sexta-feira, 29 de maio de 2015

O MAL DA UNIVERSIDADE: A NORMOSE


“Com esse artigo pretendo demonstrar como o ambiente universitário é marcado por uma certa perversão, onde a competição impõe restrições para a existência de um ambiente fraterno e como, pelos critérios utilizados para avaliação dos docentes, a história daqueles que estão há mais tempo na universidade é relegada a uma nulidade. Sucumbimos diante de um produtivismo exacerbado e deixamos escapar oportunidades de debater temas cruciais para a melhoria da sociedade. Vivemos ensimesmados, metidos em uma redoma e preocupados com o nosso sucesso pessoal, onde a vaidade permeia e somos forçados a seguir regras rígidas que impedem que esse ambiente fuja da normalidade impositiva e nos permita ser criativos, críticos e inovadores. Não avançamos, paramos num tempo que já passou, comandados por uma ideologia neoliberal fracassada


Já abordei aqui nesse blog os mecanismos que impõe, por critérios que não aprecia a qualidade, uma camisa de força aos que porventura tentarem optar por fazer da atividade docente um estímulo à criatividade, ou a garantir que, com liberdade de cátedra, possamos sentir o prazer de inovar, criticar e produzir fora das chatices que nos impõe a rigidez das regras capesianas. E mais, podermos lidar com novas formas de conhecimento, que reflita a amplitude que deve ter, em sua totalidade, ao invés da fragmentada “renovação” pós-moderna, que nos enfiaram goela abaixo os neoliberais que deformaram essa instituição. Tornamos-nos “especialistas”, numa sociedade onde a maioria, de forma obtusa, acredita saber de tudo. E, paradoxalmente, essa mesma sociedade não nos vê como doutores. “Doutores” são outros.
Contudo, esses mecanismos não foram introduzidos de forma aleatória. Isso acompanhou toda uma transformação que levou a todos os cantos do mundo – ou a quase todos – a onda da globalização. Era preciso implementar, dentro da estrutura formadora da “inteligência”, elementos ideológicos que criassem uma geração de novos cientistas, adaptados a uma era movida à tecnologias cada vez mais sofisticadas. A técnica passou a ser o suprassumo que justificava principalmente a transformação da sociedade de rural em urbana. Mais do que isso, acompanhado de tecnologias que nos tornassem dependentes cada vez mais dos objetos, e de uma ideologia que não implicasse com esses novos comportamentos.
Ao contrário, os deslumbramentos gerados por essas mudanças viriam a tornar as novas gerações mais do que receptoras das ideias desse “novo mundo”, eles se tornariam preceptores, espécies de vigilantes do sistema. A Universidade não poderia ser local mais adequado para criar esses novos modelos de jovens pesquisadores, adestrados e adequados a uma lógica neoliberal, escorada no tripé: competência, produtividade e dedicação. A vida passava a ser adaptada a um novo modelo, cartesiano, produtivista e quantitativista. Uma vitória do positivismo.
O sucesso seria acompanhado de números e estatísticas comprobatórias do que seria você nos últimos cinco anos. E seria preciso, a partir de então, reinventar-se a cada ciclo, para não ser ultrapassado numa corrida cuja disputa só nos leva a um pódio, o do primeiro lugar. A competição passou a ser o motor desse novo modelo, mas a ausência de conteúdo e os limites da busca pelo novo, já que o sistema engessa a criatividade, afastou gradativamente a universidade da sociedade, tornando-a uma redoma, cada vez mais insensível aos problemas sociais.* A não ser pelo quantitativismo das análises estatísticas, devidamente comprovadas pelos argumentos de autoridades. Passou-se a repetir, por necessário, o que outras eminências já haviam dito, e assim sucessivamente. Criatividade, quase zero. Mas isso se tornou suficiente para criar “escolas” e a servir-se a si mesmo, enquanto grupos que se bastam, e que repetem seus fundamentos, enchiam-se de vaidades e deslocavam-se em trocas de indicações por ambientes em que se tornam repetitivas as suas presenças. Isso, no entanto, infla o ego e os faz imaginarem-se superiores em suas limitações fragmentadoras.
A maior perversidade, no entanto, é a destruição da história. A onda arrebatadora que pretendia uniformizar o mundo culturalmente, ou o consenso que se tentava impor por todos os cantos, precisava negar tudo o que significava a vida em processo. Com começo, meio e fim. E mais, que os fatos não se explicassem por suas causas, mas pela eminência do que eles poderiam representar no futuro. Mesmo que esse seja, como de fato o é, uma ilusão. Mas, por não ser um fato, abolia-se, assim, a sua história.
Nessa confusão pós-modernista pouco valor se passou a dar ao que construía nossa vida, ao que explicava o que somos, e a somatória de valores que conseguimos construir por décadas e séculos. Aqui se junta ao que já abordamos em relação à ciência e a tecnologia, a informação. O conhecimento passou a ser conduzido por aqueles que buscavam impor essa nova ideologia, e a se limitar às fronteiras do específico, abolindo a totalidade. Era satisfatório tornar-se autoridade em um assunto limitado, muitas vezes buscando-se explicá-lo por si próprio, completamente desprovido de dialética, portanto, alheio às contradições. Esse tipo de conhecimento encerra-se em si mesmo, é fragmentado e fragmenta-se cada vez mais na sequência da aderência de novos discípulos, que devem seguir disciplinadamente seus orientadores. Pode até mesmo dialogar com os mesmos, mas jamais contrariá-los, pois serão destruídos com o velho argumento da autoridade.
Desprovidos de memórias, achincalhando a história, nega-se o passado. Afirma-se um presente tênue, como naturalmente ele é em realidade, só que sua passagem significa também a construção do passado. E é este que pode explicar todas as transformações nas quais estamos envolvidos. Nossa vida no presente só se explica pelo que fomos no passado. Negar isso é abdicar de procurar respostas para as contradições que movem o mundo. Relegar nossa história de vida aos últimos cinco anos é impedir que tenhamos uma visão holística do que somos e do que fizemos. E o que fizemos é o que garante a possibilidade de conhecer o que somos.
A história tem sido negada permanentemente desde que o neoliberalismo se espalhou pelo mundo. E a onda tecnológica, de informações rápidas e resumidas, essência da globalização, produziu uma geração de estúpidos com comportamentos de gênios. Vaidosos, pelo domínio de conhecimentos compartimentados, fragmentados, assumem-se como competentes em seguir rigidamente as regras que lhes são impostas. Isso garante a ascensão na carreira e a condução para um novo patamar de melhores salários, tudo isso resumido em impiedosos adjetivos: competitividade e mérito. É a absoluta vitória da essência do sistema capitalista, a meritocracia como condição de nos elevarmos a posições de destaques e de melhorias sociais. Os que assim não agirem, de forma a atingir esses píncaros da glória, amargarão eternamente a pecha de incompetentes e de acomodados – e por aí se justifica as desigualdades sociais. Muito embora alguns desses carreguem em suas histórias trajetórias que valem muito mais do que as estatísticas quantitativas de produções medíocres. Ou até mesmo de alguma validade, mas que não são compreensíveis dentro de uma noção que nega o processo que a torna parte de um mundo muito mais abrangente.
Prosseguirei nessa inabalada posição crítica, sem, contudo querer negar a importância da Universidade como produtora do conhecimento, da pesquisa e da formação profissional. Mas de uma Universidade que não se descole da sociedade, e que contribua com esta na correção de rumos que aponta a humanidade para um futuro de relações frias, cada vez mais individualistas, porque assentadas na competição. Uma universidade que resgate a capacidade de discutir e debater os problemas sociais não somente identificando as causas de seus desvios sociais, econômicos, éticos e morais, mas apontando, concretamente, formas de romper com o que se apresenta como nosso destino, disseminado por um ideólogo conservador, pelo qual estaríamos fadados a ver no capitalismo o fim da história.[i] Por uma Universidade viva, que não tolha a liberdade de pensamento e a criatividade dos que desejem inovar e produzir de acordo com as metodologias que lhes convier, e não somente aquelas apontadas e indicadas por supostas cabeças ilustres e especialistas que buscam uma visão cada vez mais limitada de seus próprios umbigos. Fecham-se em copas e refugam o novo, a novidade, a crítica e a capacidade de compreender a vida como um processo contínuo e dialético. Aliás, até a própria dialética tem sido questionada como um método de produção do conhecimento.
Há alguns anos, pouco tempo atrás, em meio a conflitos causados por abalos emocionais, de perda de motivação para prosseguir na luta política em função da morte de minha filha querida, para sempre lembrada por mim com muitas saudades, mas também para sempre uma companhia que estará ao meu lado eternamente enquanto eu viver, eu escrevi aqui mesmo neste blog que me afastava dos embates políticos. Creio ter superado aquele momento. Reencontro-me com motivos e razões para retomar aquelas forças perdidas. 
Vivemos um momento de desesperanças e diante de uma crise que afeta o sistema capitalista em todo o mundo, sem muitas perspectivas que não as guerras. Saio de minha posição, de um conforto que me causava incômodo e de uma decisão de me dedicar ao trabalho acadêmico. Percebi que não tenho o perfil de um indivíduo acomodado, neoliberal, disputando a bíceps espaços demarcado pelo produtivismo estéril. Retorno ao ambiente que me formou, abdico de me consumir pela neurastenia que tem impregnado a Universidade, cuja patologia já tem até um nome, normose, pela qual os indivíduos aderem de forma doentia aos valores que se apresentam na sociedade, sem questioná-los, e a incorporarem como normais.[ii] Eu diria que esse é o caminho que a sociedade tem tomado, e a adquirir uma enfermidade perversa, que acomete o sistema cerebral dos indivíduos e os fazem esquecer-se de quem é e de seu passado. A isso eu dei um nome: “mal de Alzheimer social”.
Contra esse perfil de Universidade, e a fim de combater a mesmice e os que se julgam suprassumos desse sistema marcado pela perversão, volto a me engajar numa luta que já travo desde os tempos de estudante, em um momento de profunda crise, em que perdemos direitos, redução de verbas e vemos avançar medidas que retroagem no tempo. A Universidade precisa estar atenta a essas transformações, e por isso torna-se necessário quebrarmos a redoma na qual a universidade brasileira se fechou e enfrentarmos o desafio de lutar por mudanças mais uma vez, mesmo que de imediato tenhamos apenas que manter aquilo que conquistamos nos últimos anos.

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NOTAS:
* Universidades ou fábricas? - http://www.cartacapital.com.br/revista/850/universidades-ou-fabricas-253.html
[i] Fukuyama, Francis. O Fim da História. Rio de Janeiro: Rocco, 1992

sexta-feira, 8 de maio de 2015

O REENCONTRO DE UMA GERAÇÃO


Este artigo foi publicado no livro “Depois que você partiu”, uma seleção de crônicas que escrevi para suportar as saudades de milha filha, e em homenagem a ela. A primeira edição foi publicada em 2008. A segunda edição no final do ano de 2014.

Se há algo de que não se pode escapar na vida é do destino que nos envolve. Vivemos vidas separadas, entrelaçadas às vezes por momentos que não são permanentes. Eu, esposa, filhos, amigos, os colegas que compõem o nosso cotidiano no trabalho, ou nas atividades de lazer. E assim acontece com todos nós. Rompemos às vezes as rotinas que criamos para dar seguimento às nossas vidas, e quase sempre buscamos no passado lembranças que possam explicar aonde nós chegamos. Sentimos necessidade disso, pois de vez em quando surge aquela nostalgia positiva e ficamos impacientes quando demoramos a reencontrar pessoas que junto conosco fizeram história. A história de nossas vidas. Contudo, às vezes o destino faz com que os dois extremos se encontrem, formando um nó que atrela mais ainda nossas vidas, e faz de momentos felizes lembranças de tragédias que nos confundem.
A história do nosso reencontro, da geração que marcou uma época de embates estudantis durante os anos 80, começou a ser pensado em um momento trágico, da perda de um dos protagonistas dessa história. Vitimado por um Acidente Cardiovascular, algo incomum para a idade que ele tinha, mas tanto mais fatal quanto atinge os mais jovens, o nosso amigo Gilson Bueno não resistiu após uma luta pela vida que durou quase trinta dias de internação no Hospital Neurológico de Goiânia. O mesmo onde presenciei as últimas horas de meu pai, no mês de junho de 2001.
Gilson sempre foi uma pessoa extrovertida. Gozador, parecia que nunca levava as coisas a sério. Descontraído, com um temperamento que saía facilmente da alegre ironia para a irritação, Gilson era uma das figuras mais animadas do nosso grupo. Lembro-me dele não somente nos encontros de Viração, ou nos embates do movimento estudantil, mas nas constantes festas que participávamos na residência de D. Edmée, mãe de minha comadre Márcia Alencar, madrinha de Iago. A casa das Alencar (é claro que tinha também o Virgílio, mas era único em meio a uma família matriarcal, por isso a referência é às Alencar, ele que me desculpe) era um dos lugares mais agradáveis que frequentávamos, e onde sempre éramos bem recebidos. Nascida no mesmo dia e mês de minha mãe, Dona Edmeé tornou-se uma grande amiga por quem tínhamos um profundo respeito. Infelizmente, também ela já não se encontra mais entre nós.
Ali, por muitas vezes nos divertimos ao som da sanfona, do forró, das músicas de Luiz Gonzaga, e, nos finais de ano, nos tradicionais Réveillons, por elas organizados e que para mim são inesquecíveis. O Gilsinho era praticamente da casa.
A militância no PCdoB também nos aproximou, embora Gilson tivesse estudado na Faculdade Anhanguera, onde foi liderança destacada. Mas convivemos por meio das atividades eleitorais ou mesmo dos eventos e encontros do movimento Estudantil e da Viração. Mas, a militância partidária que nos reuniu também nos separou. Não definitivamente, mas passamos a não nos entender mais como antes, a partir do momento em que ele e outros velhos companheiros romperam com o PCdoB e seguiram outros caminhos, mas sempre mantendo um engajamento político.
Por um tempo isso nos distanciou. Mas aos poucos a poeira foi se assentando e conseguimos restabelecer nossa relação. Não quero entrar em detalhes dessas nossas divergências ideológicas, ou partidárias, porque conseguimos superar essas questões e também pela complexidade que envolve esse processo.
A presença de Gilson no SEBRAE, para onde foi juntamente com outro amigo, Gilvane, este alçado à condição de superintendente, garantiu essa reaproximação, na medida em que mantive minhas relações de amizades apesar dos caminhos partidários separados. Ao mesmo tempo uma amizade comum com meu compadre, Benaias, padrinho de minha filha Carol, reforçou esses contatos. Por muitas vezes juntamos nossas famílias em alegres churrascos na casa do Benaias, e ali, entre um gole e outro de cerveja, a língua do nosso amigo Gilson tornava-se mais ferina em suas ironias. Essa era uma característica sua, eterno gozador que parecia não levar nada a sério.
Gilson demonstrava ter uma vida feliz, descontraída, amorosa com sua companheira e filhas. Curtia seus momentos com os exageros comuns a todos nós, com as características daquelas pessoas que curtem os amigos e a satisfação de estar na farra com um grupo que se gosta. Ás vezes tornava-se chato nas gozações e como cada um de nós que tem seu jeito ranzinza peculiar, também tinha seus defeitos. Mas era um amigo e companheiro leal, porque também essa foi uma característica desse grupo oriundo das lutas estudantis dos anos 80. As festas sempre foram a nossa marca registrada. E, desde aquela época, uma marca presente no Gilson, e que nos lembra saudosamente, era suas “tiradas” gozadoras que lhes rendeu uma série de frases marcantes que muitos amigos até hoje não esquecem.
A morte de Gilsinho foi uma trágica surpresa. Nos fez lembrar de outros momentos tristes de perdas de amigos que faziam parte dessa geração, dentre eles Enedina, Cássio, Andréa e, um outro grande companheiro e amigo, Ciro Lisita. Todos se foram nos anos 80 e 90. Os momentos que antecederam seu sepultamento, de profunda tristeza e lamento pela perda inesperada, também foram de reencontros entre velhos amigos, que, embora separados por vários motivos e por divergências políticas, se viram envolvidos em meio a tamanho infortúnio. Naquele momento, maior do que as divergências eram os vínculos de amizade que nos ligavam e as lembranças de uma época que não queremos esquecer. Ali nos despedíamos fisicamente de nosso amigo Gilson, mas em seu último ato ele nos possibilitou começarmos a traçar os planos do que seria um grande reencontro.
A fatalidade que levou à morte de Gilson parecia nos ligar de varias formas, desde a alegria do reencontro até tecer uma teia que nos envolveria em mais dois casos de tristes partidas. Gilsinho não partiria sozinho nesses tempos de reconciliação. A Verbena e a Carol são partes de uma História que nos une a Gilson e que nos deixou momentos sofridos em meio às alegrias de conseguirmos reagrupar centenas de companheiros e companheiras de uma época marcante.
A casa de Benaias virou uma referência para esse simbolismo trágico. Nela curtimos vários encontros alegres entre churrasco e cerveja. E a presença nesses momentos de Gilsinho, da amiga Verba, e da pequena Carol, que já criava uma amizade com as filhas de Gilson e de sua companheira Patrícia. Das alegrias desses encontros de sábados e domingos para a tristeza das perdas e ausências de três figuras que marcavam nossas relações passaram-se pouco mais de um ano.
O ano de 2007 despontava como sendo um ano histórico em nossas vidas por um motivo alegre. Mas nos marcou muito mais pelas tragédias que envolveriam personagens diretamente ligados ao reencontro que nos propusemos a fazer, em memória de Gilson e dos demais companheiros de Viração falecidos em anos anteriores. Em março, quando concretizamos esse momento, jamais poderíamos imaginar que no transcurso daquele ano perderíamos a Verbena, uma das pessoas que mais se empolgaram com a possibilidade de reencontrarmos os companheiros de Viração, e que fez parte da comissão que coordenou a preparação da festa. Ainda temos na lembrança e na fotografia, o último encontro da comissão, no apartamento dela e do Orlando quando comemoramos o sucesso da festa e alguns encaminhamentos finais, como a finalização de um DVD e já discutindo a possibilidade do segundo encontro. Ali estávamos eu, Orlando, Verbena, Isalice, Héder, Chico Messias, Horácio e Geovana.
A festa de Viração foi marcante. Embora preocupados com as manifestações de possíveis divergências políticas, ou diferenças pessoais, entre ex-companheiros que por um motivo ou outro se desentenderam quanto às definições e opções partidárias, sabíamos, pelo que construímos nas décadas de 80 e 90, que o sentimento de respeito e carinho pelo esforço que fizemos para nos reencontrarmos com a história seria predominante. Ouvíamos aqui e ali algumas manifestações de intolerâncias e alguns resquícios de desavenças de tempos passados, mas nós, que assumimos a tarefa de organizar a festa tínhamos plena confiança que tudo daria certo. Apostamos durante meses na realização desse encontro e não acreditávamos, tal era a nossa empolgação, que algum problema fosse atrapalhar.
E assim aconteceu. A festa transcorreu sem nenhum problema, e de certa forma nos surpreendeu, tanto pela quantidade de pessoas presentes, como pela relação de cordialidade que prevaleceu, sem que nenhum incidente manchasse aquele momento histórico. Viração renascera em nossos corações, agora em meio a uma encruzilhada de caminhos que se tornaram escolhas de rumos para muitos daqueles que em outros tempos erguiam os punhos mediante um mesmo ideal. Houve então, um momento de respeito, pela nossa história, pela memória daqueles que partiram antes de nos reencontrarmos.
Já não éramos moços e moças empolgados com um farol distante a nos iluminar e indicar um caminho, nem tínhamos mais o mesmo ímpeto juvenil e revolucionário de antes. Um a um, claro, muitos acompanhados, chegavam pais, mães, profissionais liberais, professores, parlamentares, e um séquito de filhos e filhas, demonstrando que mais do que o tempo que fizeram nossos cabelos embranquecerem, ou simplesmente desaparecerem, trazíamos ali o futuro radiante de uma geração ousada, aguerrida, combativa.
Sorridentes, alegres e felizes por aquele momento, e uma satisfação incontida em todos ali presentes. De repente, dissiparam-se as divergências, o respeito ao passado falou mais forte e vivemos uma noite de alegria e nostalgia. O momento marcante se deu quando foram exibidas as imagens que havíamos acumulados nos meses de preparação da festa, fotos de fatos que marcaram época, e as homenagens àqueles companheiros e companheiras cujas vidas foram ceifadas anos antes.
Havíamos realizado algo que muitos julgavam impossível, e não somente reconciliar momentaneamente antigos companheiros como tivemos entre nós convidados que nos anos 80 eram nossos adversários políticos, mas que hoje convivemos bem com eles e nos respeitamos com nossas escolhas políticas. Assim, o retorno àquela época estava completo. Empolgados, já planejávamos ali mesmo a próxima festa, de modo a multiplicar o número dos presentes. Naquele momento nós já não tínhamos mais dúvida de que isso era plenamente possível.
Aquela festa repercutiu por muito tempo. Em seguida, passamos a realizar vários pequenos encontros, que tinham como objetivo manter acessa a mesma empolgação, além de discutirmos a finalização do DVD com imagens da festa.
Em meio a isso se somariam algumas surpresas desagradáveis. A primeira delas me envolveu diretamente, e a Celma, mas também aos demais amigos, pela amizade e por estarmos nos encontrando constantemente, e mais uma vez ao compadre Benaias. A Carol adoeceu e o que aparentava ser uma simples virose complicou-se, levou-a ao hospital onde permaneceu durante dez dias, nos deixando assustados e profundamente preocupados. Com sua saída do hospital nos sentimos aliviados, e marcamos um encontro para registrar nossa alegria com a sua recuperação. Isso se deu em minha casa, e junto conosco e outros amigos lá estava a amiga Verbena, por quem a Carol tinha uma grande simpatia.
Mas, lamentavelmente, 2007 não transcorreria com as mesmas expectativas como aquelas geradas pelo nosso reencontro. Outros encontros, desta vez trágicos, marcariam este ano que terminou fatídico para alguns de nós. Em agosto uma notícia nos pegou de surpresa, nossa amiga Verbena, que trazia em seu ventre o fruto de um desejo acalentado por vários anos junto com seu companheiro e nosso velho amigo Orlandinho, fora internada às pressas com uma infecção mal diagnosticada. Em pouco tempo, 24 horas depois, mais uma tragédia se abateu sobre nós, Verbena partira de nosso meio fazendo dissipar toda aquela onda de alegria que nos envolvera nos últimos meses. Em meio a dor que se abatia sobre Orlando e ao desespero em que amigos e parentes se entreolhavam perplexos eu me lembrava da felicidade da Verbena, em nossa casa, comemorando conosco a recuperação da Carol pouco mais de dois meses antes.
Verbena foi também uma personagem destacada nos anos da Viração. Estudante de História da UCG, chegou a ser presidenta do Centro Acadêmico, sempre demonstrou firmeza  na defesa de nossas bandeiras e destacava-se pela tranquilidade com que lidava com as adversidades e  por uma descontração que lhe era peculiar. O riso fácil e o jeito brejeiro mesclavam-se com uma serenidade e tornava fácil a ela envolver as amizades. Essas mesmas características marcaram sua presença na presidência do Centro de Seleção da UFG, cargo que ocupava até o dia de sua morte. E foi assim, como esse jeito envolvente, que ela conquistou a simpatia daqueles que estavam sob a sua coordenação. Verbena se foi em um momento que demonstrava não somente capacidade intelectual – poucos anos antes ela havia se tornado doutora – mas por demonstrar também uma competência gerencial, comprovada na maneira diferente com que ela transformou aquela unidade da UFG em pouco tempo. Grande amiga e companheira foi uma perda inestimável, que nos deixou profundamente abalados.
Procuramos dar todo o apoio ao nosso amigo Orlando, que perdera não somente sua amada companheira, mas também o bebê, que eles tanto sonharam em ter. Assim, por semanas prosseguimos tentando encontrar respostas para algo que não pode ser explicado, oferecendo nossa solidariedade a um amigo que foi um dos mais ativos e empolgados pela realização do reencontro de nossa geração.
Mas esse apoio se deu também por parte de alguém que queria retribuir ao carinho que recebeu enquanto esteve doente. Lembro-me de um dia, quando fui chamado pelo Horácio, amigo e cunhado do Orlando, para nos encontrarmos com ele, juntamente com suas irmãs, em um bar no Jardim América, para que pudéssemos distraí-lo, em meio a tanta tristeza. Ao saber aonde eu iria, imediatamente a Carol se dispôs a ir comigo. Imediatamente eu a fiz saber que ia a um bar onde não havia espaço para crianças, ao que ela me respondeu: “mas pai, eu quero ir para ver o Orlandinho”.
E a vida me reservava uma tragédia ainda maior, que acabaria por unir os fios daquela teia que nos envolvia a todos, e, principalmente, ligavam ao Gilson, a Verbena, ao Orlando, ao Benaias, a mim, a Viração. Uma nova internação da Carol e a identificação de uma doença perversa se deram em um curto tempo, três dias, no mês de dezembro, sem que houvesse chances para que minha pequena pudesse reagir e lutar por sua vida conosco. Carol partiu no dia 13 de dezembro, e quis o destino que as duas pessoas que fosse até nossa casa nos dar essa trágica notícia, estivessem ligadas por laços de amor e amizade a essas três personagens: Orlandinho, que meses antes vivera ele próprio o mesmo desespero, e a Cláudia, por quem a Carol se afeiçoara tanto, e que também se tornou grande amiga do Gilsinho e da Verbena.
Infelizmente 2007 não deixaria em nós a lembrança alegre de nosso reencontro como momento mais marcante. Porque as tragédias, as perdas, as partidas de pessoas queridas que tanto amamos, deixam muito mais presentes em nós as marcas e cicatrizes de infortúnios e infelicidades do que as alegrias pelo reencontro de grandes amigos.  Esses amigos e amigas, certamente estarão novamente juntos em outros encontros, falaremos mais uma vez de alegrias e tristezas, mas os que partiram, pessoas que compartilhavam conosco esses momentos deixarão apenas a lembrança e a saudade em nossos corações e mentes. Já não os veremos mais. Os nossos planos de reencontros os terão somente na tela a embalar nossos lamentos, como assim estiveram em março aqueles que partiram antes.
Gilsinho, Verbena e Carol, conseguiram fazer com que nos mantivéssemos mais unidos, e, é assim que eu penso, compreendendo melhor o valor das amizades. Ao longo de menos de dois anos, entre perdas e reencontros, pusemos à prova alguns desses valores, quebramos barreiras que nos distanciavam por mesquinharias políticas, e percebemos que não precisamos ser todos iguais no viver e no pensar para mantermos firme uma velha e boa amizade. Só precisamos ser mais tolerantes.
Certamente, passados os momentos de dor e tristezas profundas, suas lembranças serão fortes motivos para prepararmos os próximos reencontros.
E como a nos mostrar que a vida é essa somatória de momentos contraditórios, de difícil relação com a morte e da aceitação das perdas, mas também de situações felizes que envolvem aos que estão ao nosso redor, presenciamos também o nascer de uma nova geração. Nesse período pudemos acompanhar o nascimento do neto de uma grande companheira, que também esteve conosco na preparação do reencontro dos viracionistas. A nossa “jovem” amiga Izalice tornou-se avó. Nascera o filho da Marília, esta uma bela garota fruto de uma relação com outro amigo e companheiro viracionista, Eugênio, mas que o tempo se encarregou de encerrar, deixando sementes que simbolizam o eterno ciclo da vida. Chegou também para animar o cotidiano dessa nossa “velha” amiga, também ela, como todos nós, envolvida em meio a infortúnios e alegrias.
Vidas que vão, vidas que vêm. E assim seguimos convivendo com alegrias e felicidades, e com momentos tristes por nossas perdas, sem querer nos conformar com a única certeza que temos: que um dia, inevitavelmente, a morte virá. Celebramos a vida efusivamente, embora nem sempre saibamos aproveitá-la bem, já a morte não somente nos tira pessoas queridas, e às vezes seremos nós mesmos, como deixa nossa vida mais vazia, pela ausência de quem preenchia parte de nosso cotidiano.
Não devemos parar por isso. Essa é uma frase difícil de dizer quando se perde alguém querido, principalmente uma filha. Mas é a vida. E ela segue numa rotina ao nosso redor que parece não ter sido desfeita, as pessoas, nossos amigos e amigas, continuam cumprindo o roteiro traçado por seus destinos. Talvez isso seja o pior momento quando tentamos nos recuperar dessas tragédias. Pensamos em nossa filha que se foi, nos amigos que também partiram, e olhamos para aquela criança que nasceu há pouco tempo radiando felicidade, e só nos resta conviver com um grande dilema: sentir tamanha perda e lembrar sempre de nossa filha, compartilhar a dor dos amigos que também perderam pessoas queridas, e viver a vida que segue adiante, diferente para nós, mas seguindo a rotina ao nosso redor, e até em alguns casos com mais alegrias. E como para tudo há um tempo certo que segue em direção ao seu fim, é preciso aproveitar esses momentos alegres com muita intensidade.
E como um eterno recomeço, já imagino um novo reencontro de Viração, torcendo para que tragédias semelhantes não marquem esse período, mas sabendo que essa é uma expectativa absolutamente incerta. Mas, fica uma certeza, de que a única coisa que nos deve parar é a morte, e, até que isso aconteça, devemos cumprir em vida nosso destino.
“Carpe diem quam minimum credula postero”*

“Colha o dia, confia o mínimo no amanhã
Não perguntes, saber é proibido, o fim que os deuses
darão a mim ou a você, Leuconoe, com os adivinhos da Babilônia
não brinque. É melhor apenas lidar com o que cruza o seu caminho.
Se muitos invernos Jupiter te dará ou se este é o último,
que agora bate nas rochas da praia com as ondas do mar.
Tirreno: seja sábio, beba seu vinho e para o curto prazo
reescale suas esperanças. Mesmo enquanto falamos, o tempo ciúmento
está fugindo de nós. Colha o dia, confia o mínimo no amanhã.”*

                             "Odes" (I,, 11.8) do poeta romano Horácio (65 - 8 AC)



(*) A publicação deste artigo no blog se deve ao fato de estarmos reorganizando mais um encontro dessa geração de lutas, que fez história na década de 1980. O III Encontro de Viração acontecerá no próximo mês de junho e será mais um momento aprazível para reencontrarmos companheiros e companheiras, camaradas, amigos e amigas, e revivermos momentos saudosos de nossas lutas políticas, das festas, e dos embates no movimento estudantil. Será momento até mesmo de reencontrarmos os nossos opositores, que também serão convidados. E de relembrarmos com saudades daqueles que partiram e não estão mais entre nós. E, como será o III Encontro, os dois outros serão também muito lembrados, bem como será o momento de relembrar que minha filha esteve presente, esbanjando alegria, no primeiro deles, em 2007, ano de seu falecimento. Como esquecer?...