“comunidade”. E enquanto houver desigualdades sociais esse sentimento vai estar
sempre presente. O capitalismo não consegue mais atender aos anseios de um povo
que deseja mais do que lhe foi oferecido. E sempre lhe foi oferecido além do
que ele poderia obter. Por isso vivemos uma época de instabilidade, de pessoas
desejosas de consumir cada vez mais, sem que isso seja possível. Isso se
reflete no comportamento, na violência, na intolerância e na fuga para os
templos religiosos. Mas, certamente não será como antes. As condições para que o
socialismo ressurja estão dadas, mas todas as transições são complexas, contudo
creio que estamos chegando no auge das contradições do capitalismo.
DM - Júlia Lemos Vieira, doutora em Filosofia Política, diz que Karl
Marx não dá receitas. O senhor concorda?
Romualdo Pessoa Campos
Filho – Plenamente. O Marx procurou entender o mecanismo de funcionamento de um
modo de produção que tinha na exploração da força de trabalho a base para a
acumulação do capital. E a partir daí ele mergulhou numa análise estrutural,
mas ao mesmo tempo histórica, econômica, sociológica e filosófica. Portanto,
bastante complexa para ser utilizada de forma dogmática.
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