sábado, 20 de outubro de 2012

MANIFESTO EM DEFESA DA CIVILIZAÇÃO


Diante do quadro de regressão social que atinge os países ditos desenvolvidos, um grupo de economistas formados pela Unicamp decidiu elaborar um "Manifesto em Defesa da Civilização". "Estamos, hoje, vivendo uma crise que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática? Quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha regressão?" - pergunta o manifesto. As respostas para tais questões, acrescenta, não serão encontradas nos meios de comunicação de massa, "ocupados hoje por aparatos comprometidos com a força dos mais fortes e controlado pela hegemonia das banalidades".

Segue a íntegra do manifesto:
Vivemos hoje um período de profunda regressão social nos países ditos desenvolvidos. A crise atual apenas explicita a regressão e a torna mais dramática. Os exemplos multiplicam-se. Em Madri uma jovem de 33 anos, outrora funcionária dos Correios, vasculha o lixo colocado do lado de fora de um supermercado. Também em Girona, na Espanha, diante do mesmo problema a Prefeitura mandou colocar cadeados nas latas de lixo. O objetivo alegado é preservar a saúde das pessoas. 
Em Atenas, na movimentada Praça Syntagma situada em frente ao Parlamento, Dimitris Christoulas, químico aposentado de 77 anos, atira contra a própria cabeça numa manhã de quarta-feira. Na nota de suicídio ele afirma ser essa a única solução digna possível frente a um Governo que aniquilou todas as chances de uma sobrevivência civilizada. Depois de anos de precários trabalhos temporários o italiano Angelo di Carlo, de 54 anos, ateou fogo a si próprio dentro de um carro estacionado em frente à sede de um órgão público de Bologna. 
Paris, às margens do rio Sena
Em toda zona do euro cresce a prática medieval de anonimamente abandonar bebês dentro de caixas nas portas de hospitais e igrejas. A Inglaterra do Lord Beveridge, um dos inspiradores do Welfare State, vem cortando recorrentemente alguns serviços especializados para idosos e doentes terminais. Cortes substantivos no valor das aposentadorias e pensões constituem uma realidade cada vez mais presente para muitos integrantes da chamada comunidade europeia. Por toda a Europa, museus, teatros, bibliotecas e universidades públicas sofrem cortes sistemáticos em seus orçamentos. Em muitas empresas e órgãos públicos é cada vez mais comum a prática de trabalhar sem receber. Ainda oficialmente empregado é possível, ao menos, manter a esperança de um dia ter seus vencimentos efetivamente pagos. Em pior situação está o desempregado. Grande parte deles são jovens altamente qualificados. 
Acampamento de desempregados -
Nova Jérsey (EUA)
A massa crescente de excluídos não é um fenômeno apenas europeu. O mesmo acontece nos EUA. Ali, mais do que em outros países, a taxa de desemprego tomada isoladamente não sintetiza mais a real situação do mercado de trabalho. A grande maioria daqueles que hoje estão empregados ocupam postos de trabalhos precários e em tempo parcial concentrados no setor de serviços. Grande parte dos postos mais qualificados e de melhor remuneração da indústria de transformação foram destruídos pela concorrência chinesa. 
Nesse cenário, a classe média vai sendo espremida, a mobilidade social é para baixo e o mercado de trabalho vai ficando cada vez mais polarizado no país das oportunidades. No extremo superior, pouquíssimos executivos bem remunerados que têm sua renda diretamente atrelada ao mercado financeiro. No extremo inferior, uma massa de serviçais pessoais mal pagos sem nenhuma segurança, que vivem uma realidade não muito diferente dos mais de 100 milhões que recebem algum tipo de assistência direta do Estado. O Welfare State, ao invés de se espalhar pelo planeta, encampando as tradicionais hordas de excluídos, encolhe, aumentando a quantidade de deserdados. 
Muitos dirão que essa situação será revertida com a suposta volta do crescimento econômico e a retomada do investimento na indústria de transformação nestes países. Não é verdade. É preciso aceitar rapidamente o seguinte fato: no capitalismo, o inevitável avanço do progresso tecnológico torna o trabalho redundante. O exponencial aumento da produtividade e da produção industrial é acompanhado pela constante redução da necessidade de trabalhadores diretos. Uma vez excluídos, reincorporam-se – aqueles que o conseguem – como serviçais baratos dentro de um circuito de renda comandado pelos detentores da maior parcela da riqueza disponível. Por isso mesmo, a crescente desigualdade de renda é funcional para explicar a dinâmica desse mercado de trabalho polarizado. 
Diante desse quadro, uma pergunta torna-se inevitável: estamos nós, hoje, vivendo uma crise que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática? E se isso for verdade: quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha regressão? 
A angústia torna-se ainda maior quando constatamos que as possibilidades de conforto material para a grande maioria da população deste planeta são reais. É preciso agradecer ao capitalismo, e ao seu desatinado desenvolvimento, pela exuberância de riqueza gerada. Ele proporcionou ao homem o domínio da natureza e uma espantosa capacidade de produzir em larga escala os bens essenciais para as satisfações das necessidades humanas imediatas. Diante dessa riqueza, é difícil encontrar razões para explicar a escassez de comida, de transporte, de saúde, de moradia, de segurança contra a velhice, etc. Numa expressão, escassez de bem estar! 
Um bem estar que marcou os conhecidos “anos dourados” do capitalismo. A dolorosa experiência de duas grandes guerras e da depressão pós 1929, nos ensinou que deveríamos limitar e controlar as livres forças do mercado. Os grilhões colocados pela sociedade na economia explicam quase 30 anos de pleno emprego, aumento de salários e lucros e, principalmente, a consolidação e a expansão do chamado Estado de Bem Estar Social. Os direitos garantidos pelo Estado não deveriam ser apenas individuais, mas também coletivos. Vale dizer: sociais. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que o direito à saúde, à previdência, à habitação, à assistência, à educação e ao trabalho eram universalizados, milhares de empregos públicos de médicos, enfermeiras, professores e tantos outros eram criados. 
O Welfare State não pode ser interpretado como uma mera reforma do capitalismo, mas sim como uma grande transformação econômica, social e política. Ele é, nesse sentido, revolucionário. Não foi um presente de governos ou empresas, mas a consequência de potentes lutas sociais que conseguiram negociar a repartição da riqueza. Isso fica sintetizado na emergência de um Estado que institucionalizou a ética da solidariedade. O individuo cedeu lugar ao cidadão portador de direitos. No entanto, as gerações que cresceram sob o manto generoso da proteção social e do pleno emprego acabaram por naturalizar tais conquistas. As novas e prósperas classes médias esqueceram que seus pais e avós lutaram e morreram por isso. Um esquecimento que custa e custará muito caro às gerações atuais e futuras. Caminhamos para um Estado de Mal Estar Social! 
Essa regressão social começou quando começamos a libertar a economia dos limites impostos pela sociedade, já no início dos anos 70. Sob o ideário liberal dos mercados, em nome da eficiência e da competição, a ética da solidariedade foi substituída pela ética da concorrência ou do desempenho. É o seu desempenho individual no mercado que define sua posição na sociedade: vencedor ou perdedor. Ainda que a grande maioria das pessoas seja perdedora e não concorra em condições de igualdade, não existem outras classificações possíveis. Não por acaso o principal slogan do movimento Occupy Wall Street é “somos os 99%”. Não por acaso, grande parte da população espanhola está indignada. 
Mesmo em um país como o Brasil, a despeito dos importantes avanços econômicos e sociais recentes, a outrora chamada “dívida social” ainda é enorme e se expressa na precariedade que assola todos os níveis da vida nacional. Não se pode ignorar que esses caminhos tomados nos países centrais terão impactos sob essa jovem democracia que busca, ainda, universalizar os direitos de cidadania estabelecidos nos meados do século passado nas nações desenvolvidas.
Como então acreditar que precisamos escolher entre o caos e austeridade fiscal dos Estados, se essa austeridade é o próprio caos? Como aceitar que grande parte da carga tributária seja diretamente direcionada para as mãos do 1% detentor de carteiras de títulos financeiros? Por que a posse de tais papéis que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza gerada pela totalidade da sociedade ganham preeminência diante das necessidades da vida dos cidadãos? Por que os homens do século XXI submetem aos ditames do ganho financeiro estéril o direito ao conforto, à educação e à cultura? 
As respostas para tais questões não serão encontradas nos meios de comunicação de massa. Os espaços de informação e de formação da consciência política e coletiva foram ocupados por aparatos comprometidos com a força dos mais fortes e controlado pela hegemonia das banalidades. É mais importante perguntar o que o sujeito comeu no café da manhã do que promover reflexões sobre os rumos da humanidade. 
A civilização precisa ser defendida! As promessas da modernidade ainda não foram entregues. A autonomia do indivíduo significa a liberdade de se auto-realizar. Algo impensável para o homem que precisa preocupar-se cotidianamente com sua sobrevivência física e material. Isso implica numa selvageria que deveria ficar restrita, por exemplo, a uma alcateia de lobos ferozes. Ao longo dos últimos de 200 anos de história do capitalismo, o homem controlou a natureza e criou um nível de riqueza capaz de garantir a sobrevivência e o bem estar de toda a população do planeta. Isso não pode ficar restrito para uma ínfima parte. Mesmo porque, o bem estar de um só é possível quando os demais à sua volta encontram-se na mesma situação. Caso contrário, a reação é inevitável, violenta e incontrolável. A liberdade só é possível com igualdade e respeito ao outro. É preciso colocar novamente em movimento as engrenagens da civilização. 


Os interessados em assinar o manifesto, ou conhecer a lista das pessoas que o assinam, podem acessar o link de Petição Pública:

domingo, 14 de outubro de 2012

O STF, AS BRUXAS DE SALÉM E O VEREDICTO DA MÍDIA

Côrte suprema brasileira
Tenho lido muito a respeito do julgamento no Supremo Tribunal Federal, do chamado “mensalão”, e naturalmente a minha análise será incorporada de inúmeras outras opiniões já expressas em revistas, jornais e blogs. Mas certamente terão essas opiniões não simplesmente me influenciado, mas tão somente somaram-se às ideias que já tenho formulado a respeito desse tema. Não vou nesse artigo, no entanto, entrar no mérito das condenações, mas do rito e da sua excepcionalidade. Até porque entendo que a acusação de Caixa 2, como formei a minha convicção, para mim caracterizaria um crime da mesma maneira

Mas, como direi adiante, parece que o STF e outras instituições do Estado brasileiro, inclusive o Congresso Nacional, recusam-se a atacar a origem de todos esses problemas, o sistema eleitoral brasileiro, e um histórico de “democracia” consolidada nos grotões e currais eleitorais. A venda de votos prossegue, legalizada pela modernização do sistema. Milhares de pessoas assalariadas e a venda de espaços para colocações de painéis nas residências e de “citrus” (película adesiva perfurada) nos veículos com propagandas eleitorais. Além dos vales-combustíveis. Mas pulemos essa parte, voltarei a ela depois.
Toda a discussão que tem sido feita em torno desse julgamento me leva à história de Abigail. Personagem de uma peça, transformada em filme, ambienta-se na aldeia de Salém, na colônia de Massachussetts, nos EUA do século XVII. O fato ocorreu verdadeiramente, mas foi transformado em peça teatral por Arthur Miller, teatrólogo estadunidense, que a adaptou em 1950 com o intuito de criticar os processos políticos em curso, no âmbito da guerra fria, denominado “macartismo”, numa referência à uma comissão criada pelo senador Joseph McCarthy para perseguir todos os suspeitos de simpatizarem com o governo soviético e o socialismo.
Peça de Arthur Miller: uma crítica
ao macartismo.
Da histeria coletiva, criada pelas denúncias de Abigail, àquela gerada pelos processos do marcartismo, o sentido da obra era demonstrar como as pessoas podem ser influenciadas por acusações feitas aleatoriamente, seja baseando-se em denúncias improváveis ou forjando-se evidências que reforcem fortes suposições difíceis de serem negadas porque baseadas em depoimentos que, pelas circunstâncias, são apontados como irrefutáveis. Mesmo se vierem de fontes nada confiáveis.
Em ambas as situações as condenações obedecem a desejos disfarçados, mas com a massificação das acusações firma-se uma opinião coletiva que já não somente tende a aceitar como verdadeiras, mas leva a que cidadãos comuns, alguns alheios aos fatos, constituam-se em juízes e carrascos, impulsionados pelas convicções criadas pela repetição.
Julgamento de Salém
Como em Salém, tanto durante o macartismo, como no julgamento do “mensalão”, desafetos dos acusados, ou aqueles que eventualmente possam tirar proveitos de suas condenações, aproveitam-se do ambiente criado para reforçarem as culpas e demonizar os que são julgados. Vendem, pelo ódio, a falsa ideia de que a moralidade depende de tais condenações. Ensandecida a multidão, a depender da situação – como de fato ocorreu em Salém – é capaz de defender até mesmo a morte, radicalizando ao extremo na onda dos discursos condenatórios.
Mas a multidão desconhece, porque maquiavelicamente construído, que se está julgando muito mais do que indivíduos – embora não o sistema – mas projetos, e a consolidação de uma política que se choca com interesses poderosos. Tal qual as situações anteriormente descritas, há por trás de todos esses fatos outras moralidades, ou intenções políticas, e em nenhuma delas o que se pretende é corrigir, na essência, os problemas que tenham gerado os desvios apontados.
E nesse caso, são muitas as evidências que apontam para uma articulação com viés nitidamente conservador, cujas culpas foram construídas ao longo de anos de repetição dos fatos e da criação de uma espécie de logomarca do delito. Expressão essa construída por um dos acusadores, e ao mesmo tempo réu confesso da participação do esquema de repasse de recursos ilícitos, fruto de acordos políticos entre partidos de uma mesma base aliada. O que se apresentou inicialmente como acertos para sanar dívidas de caixa de campanha eleitoral, culminou com acusação de repasse de valores para pagamento de votação no Congresso Nacional. Algo difícil de ser demonstrado por provas, e praticamente impossível de ter acontecido na forma da acusação.
Como um julgamento pode
ser manipulado
Eu sempre fui apaixonado por filmes cujos enredos se desenvolviam em tribunais de júris. Quase sempre eles têm suas tramas muito bem articuladas levando a que o confronto entre acusação e defesa nos faça construir conjecturas e firmar opiniões sobre os resultados dos julgamentos. Mas em qualquer um deles, o grande embate se dá em torno da necessidade de a acusação construir as provas que demonstrem a culpabilidade do acusado. E cabe a defesa destruir essas provas, buscando-se no contraditório os elementos necessários para livrar seu cliente das culpas que lhes são atribuídas. Esses são os pilares do sistema democrático, não meramente capitalista, mas construído desde a Roma antiga, de onde se origina boa parte das leis que estruturam o judiciário brasileiro.
Uso exemplo de filmes porque não sou da área jurídica. Mas qualquer um estudante de direito sabe que jamais um juiz levará adiante uma acusação que não esteja devidamente fundamentada em provas consistentes e/ou em testemunhos que sejam dados por personagens insuspeitas, e que não tenham nenhum histórico de atrito com quem está sendo acusado.
Mas é possível que em alguns casos as condenações sejam baseadas em suposições, em conjecturas, em denúncias feitas por desafetos, ou porque o júri é estabelecido para um fim específico. São os julgamentos que acontecem nos chamados “tribunais de exceção”, direcionados por interesses políticos já com um fim previsível, uma vez que a sua convocação tem por pressuposto a condenação de crimes já consolidados do ponto de vista da opinião pública e daqueles que comandam o aparato político e jurídico, até mesmo internacionalmente.
Nesses casos, o condenado perde a possibilidade de ser julgado por instâncias inferiores, o que lhe permitiria recorrer às superiores, até se chegar à suprema corte, em nosso caso, o STF. Também nessas situações o tribunal do júri não precisa ser necessariamente, composto por juristas, cabendo a uma pessoa comum eventualmente participar do julgamento.
Essas características do tribunal de exceção estão todas presentes no julgamento do chamado “mensalão”, incluindo aí os discursos proferidos pelos ministros, nitidamente de cunho político e presumíveis, onde algumas das frases por eles ditas, aproximam-se do linguajar de pessoas comuns. Como, “não vamos ser ingênuos a ponto de acharmos que o Delúbio Soares agia à revelia dos que comandavam o partido”. Isso é senso comum puro, suposição, já que uma afirmação que dispensa prova, pois essa é julgada desnecessária. Procurá-la seria exercício de ingenuidade.
Julgamento dos criminosos
de guerra nazista
É evidente que não é preciso ser um tribunal de exceção para que haja manipulação, ou para que o seu resultado final esteja definido à priori. E isso pode acontecer para o bem ou para o mal. Há situações de júris para condenação de crimes de guerras, cujo objetivo é apenas exemplar. Ou seja, evitar que situações semelhantes, em casos de crimes contra a humanidade, possam se repetir. Ou em situações, como de regimes totalitários, quando se condena um indivíduo por delito de opinião, e por divergir políticamente. Aqui no Brasil isso funcionou com a chamada Lei de Segurança Nacional, e o julgamento sendo realizado por um tribunal militar. Nessas situações as condenações são certas. Mas também há julgamentos em que a manipulação decorre do poder econômico, exercido por quem está sendo julgado, e do aparato jurídico utilizado para prolongar um processo, muitas vezes até o seu limite, quando excede o prazo possível dele acontecer.
Então não se espere imparcialidade em todos os julgamentos. E, no caso de uma corte ser composta em sua maior parte por ministros conservadores, e em sua maioria sempre o são, pela própria tradição do direito (não importando quem os indiquem), os elementos ideológicos serão sempre um forte componente no discurso condenatório. Contraditoriamente, o princípio da moralidade se sobrepõe à política, mas com justificativas de votos claramente políticas.
Em várias edições a revista Carta
Capítal expôs provas contra o esquema
de Daniel Dantas
Estranhamente esse julgamento é ímpar, quando por diversas vezes o mesmo Supremo poderia ter atuado no sentido de punir grandes esquemas de corrupção, mas preferiu anular provas claríssimas de verdadeiros roubos bilionários de recursos públicos, como no escândalo do Banco Oportunitty, do banqueiro Daniel Dantas, beneficiado com dois habeas corpus em um único dia, pelo ministro Gilmar Mendes. Que era advogado da União na época em que os ilícitos foram cometidos e envolveram muitos personagens do governo federal no escandaloso processo de privatização das teles.
Vários argumentos já foram utilizados, e com muita competência, para caracterizar este como um julgamento de exceção. Não quero prosseguir nessa direção. Mas eu destacaria o que se apresenta como o ato mais vergonhoso da suprema corte brasileira. A submissão à pressão da mídia para que o julgamento coincidisse com o processo eleitoral, de forma a ser utilizado como uma peça política.
Além disso, a afirmativa presente na leitura de vários votos, de que esse tipo de crime não deixa rastro, e que portanto não se encontrariam provas capazes de condenar os culpados. Para tanto as peças condenatórias basearam-se em depoimentos dados em sua maioria à CPI do Congresso Nacional, de caráter nitidamente político e espetacularizado pela mídia.
Ora, eu com o meu humilde conhecimento de um leigo, compreendo que cabe ao Ministério Público ir atrás de provas que possam dar consistências às condenações. Se isso não foi feito decorre primeiro da incompetência do Procurador Geral da República, e segundo, porque já se sabia o resultado com base no perfil dos julgadores. E, portanto as provas tornavam-se irrelevantes. Mas qualquer um sabe, que quando há crime contra as finanças públicas ou contra o sistema financeiro a regra é clara, para repetir o bordão de um antigo juiz de futebol, basta seguir o rastro do dinheiro. E se isso não for suficiente para chegar a todos os culpados, não pode ser feito por meio de suposições, já que se está condenando a prisão pessoas que não possuem antecedentes criminais.
"Mensalão": a origem
É vergonhoso constatar que caso esse rastro fosse seguido, se chegaria à origem desse esquema, ou a essa prática de manipular recursos públicos e privados a fim de custear despesas político-eleitorais, construído em Minas Gerais, em arrecadação de campanha para o candidato a governador do PSDB, Eduardo Azeredo. E tudo isso já está nas mãos da Procuradoria, que, ao invés de priorizar o seu julgamento, já que se trata da origem do esquema, fez pior, fatiou o processo encaminhando para serem julgados em varas de instâncias inferiores, seguindo-se o rito jurídico normal a qualquer processo judicial. O que dará aos seus acusados, à exceção dos parlamentares, entre eles o ex-governador e agora senador mineiro, o direito de recorrer por tempo indeterminado por várias instâncias, até chegar ao supremo. Como se diz no linguajar popular: “dois pesos, duas medidas”.
Mas o que esse julgamento não faz é exatamente privar o ambiente político da repetição desses crimes. Porque não se discute as questões essenciais para se chegar ao diagnóstico do problema. E quanto a isso eu quero concluir as minhas críticas no que para mim é o fundamento da hipocrisia que está por detrás dos discursos.
Não basta condenar as pessoas, ou crucificá-las para atender às pressões da mídia conservadora, entregando a cabeça de desafetos da elite ao estilo dos desejos de Salomé, que teria exigido a cabeça de João Batista. Porque o problema encontra-se no funcionamento do sistema eleitoral e, claro, a forma como funciona a dita democracia capitalista. O STF recusa-se a reconhecer que são as fissuras desse sistema, dirigido por seus próprios ministros, que possibilitam o surgimento de tantos casos de corrupção.
Denúncia contra a compra de votos
durante votação da emenda que
garantiu a reeleição de FHC
Porque esse sistema de gerar dinheiro para pagar dívidas de campanhas e assim assegurar apoio político funciona abertamente. E, se não como no mecanismo utilizado pelo chamado “mensalão”, acontece com a distribuição de cargos concedidos pelos governos com o intuito de facilitar aprovação de projetos, em parlamentos onde o chefe do executivo não disponha de maioria parlamentar. Como acontecia na administração de Furnas, que possibilitou o desvio de milhões de reais que abasteceram o “mensalão” mineiro de Eduardo Azeredo, segundo as denúncias. Por isso alguns grandes partidos da base política do governo não aparecem nesse julgamento, porque tinham outros esquemas, pelo controle de ministérios e estatais poderosas. Isso acontece em qualquer governo, infelizmente. É assim que o sistema funciona.
Mas acontece também com segmentos do crime organizado. Todo o esquema desvendado com a prisão de Carlos Cachoeira demonstra isso, é visível a qualquer leigo mais esperto. Mas também todas essas provas correm o risco de serem tornadas ilegais, assim como foram as provas que condenariam o banqueiro Daniel Dantas, et caterva. São incontáveis os casos descobertos, mas não há condenados, embora nesses casos existam provas.
Ora, o STF deslegitima provas cabais, de grandes golpes que movimentam valores em dinheiro bem maiores, e condenam sem provas, nesse processo em curso. Isso, a meu ver, atinge em cheio a credibilidade da suprema corte. Ao mesmo tempo em que mantém atuante os esquemas que são favorecidos por um sistema nitidamente corrupto, por essência.
Mais um bom filme sobre
o macartismo
Está evidente no comportamento da maior corte penal brasileira, ao sucumbir à pressão midiática e ao estabelecer regras diferentes para crimes semelhantes, que o seu perfil levará a livrar de condenações os que são ungidos pela grande midia, os que controlam a riqueza e aqueles políticos que representam esses interesses conservadores.
Dessa forma, se consolidará um mecanismo que atenda a preocupação explicitada, num discurso político visível, pelo presidente do STF, quando condenou o processo eleitoral brasileiro que possibilita as coligações políticas. Certamente defendendo uma bipolaridade, tal qual funciona nos Estados Unidos, com uma disputa entre dois grandes partidos, sendo um conservador e outro liberal. Melhor funcionaria esse sistema dos sonhos de muitos da elite política brasileira, expresso nas ideias do presidente do supremo, se o grande partido político que mais se identifica com as camadas mais pobres ficasse manchado por práticas só permitidas aos partidos conservadores.
Imagina-se assim uma disputa futura que possa ficar entre PSDB e PMDB ou PSB, disfarçados de direita e esquerda, mas assemelhando-se no essencial, assim como os Republicanos e os Democratas estadunidenses.
Não se pretende, com o julgamento em curso atacar na essência, no estômago, o sistema político brasileiro. Mas “purificá-lo”, a fim de pelo discurso da moralidade, e perversamente contra ela, adequá-lo a consolidação de um verdadeiro estado liberal, que possa se ver livre da ameaça de um possível socialismo bolivariano do século XXI. Enfim, o que se vê por trás dos discursos proferidos pelos ministros do Supremo pode não ser uma expressão da luta de classes, mas é nitidamente uma luta pela retomada do poder político pela elite conservadora a fim de blindar o Brasil da ameaça chavista.
Algo semelhante ocorreu no Brasil em 1964, por um golpe militar. Mas no século XXI, vide o exemplo de Honduras e Paraguai, os golpes estão sendo tramados e executados em parlamentos e em tribunais de exceção de côrtes judiciais. Por isso a democracia deve sempre ser vista como um valor histórico, e não como um valor universal. Ela incorpora valores de um tempo, e serve sempre aos interesses da classe dominante.

SINOPSES DE ALGUNS FILMES QUE NOS AJUDAM A ENTENDER JULGAMENTOS POLÍTICOS:
1. CULPADO POR SUSPEITA
Anos 50. Umas das mais aterrorizantes épocas da história americana, onde a sociedade, mergulhada no terror, vive seus dias de medo. Na caça de comunistas, o governo americano impõem a lei da denúncia. Uma mera suspeita é suficiente para implicar, em alguém, a culpa. Vivendo nesse meio, está David Merril (Robert De Niro), um famoso diretor de cinema que se nega a denunciar colegas comunistas. Incluído na "lista negra", tem sua promissora carreira interrompida.  Abandonado pelos amigos, passa a contar somente com a ajuda de sua ex-esposa Ruth (Annette Bening). Ao lado dela, enfrentará o Comitê do Governo.
DIREÇÃO: Irwin Winkler

2.  AS BRUXAS DE SALÉM
Em Salem, Massachusetts, 1692, algumas jovens fazem "feitiços". Uma delas, Abigail Williams (Winona Ryder), tinha se envolvido com John Proctor (Daniel Day-Lewis), um fazendeiro casado, quando trabalhou para ele, mas após o fim do caso foi despedida. Assim, desejava a morte de Elizabeth Proctor (Joan Allen), a esposa deste. Elas são descobertas no seu "ritual" e, acusadas de bruxaria, provocam uma histeria coletiva que atinge várias pessoas, sendo que Abby, a jovem desprezada por John, faz várias acusações até ver Elizabeth ser atingida.
COM: Daniel Day-Lewis e Winona Ryder
DIREÇÃO: Nicholas Hytner

3. BOA NOITE E BOA SORTE
Os embates entre o âncordrede CBS Edward R. Murrow e o polêmico senador Joseph McCarthy ajudaram a derrubar o político. Ele foi responsável pelinfame operação de “caçàs bruxas”, que acabou acusando, sem provas, vários cidadãos americanos de serem comunistas, nos anos 50.
COM: George Clooney, Robert Downey Jr., Jeff Daniels, Frank Langela
DIREÇÃO: George Clooney

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

QUE NOME DAR A ESTE TEMPO? POR MAURO SANTAYANA


Reproduzido do portal da Fundação Maurício Grabois
 
No mundo só há passado, e o passado cresce a cada dia, como resumiu o escritor argentino Macedônio Fernandez: “hoy hay más pasado que ayer”. O passado cresce, e o futuro, na vida dos homens e das nações, é uma vaga hipótese.
Charge Hobsbawm -
Iluminerds
A morte do historiador Eric Hobsbawm, ocorrida nesta semana, suscita uma curiosidade: se ele vivesse mais meio século – e não sabemos como o mundo será então, se ainda houver o mundo – como ele definiria essa segunda década do milênio novo? Ele não chegou a tratar do tema, mas a sua formação marxista naturalmente o levaria a constatar, como outros pensadores do fim do século passado, que a inteligência política está se tornando escassa nestes anos.
O neoliberalismo - essa mancebia entre o poderio militar dos Estados Unidos, os grandes bancos e a insensatez dos governantes dos maiores países do mundo - continua indestrutível e indiferente à crise que sua ganância provocou. Em Getafe, uma cidade ao sul de Madri, ontem, 15 mil pessoas fizeram fila diante de uma empresa que necessita de 150 empregados: cem candidatos por vaga.
O recrutamento está sendo feito por uma empresa terceirizada, que não explica de que trabalho se trata (em uma fábrica de implementos agrícolas), não informa se o trabalho será permanente ou temporário, nem qual será a remuneração.
O desemprego na Europa, mais grave nos países meridionais, ameaça atingir as economias  sólidas do continente. Há dias, o New York Times noticiava que famintos  buscam comida nas latas de lixo da Espanha – e, em algumas cidades, as autoridades, com preocupação sanitária, colocaram cadeados nas tampas. Mas as elites espanholas passeiam nas nuvens. Ainda agora, houve quem dissesse, em Madri, que a Cúpula Iberoamericana de Cádiz, no mês que vem, demonstrará  a “presença civilizatória da Espanha na América Latina”.
O problema mais grave é o do desemprego. As medidas de austeridade só beneficiam os grandes credores dos Estados, que são os banqueiros. Ora, todos os dias novas revelações demonstram que as maiores instituições mundiais de crédito se tornaram quadrilhas de bandidos. Os governos nacionais anunciam – como o da Inglaterra – legislações reguladoras severas, mas não vão adiante. Enquanto isso, o Goldman Sachs continua a governar diretamente a Itália, com Mário Monti, e a administrar as finanças da União Européia, com Mario Draghi no BCE.
Nos Estados Unidos, as eleições de novembro estão sendo disputadas polegada a polegada por Obama e Romney: desde Eisenhower, a grande nação do Norte vem sendo governada por homens menores – e Kennedy não escapa dessa definição. Para nós, da América Latina, Obama parece melhor, mas, tratando-se da Casa Branca, nunca se sabe. Em seu segundo mandato, ele poderá ser outro – e pior.
(Charge Lezio Jr - Revista Roling Stone)

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

ERIC HOBSBAWM: LONGA VIDA AO GRANDE MESTRE DA HISTÓRIA!


ERIC HOBSBAWM. Meu ícone, um exemplo, um mestre, sempre coerente com suas referências teóricas e ideológicas. Para mim o maior historiador do século XX. E ainda viveu por mais de uma década do século XXI, o suficiente para produzir seu último livro em 2011. Suas ideias e produção intelectual transcendem, em muito, sua existência corpórea. Permanecerá entre nós ainda por muito tempo, pois os livros e as ideias são para sempre.
Fico triste por sua morte, mas ele se foi com uma idade invejável, cumpriu seu destino com sobras. E, particularmente, fico feliz por ter podido me inspirar em sua grande elaboração teórica e ter adquirido boa parte de seus livros traduzidos para o português. Todos os seus livros, indistintamente, serão sempre por mim indicados para leitura, a todos aqueles que se interessem por conhecer a História numa visão de totalidade, tendo a dialética e o materialismo, como metodologia a orientar as suas pesquisas e elaborações intelectuais. Especialmente aquele em que melhor nos conta o que foi o Século XX: “A Era dos Extremos”.
Desde quando entrei na Universidade pude ter contato com seus escritos, e disputei seus livros com avidez, tão logo pude ler o primeiro deles, A ERA DAS REVOLUÇÕES. Logo depois me saciei um pouco mais com A ERA DO CAPITAL, e o entendimento do processo que transformou o mundo e introduziu uma nova classe social a comandar um novo sistema, prosseguiria com A ERA DOS IMPÉRIOS. Esses três livros, numa sequência de abordagem das transformações que o mundo sofreu a partir do fim do período feudal se completaria com a ERA DOS EXTREMOS – O breve século XX.
Seu livro de memórias, TEMPOS INTERESSANTES, mais do que uma produção que complementa a “Era dos Extremos”, é uma lição de vida, onde ele pontua toda sua vivência intelectual sintonizada com os fatos históricos que marcaram intensamente o único século em que aconteceram duas guerras mundiais. Nascido no ano da Revolução Bolchevique, e tendo que viver sua infância e adolescência em meio a uma Europa que saíra de uma guerra pavorosa e se preparava para entrar em uma outra guerra mais sangrenta ainda, construiu toda a sua competência intelectual fortemente influenciado pelo crescimento das ideias socialistas. Apesar do furacão que levou parte desses ideais, com a sequencia de crises que envolveu os países socialistas, ele manteve-se firme ideologicamente, e sempre foi uma voz presente nas críticas à globalização neoliberal. Difícil encontrar alguma incoerência em seus escritos, e qualquer contradição entre o que ele escreveu e o que efetivamente está registrado na história.
Hobsbawm sempre me inspirou, e carrego em quase todos os meus escritos um pouco de sua visão de mundo, profundamente incorporada da teoria marxista, com a qual ele foi coerente até os últimos dias de sua vida. E, talvez pressentindo seus últimos dias, publicou um livro em que procura dar sua contribuição aos que, indignados, se batem nas ruas contra as injustiças e contradições do sistema capitalista: COMO MUDAR O MUNDO – MARX E O MARXISMO (2011) com textos atualizados e outros inéditos.
Longa vida ao grande mestre da História!! ERIC John Earnest HOBSBAWM (Alexandria, 9 de Junho de 1917 - Londres, 01 de outubro de 2012).


O SÉCULO DE HOBSBAWM
Artigo de Vladimir Safatle, professor livre-docente do Departamento de filosofia da Universidade de São Paulo.
Morreu ontem Eric Hobsbawm, um dos mais influentes historiadores do século 20. Sua influência veio não apenas de um trabalho seguro e rigoroso de pesquisa historiográfica que privilegiava movimentos sociais dos séculos 19 e 20. Na verdade, em uma época como a nossa, que parece abraçar de maneira entusiasmada a crítica das chamadas "metanarrativas" com suas visões de processos globais e movimentos teleológicos, Hobsbawm destoava por ser um dos poucos que não se contentavam em afundar-se na micro-história.
Sem medo de procurar processos nos quais rupturas socioeconômicas e produção de novas ideias de cunho universalista se entrelaçam, Hobsbawm soube, como poucos, mostrar como a história da modernidade ocidental sempre foi a história das revoluções.
Fiel à filosofia da história de cunho hegeliano herdada pela tradição marxista, ele escreveu quatro livros clássicos ("A Era das Revoluções", "A Era do Capital", "A Era dos Impérios" e "Era dos Extremos") a fim de mostrar como as exigências igualitárias de liberdade enunciadas pelos setores populares da Revolução Francesa moldarão o curso da história como uma voz que sempre volta. Tal voz da igualdade será o fator de inquietude de uma história que será, cada vez mais, realmente mundial.
Adorno dizia que a fixação positivista nos "fatos" escondia, muitas vezes, a simples incapacidade de enxergar estruturas. Pensar é saber estabelecer relações e, se é inegável que certas construções da historiografia marxista demonstram-se infrutíferas e demasiado genéricas, há de se reconhecer que a rejeição em bloco dessa tradição teve forte impacto negativo na nossa capacidade de pensar a história.
Mas isso nunca impediu Hobsbawm de imergir nos detalhes e encontrar, por exemplo, na voz de Billie Holiday as marcas do sofrimento social dos esquecidos do sonho americano (conforme o livro "História Social do Jazz") ou nas desventuras do bandido Jesse James algo de fundamental a respeito dos descaminhos de nosso ideal de liberdade e das debilidades do poder (conforme o livro "Bandidos"). Hobsbawm sabia ler tais "fatos isolados" como sintomas sociais.
Alguns, como o historiador britânico Tony Judt, insistiam que Hobsbawm não teria capacidade de compreender as ilusões que moldaram o século 20, em especial o comunismo. Talvez seja o caso de dizer que a compreensão da história como simples crítica das ilusões corre o risco de perder de vista o essencial: de onde vem a força que faz com que indivíduos consigam ir além de seus próprios interesses imediatos? O que talvez explique porque quis o destino que o último livro de Hobsbawm se chamasse exatamente "Como Mudar o Mundo".


HOBSBAWM EXPANDIU LIMITES DO PENSAMENTO MARXISTA
Artigo de Jorge Grespan, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo.
Eric Hobsbawm conquistou justo prestígio entre o grande público apreciador da história e também entre seus colegas de ofício, o que já é em si algo digno de nota. Claro e elegante, abordou temas aparentemente tão distintos como o mundo do trabalho e o jazz, sempre preocupando-se em relacionar as várias esferas da vida social e fugir de explicações unilaterais, pintando quadros históricos largos, mas precisos.
Incluindo-se na geração de historiadores do pós-Guerra que chamava de "modernizadores", dedicou-se inicialmente à história do século 19, e o sucesso alcançado por seu "A Era das Revoluções" levou-o a escrever "A Era do Capital" e "A Era dos Impérios".
Não os escreveu para os colegas, mas tornou-se referência também para eles, carentes de obras que rompessem limites entre temas particulares e situações nacionais.
Teve nesse ponto importância decisiva, ao criticar a historiografia acadêmica tanto por sua especialização excessiva quanto pelos preconceitos que a impedem de se dirigir a um público leigo.
Hobsbawm chegava a se apresentar como "vulgarizador". Mas não nos enganemos: atingir um público amplo significava não satisfazer a curiosidade acrítica do mercado editorial, e sim participar de um esforço formador.
Em grau e forma própria, compartilhava com colegas como Christopher Hill e E. P. Thompson de uma atitude crítica em relação ao que se consideraria próprio a um historiador marxista e, por isso, inovou nos temas e métodos, como ao escrever sobre uma de suas paixões, o jazz.
Aqui, como na obra sobre "A Invenção das Tradições", o interesse é iconoclasta. Trata-se de solapar entidades caras ao neoconservadorismo militante a partir dos anos 1970, descobrindo o lado mistificador de certos apelos ao passado legitimador.
Mais do que expressão do inconformismo racial nos EUA, o jazz é entendido no contexto da história da indústria, em especial a cultural. E tradições importantes da monarquia inglesa são examinadas e diferenciadas dos "costumes" em que se baseia o direito consuetudinário típico da ilha, para evidenciar que nelas o passado aparece como algo justificador da resistência a mudanças perigosas para os poderes constituídos.
Mostra assim aos críticos que o marxismo não precisa ser economicista. Mas o mostra também aos marxistas. Esses são seus grandes legados.
Como seria inevitável, há quem discorde de teses expostas na sua vasta obra. Mas não quem negue que ele foi um dos maiores historiadores marxistas de nossa era, cujos "extremos" parece que só começaram depois de 1991.

Extraído do Jornal da Ciência on line: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=84396