quarta-feira, 31 de agosto de 2011

COBAIAS HUMANAS – AS EXPERIÊNCIAS CRIMINOSAS DOS EUA NA GUATEMALA


Imaginem se essa notícia dissesse respeito a países como Cuba, China, Rússia, Irã ou qualquer um outro que não se alinha diretamente com as políticas dos EUA.
Nos anos de 1946 a 1948 os Estados Unidos, através de um programa conduzido pelo National Institutes of Health, agência ligada ao Departamento de Saúde, realizou uma série de experimentos em seres humanos na Guatemala. Ao estilo dos cientistas geneticistas nazistas, tipo Mengele, foram usados pacientes psiquiátricos e prisioneiros para testarem se a penicilina poderia ser usada preventivamente, sem que nenhum deles soubessem que estavam sendo submetidos ao tratamento. Os médicos usaram prostitutas contaminadas pela sífilis e gonorréia para que as mesmas tivessem relações sexuais com aquelas pessoas.
Segundo denúncia de uma professora-pesquisadora, Susan Reverby, do Wellesley College, de Massachusetts. De acordo com notícias publicadas pela Agência Estado “ela pesquisava sobre ensaios clínicos realizados pelo médico norte-americano John Cutler quando encontrou documentos sobre as experiências na Guatemala”. Isso teria sido descoberto e divulgado em 2010.
Certamente abafado pela grande mídia internacional essa notícia somente agora vem à tona depois que foi divulgado um relatório elaborado por uma comissão criada por Barak Obama. “Os autores do relatório concluíram que quase 5,5 mil pessoas foram submetidas a exames e um total de 1,3 mil guatemaltecos foram infectados com doenças venéreas”. Das pessoas infectadas cerca da metade receberam tratamento médico, sendo que mais de 80 faleceram como conseqüências dessas doenças que podem, além de matar, causar problemas cardíacos e também cegueiras.
Coube à Secretária de Estado Hilary Clinton, as costumeiras desculpas por esse crime cometido, em suas palavras “desumanos e antiéticos”, durante o governo de Harry Truman. Na época os EUA travestia-se de defensor da liberdade, título que busca ostentar até hoje às custas de atos como esses, e preocupava-se em demonizar para todo o mundo as “barbáries do comunismo soviético”.
Indignado, o presidente atual da Guatemala considerou o ato um crime contra a humanidade e deu ordem para que uma comissão guatemalteca se encarregasse de fazer sua própria investigação e ameaça levar o caso aos tribunais penais internacionais. Segundo a pesquisadora responsável pela denúncia, o próprio governo da Nicarágua na época teria aceitado a experiência, em troca de ajuda financeira.
Cabe ressaltar que a mesma professora já havia denunciado, à época do presidente Bill Clinton, após a realização de outra pesquisa sobre o “experimento Tuskegee”, que cientistas dos Estados Unidos usaram pacientes negros naquele país, para fazer acompanhamento da doença, sem que eles soubessem que tinham contraído a doença.
Obviamente não nos estranha  a maneira complacente como esse caso, típico de enredo de filmes sobre as experiências nazistas, é mostrado. Mas não é também novidade, embora não hajam as mesmas cobranças quando se exige democracia naqueles países não alinhados aos EUA.
Um romance de John Le Carré, ele próprio um ex-espião da CIA que se tornou um dos maiores escritores de histórias de espionagens, foi transformado em filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meireles: O Jardineiro Fiel.
O enredo do filme gira em torno do desaparecimento de uma cientista que descobre a utilização de cobaias humanas, pessoas de países africanos, que eram (e certamente ainda são) submetidas à tratamentos com medicamentos ainda em fase de identificação de possíveis reações adversas em seres humanos. Esses medicamentos são distribuídos sem que essas pessoas saibam de seus possíveis efeitos colaterais. Os resultados, de conseqüências muitas vezes funestas, serviriam para identificar os problemas daquele medicamento antes deles serem comercializados nos Estados Unidos e demais países ocidentais.
O poder das grandes corporações vai pouco a pouco sendo provado e denunciado, bem como suas práticas criminosas e desumanas, mas não consegue ter repercussão porque essas informações são sufocadas tanto pelas demais corporações que comandam a mídia internacional, como pelos próprios países de onde elas mantêm toda a sua rede criminosa. Os governos desses países, acorrentados ao poder que elas possuem, e que são manifestados nos processos eleitorais completamente corrompidos e financiados abertamente por elas, tornam-se cúmplices dessas ações criminosas.
É por essas e outras que devemos cada vez mais duvidar da forma como as notícias chegam até nós, e também pela diferença da indignação quando se trata de crimes praticado pelos EUA. Ainda esta semana, como feito no Iraque quando da ocupação da prisão de Abu Graib (ela própria depois tornada palco de tortura pelos soldados estadunidenses), foi mostrado a prisão onde eram mantidos os prisioneiros políticos líbios.
No entanto até hoje não se tem notícia de nenhum grande órgão de comunicação que tenha entrado na prisão de Guatánamo e mostrado imagens sobre como os prisioneiros ali são tratados. A maioria sem condenação.
Quando se fala de direitos humanos o que se espera é que não haja contemporização da mídia e dos governos, estabelecendo padrões diferenciados de tratamento para crimes que são semelhantes.

sábado, 27 de agosto de 2011

A GUERRA NA LÍBIA E A ESTRATÉGIA IMPERIALISTA DE CRIAR DEMÔNIOS

África - IDH.

██ 0,800–1,000
██ 0,750–0,799
██ 0,700–0,749
██ 0,650–0,699
██ 0,600–0,649
██ 0,550–0,599
██ 0,500–0,549
██ 0,450–0,499
██ 0,400–0,449
██ 0,350–0,399
██ abaixo de 0,350
██ sem dados
Para começo de conversa quero apresentar o mapa do IDH na África. Assim, inicio procurando desmontar as farsescas reportagens do Jornal Nacional, apresentadas de lugares seguros, obviamente, mas de uma Trípoli destruída pelas bombas da OTAN entremeado a uma guerra de rebeldes e mercenários incógnitos e soldados leais ao ditador Kadhafi, muitos deles também mercenários.
Por toda essa semana a mídia tentou apresentar uma imagem da Líbia que justificasse as agressões criminosas da OTAN. O repórter Marcos Uchôa, com um texto pretensamente jornalístico, induzia o telespectador a acreditar em imagens selecionadas e em um relato piegas de uma realidade forjada pelos interesses de justificar as ações da OTAN. Isso pelo método comumente adotado, de demonizar o inimigo e assim convencer a opinião pública. Boa parte dela completamente desinformada daquela realidade. Situação que se torna pior com as edições desses noticiários.
Essa prática de demonizar o inimigo, já foi utiizada em várias oportunidades. Desde Noriega, antigo agente da CIA (transformado em monstro tão logo se opôs à política dos EUA), passando por Sadam Hussein (queridinho de Washington na guerra contra o Irã), pelos Talibãs (guerrilheiros da liberdade para Ronald Reagan, que os viam como instrumentos para expulsar os soviéticos do Afeganistão), por Hugo Chaves (cuja situação só não foi pior porque o golpe arquitetado pelos Estados Unidos foi frustrado) até chegar ao Kadhafi, reconhecido pelos EUA, segundo documentos tornado publico pelo Wikileakes como o principal instrumento para conter a escalada de terrorismo naquela parte do mundo. E olha que a lista dos demônios é longa, não cabe nesse espaço e talvez possa lotar o inferno (se é que existe este lugar senão em alguns pontos aqui mesmo da Terra).
Já abordei em outro artigo um pouco do aspecto geopolítico da Líbia e da característica exótica de seu ex-ditador (http://www.gramaticadomundo.com/2011/03/revolta-nos-paises-arabes-um-olhar.html). E que, embora estando há décadas no poder, e reconhecido publicamente a participação de seu governo em atos terroristas – caso conhecido do atentado ao avião Pan Am em 21 de dezembro de 1988, sobre a cidade de Lockerbie, na Escócia -, conseguiu se recompor com o Ocidente e estabeleceu relações amistosas integrando a guerra contra o terrorismo, atendendo os interesses dos Estados Unidos.
Logo após essa reaproximação kadhafi iniciou um processo de abertura de sua economia possibilitando que grandes corporações, principalmente relacionadas aos negócios do petróleo, pudessem atuar livremente na Líbia. Um dos ministros responsável por essa abertura, que lhe serviu durante muito tempo, compõe também hoje o auto-denominado “Conselho Nacional de Transição” (juntamente com mais dois ex-ministros).
É sabido que ao longo de quatro décadas Kadhafi tem governado a Líbia com mãos de ferro, impedindo participação de setores divergentes na política local, caracterizando, portanto, um governo fortemente centralizador e ditatorial. Esse aspecto político, contudo, não pode esconder uma realidade econômica que é completamente diversa da maioria dos países africanos.
Por mais que tentasse, Uchôa, com seu jornalismo matreiro, de selecionar imagens para inserir um texto condenatório, não conseguiu encontrar em Trípoli situações de miséria que pudesse sensibilizar a opinião pública. Isso porque a Líbia é detentora do maior IDH dentre todos os países da África (ver mapa acima com a Líbia na cor verde). Há características que são peculiares àquelas cidades milenares, de pequenas ruas tomadas por comércios populares, que, quando cheias dão a impressão de um caos. Mas nada diferente da forma como funcionam as feiras e as ruas de comércios intensos em cidades tanto dos países árabes como em alguns da América.
As divergências existentes na Líbia são políticas. O longo tempo de Kadhafi no poder, obviamente desfrutando ao seu prazer e de sua família de uma enorme riqueza advinda de um petróleo de boa qualidade, despertou, como não poderia ser diferente (e o que espanta é o tempo em que isso demorou), a ira de setores ligados a tribos que não viam essa concentração de poder com bons olhos. E, claro, gostariam também de participar das mesmas mordomias de que se serviam o clã dos Kadhafi.
Não tem nada a ver, como no relato medíocre (e ideológico) do repórter da Globo, de que agora o povo líbio se livrava de um “ditador que portanto tempo fez um mal terrível” à população daquele país. É recorrente essa tentativa de ligar condições de misérias a governos que se mantém longo tempo no poder. Essa não é uma relação historicamente honesta. Porque não se busca então mostrar com o mesmo impacto a situação da Arábia Saudita, ou do Baherein? Ou demonstrar com uma honestidade que não se vê na grande mídia, casos de democracia em que as condições de miséria da população são tenebrosas, como no Haiti?
Recentemente vimos um espetáculo grotesco, em um mundo com grave crise econômica e diante de uma África que passa mais uma vez por situações de calamidade e de crise humanitária decorrente do grande número de pessoas que passam fome. Me refiro ao casamento de um descendente da realeza britânica. Há quanto tempo esses reizinhos de meia-tijela (mas com muito patrimônio herdado ás custas do sacrifício do povo e do saque da riqueza de outros países) vêm se sucedendo? Talvez ultimamente eles não andem tendo muitas oportunidades porque a rainha-mãe resiste centenariamente.
O que os tornam diferentes dos sheiks, príncipes e ditadores iguais ao Kadhafi e tantos outros defenestrados agora na chamada “primavera árabe”? Talvez a habilidade política de garantir ser constituído um governo que lhes garantam uma espécie de proteção aos seus reinados. Assim, enquanto os “comuns” se digladiam por um poder transitório, essa “nobreza” medieval se mantém segura a um poder permanente.
As revoltas em Londres, bem como as de Madri (e outras cidades pelo interior desses dois países), também demonstram insatisfações, nesses casos decorrentes de falências econômicas de seus Estados. Mas o que os tornam semelhantes é exatamente ainda o fato de serem monarquias constitucionais. De manterem velhas nobrezas pairando sobre as situações de crises e de desmando políticos e econômicos.
Hipocrisia. Essa é a palavra que melhor pode caracterizar a maneira como as informações sobre a crise na Líbia é transmitida pelas grandes redes de comunicação. Mais ainda é o fato de o desfecho, com a invasão dos “rebeldes” à Trípoli, ter se tornado um forte argumento para que imediatamente sumissem das manchetes quaisquer informações relativas à grave crise econômica que atinge Europa e os Estados Unidos.
Esse comportamento, de sempre demonizar um governante quando ele não atende mais aos interesses das grandes potências, vai, pouco a pouco, desmascarando todo esse viés ideológico e manipulador dos meios de comunicação. Afinal, desde 2003, quando Kadhafi modificou suas relações políticas com o Ocidente que, tudo isso que agora vem sendo mostrado como decorrente da ação de um louco, exótico, ditador, foi aceito, tolerado e usado para atender a estratégia do Império de “guerra ao terror”.
Condoleza Rice, Secretária de Estado, dos EUA, estabeleceu tão fortes relações diplomáticas e políticas com Kadhafi que despertou nele uma paixão agora revelada em um álbum encontrado em meios aos destroços de seu palacete.
Ademais, aquietaram-se também as vozes políticas do ocidente quando o ditador reabriu a Líbia para que as grandes corporações, notadamente aquelas vinculadas à indústria do Petróleo, pudessem voltar a agir com mais liberdade e a explorar um dos maiores potenciais daquele país.
Mas existem outras aberrações que nos deixam, a nós que buscamos compreender com um olhar geopolítico todas essas desavenças, revoltados. Basta rever o noticiário no dia seguinte à entrada dos “rebeldes” em Trípoli. A mídia brasileira, e alguns comentaristas bufões a seu serviço, esmeraram-se em críticas à postura do Brasil, que, corretamente, recusou-se a apoiar a agressão pela OTAN ao território líbio.
Mas, não bastasse esse comportamento trivialmente vinculado aos interesses imperialistas, por ser já uma característica recorrente, eles explicitaram a visão rapace que a meu ver motivou a decisão de bombardear aquele país. Por vários dias seus argumentos repetiam um tom tipicamente oportunista e que bem caracteriza a lógica de um sistema que se compraz em saquear os mais fragilizados, principalmente se esses estiverem em seus estertores.
Então a grande crítica era que, pelo fato de a diplomacia brasileira não ter apoiado a invasão, as empresas brasileiras seriam punidas por isso e não participariam do processo de reconstrução do país. É bem típico, portanto, do chamado “capitalismo de desastre”, que eu já abordei no post em que analiso a crise econômica. E é assustador, porque reforça uma compreensão de que a maneira de sair de uma crise é invadir algum país, de preferência que seja um com muitos recursos como água e petróleo, e com bilhões de dólares em depósitos nos principais bancos das maiores potências européias e Estados Unidos. Como é o caso da Líbia.
Uma divisão macabra, em um momento em que uma verdadeira carnificina acontecia nas principais ruas de Trípoli, de tal forma que não haviam mais leitos nos hospitais em condições de atender à quantidade de pessoas feridas. Assim como o massacre que ocorria, protagonizado pelos dois lados em disputa, com execuções sumárias e indistintamente, a quem quer que fosse suspeito ser adversário.
No meio de tudo isso, dessas diatribes de fantoches travestidos de jornalistas, uma frase escapou, seguramente de forma inadvertida, quando foi dito que o Hotel onde se encontravam os jornalistas estava em intensa confusão, porque tinha recebido parte do Conselho de Ministro dos rebeldes e “um grupo de espiões britânicos” que ali se hospedara.
Ora, essa é a parte secreta da história que não pode ser dita. A enorme quantidade de mercenários a serviço dos dois lados, uma das principais características das guerras atuais e da composição dos exércitos, boa parte terceirizados com poderosas empresas de segurança militar. E, principalmente, uma leva de espiões a serviço da Inglaterra, França, Estados Unidos e Itália, a desfilar disfarçadamente pelo território líbio e proporcionar atos que pudessem ser transmitidos para todo o mundo e posteriormente responsabilizar a ditadura líbia, assim como para acelerar sua derrubada. São os chamados “chacais”, no dizer de John Perkins, em “Confissões de um assassino econômico” (http://www.youtube.com/watch?v=PQNKhlrxnsw).
(Sabemos como isso acontece. A ação de agentes que realizam atos terroristas para depois responsabilizarem outras organizações e justificar os seguidos massacres. Vimos isso acontecer aqui no Brasil no final da ditadura militar, com o caso da explosão de uma bomba em um veículo Puma, quando dois oficiais do serviço de espionagem do exército tentavam cometer um atentado no Rio Centro, durante um show de comemoração ao dia 1º de maio, em 1981).
Contudo isso, revelando nesses comentários e reportagens o que de fato está por trás da guerra na Líbia, fica bem claro que as informações que nos são passadas carecem de credibilidade. São imagens selecionadas e comentários suspeitos, que servem aos objetivos de destruir um país para depois garantir às grandes corporações o direito de lucrar em cima das desgraças cometidas sobre um povo. É a tentativa desesperada de as cabeças da hydra, prosseguir resistindo a uma crise mortal, já que de seu interior não há mais alternativas viáveis que venham a solucionar seus problemas crônicos e estruturais. A guerra, como sempre, surge como alternativa de garantir o assalto às riquezas de outras nações como forma de recompor seus tesouros.
Pode ter sido o fim de Kadhafi? Sim. Assim como foi o de Sadam Husseim. O que não significa que com isso tenha se chegado ao fim à ganância e a fúria imperialista. Nem que isso seja a garantia de que nesses países a pretensa liberdade oferecida pelos novos (e indecifráveis) governantes seja garantia de paz, liberdade e segurança. Basta ver a situação do Iraque e do Afeganistão.
Não foi a multidão que derrotou Kadhafi, como aconteceu em outros países árabes. Mas sim, os bombardeios da OTAN, atendendo a outros interesses, principalmente ao controle do petróleo. Quanto aos “rebeldes”, é impossível caracterizá-los nesse momento. Eles representam uma infinidade de tribos, de regiões distintas, e que têm cada uma delas interesses também de exercer controle no comando do país. E possivelmente com integrantes da Al Qaeda, tornada inimiga de Kadhafi durante a recomposição com o Ocidente.
O reconhecimento interno do futuro governo dependerá das tribos que estiverem nele representadas. E elas somam mais de cem, mostrando que, como na antiga Iugoslávia, que manteve-se unificada em torno da figura de Josip Broz Tito, pode acontecer o mesmo na Líbia, que até então só conseguiu manter-se unificada diante do carisma e do pulso firme e ditatorial do Muammar Kadhafi.
O futuro da Líbia, portanto, ainda não se escreve no presente. Desse país com o maior IDH da África, estrategicamente situado, com uma das maiores obras de engenharia de abastecimento hídrico do mundo, com poços de petróleo de excelente qualidade e enorme reserva em seu subsolo e com bilhões de dólares seqüestrados pelos países europeus e Estados Unidos, o que se pode dizer é que um enorme retrocesso econômico fará despencar esse índice de desenvolvimento.
Certamente essa agressão não será suficiente para conter a grave crise econômica que atinge o sistema capitalista. Mas será responsável por tornar a vida do povo líbio mais complicada economicamente e insegura quanto a sua integridade territorial e nacional.
É importante observar nos próximos meses as movimentações das grandes potências. Por trás das cortinas escondem-se poderosos interesses no continente africano, nos últimos anos com um gradativo aumento da influência chinesa, tanto buscando o controle sobre o petróleo, como adquirindo terras a fim de ampliar a produção agrícola para atender a forte demanda desse gigante asiático em franco desenvolvimento.
Com a crise européia vê-se uma forte mudança no comportamento de países como a França, Itália e Inglaterra, buscando retomar antigas áreas de influências na África, na Ásia e Oriente Médio. As pedras no tabuleiro de xadrez da geopolítica mundial mexem-se como os frenesis de atores ansiosos por deter o tempo. O Século XXI mal começou e já dá sinais de que será de um tempo longo e de profundas mudanças estruturais.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

HISTÓRIA E VERDADE - PARA NÃO ESQUECER QUE FOMOS SUBMETIDOS A UMA DITADURA MILITAR

 Durante quase duas décadas tenho me dedicado a estudar a Guerrilha do Araguaia, um dos movimentos de resistência à ditadura mais conhecido e emblemático do período. Iniciei minha pesquisa em 1992 e continuo até hoje envolvido nesse processo. Tenho dito que comecei pesquisando a história da Guerrilha do Araguaia e que hoje me sinto dentro dessa história.
Fui convidado a participar como observador das expedições do Grupo de Trabalho Tocantins(*), criado pelo Ministério da Defesa com a finalidade de cumprir a determinação judicial imposta pela juíza Solange Salgado, da 1ª Instância Judiciária Federal, no Distrito Federal, em ação proposta por familiares dos desaparecidos naquela guerrilha. Muitos dos quais comprovadamente executados após terem sido presos com vida. O objetivo é encontrar restos mortais dos militantes que se envolveram no movimento guerrilheiro, garantindo às suas famílias o direito ao sepultamento digno de seus corpos, bem como às informações das circunstâncias de suas mortes.
Mas, dez anos antes do começo da minha pesquisa, caravanas de familiares já haviam percorrido a região, com poucos recursos e condições materiais, em busca de informações que levassem ao paradeiro dos corpos dos guerrilheiros. Soube-se, a partir daí, além das informações documentadas, que diversos moradores da região, e não somente militantes do partido que organizou a guerrilha, o PCdoB, também estavam desaparecidos. Ou porque se tornaram, eles também, guerrilheiros, ou porque foram vítimas da brutalidade que se abateu sobre os moradores da região (sul do Pará e norte de Goiás, hoje Tocantins).
Ainda assim, dez anos depois, quando iniciei as entrevistas com moradores da região, pouco se divulgava em termos de documentos que comprovassem a existência de um movimento guerrilheiro naquela área. A não ser aqueles conseguidos sigilosamente, mas ainda aquém da importância que o movimento possuiu, e com conteúdo que não possibilitava identificar o grau de agressividade e de abusos cometidos, com prisões indiscriminadas de moradores, torturas, assassinatos e desaparecimento de corpos de militantes após serem executados friamente.
Soubemos também, por informações obtidas junto aos moradores, que frequentemente circulavam pela região militares disfarçados, ou expondo-se abertamente, de forma a intimidar os moradores e impedi-los de relatar os fatos que aconteceram e dos quais muitos foram vítimas com prisões e torturas físicas ou psicológicas.
Assim, além de impedir que familiares e pesquisadores tivessem acesso a fontes documentais que pudessem registrar a memória daquele movimento, utilizava-se do medo para impedir que através da história oral pudéssemos obter as informações necessárias daquela população que viveu dias angustiantes de violência e intimidação. Desse modo, era negado não somente aos personagens diretos as informações de suas ações e de suas vidas para conhecimento de seus familiares, como também se cerceava os moradores de resgatar a memória de suas vidas, forçando-os a uma amnésia torturante, pois imposta pelo medo.
Considero toda essa epopéia que tenho registrado, juntamente com outros pesquisadores, como um claro exemplo de que o controle das informações pessoais constitui-se num instrumento de poder antidemocrático, e que continua mantido apesar de já estar estabelecida a democracia. Está demonstrado que acima do Estado pairam ainda canais de ilegalidade onde se escondem personagens como os torturadores, que se livraram de punição, em função de uma autoanistia concedida pelo próprio regime militar.
Muito embora os canais democráticos funcionem e as instituições que se envolveram diretamente no processo repressivo, obviamente representadas por outros personagens, cumpram as determinações que as autoridades judiciárias estabelecem, ainda assim permanecem as dificuldades para se abrir todo o “baú” onde se escondem informações valiosas sobre aquelas pessoas que reagiram ao arbítrio e pagaram por isso com suas vidas.
Isso nos leva a pressupor que uma das garantias constitucionais mais importantes, assegurada também pela Declaração dos Direitos Humanos da ONU, o direito à informação pessoal, à verdade e, consequentemente, à memória, ainda continua a ser usada contra o próprio cidadão.
Principalmente nos dias atuais, quando somos muito mais facilmente monitorados por todos os mecanismos tecnológicos que garantem ao Estado o controle de nossas vidas. Portanto, ainda não temos acesso total às informações, como nos deveria ser de direito, apesar de todos os esforços envidados, destacando-se a Comissão Especial dos Familiares dos Desaparecidos Políticos, a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e o Arquivo Nacional, através do Projeto Memórias Reveladas.
Repito aqui, e essa é a razão de postar esse artigo, uma opinião sobre o que foi dito em algumas exposições na mesa de debate do Seminário Internacional sobre Acesso à Informação, em que estive presente no final do ano passado, organizada pelo Arquivo Nacional, através do Projeto Memórias Reveladas.
Sou um historiador e não tenho medo de assumir, em absoluto, que o meu olhar é guiado pelos elementos que me conduziram ao longo de anos de militância política. Abdiquei, faz pouco tempo, de uma ativa militância partidária de três décadas. Mas não dos paradigmas que foram responsáveis por construir a minha visão de mundo, porque ela é fundamentada em valores de respeito à vida humana e à defesa de uma sociedade em que as pessoas sejam respeitadas não pelo que possuem em termos de riqueza material, porém pela sua condição de indivíduos que merecem igualitariamente ser tratados com dignidade.
Por isso, não me preocupo em ser julgado por falta de isenção, desde que dentro do meu critério de verdade, eu esteja me guiando por esses valores e, fundamentalmente, pela honestidade da análise dos fatos. Afirmo que não pode haver história isenta do olhar ideológico, e desconfio daquele historiador que vive a reafirmar a sua isenção enquanto pesquisador, pois isso é impossível. Sua vida está impregnada de valores culturais que conduzem a sua investigação e influenciam suas conclusões.
Sei que para nós, que fomos militantes destacados e sempre tivemos fortes vínculos partidários, é muito forte o estigma que nos acompanha. Mas preocupa-me o fato de alguns ex-militantes, no afã de se livrar dessa rotulação, ao tornaram-se intelectuais e membros da academia, procurar mostrar-se confiável aos críticos, assumindo, para isso, posições cada vez mais conservadoras e cometendo profundas injustiças e o maior erro que qualquer historiador pode cometer: o anacronismo. Suas autocríticas vêm eliminadas das condições que diferenciam cada época e não passam de afirmações que os possam tornar-se pares aceitos no universo de um sistema acadêmico cuja marca é o conservadorismo e a vaidade, embora com aparentes visões progressistas.
Como foi dito em outros debates do Seminário, a verdade jamais será única. Cada um, a depender do paradigma que seguir, terá uma visão sobre um determinado fato, e fará a sua análise escorada nesses valores. É claro que isso pode mudar ao longo dos anos, pois cada um de nós está sujeito a isso. Mas o que não se pode é pretender que, por ter sido “flexível” a essas mudanças e capaz de fazer “autocrítica”, cada um se julgue no direito de considerar ser a sua abordagem a mais isenta.
Considero um enorme equívoco que alguns historiadores, outrora militantes aguerridos e membros de organizações revolucionárias, caçados e perseguidos por um sistema ditatorial fortemente hierarquizado sob o absoluto controle das forças armadas, queiram agora fazer uma revisão historiográfica e questionarem o termo ditadura militar. Vivíamos, sim, uma ditadura militar, e não “cívico-militar”, como se pretende agora dizer os revisionistas, quase que se aproximando da expressão “ditabranda”, para diferenciá-la de outras que ocorreram na América Latina.
É claro que o absoluto controle de todo o aparato do Estado, principalmente aquele construído pela mente de seu ideólogo maior, Golbery do Couto e Silva, que dizia respeito à “ideologia da segurança nacional”, estava nas mãos dos militares. Tanto é que não permitiram que Pedro Aleixo, vice-presidente da República, assumisse a Presidência, quando Costa e Silva morreu, em 1969, com a aplicação do Ato Institucional nº 16 (AI-16). Mantiveram uma junta militar até a escolha do próximo militar-ditador.
O fato de muitos civis, políticos e empresários terem dado suporte à ditadura não os tornam condutores daquele movimento, muito embora tenham a mesma responsabilidade pelos desmandos cometidos e pelo financiamento a ações criminosas como na conhecida Operação Bandeirantes. Até porque seria inimaginável qualquer governo que não contasse com a presença civil.
Nos últimos anos isso tem vindo à tona, por meio do resgate da história de um período obscuro e, até mesmo porque muitos daqueles que serviram à estrutura criminosa que foi montada para silenciar os que divergiam, erguem-se das sombras e começam a contar parte da guerra suja travada nos porões. Pudemos ver isso no depoimento de um agente da ditadura, registrado no livro de Tais Morais, publicado pela Geração Editorial, “Sem Vestígios”.
São segredos revelados que amplificam nossa indignação pela crueldade dos fatos ali relatados, como no caso do esquartejamento do corpo do militante David Capistrano, dirigente do antigo Partido Comunista Brasileiro, que sequer defendia a luta armada como opção de combate ao regime. Ele relata também a operação macabra de retirada dos corpos de guerrilheiros, eliminados após serem presos, dos lugares em que foram abatidos para serem queimados e não deixarem vestígios, na Serra das Andorinhas.
Também é narrado por esse agente-torturador toda a operação que foi montada para prender parte da direção do PCdoB, bem como da previamente planejada execução de dois de seus principais dirigentes, Angelo Arroio (um dos comandantes da Guerrilha do Araguaia) e Pedro Pomar, no conhecido Massacre da Lapa. Sabe-se que um dos alvos principais, também a ser eliminado, era João Amazonas, por acaso substituto de Pomar em uma viagem à Albânia, que o livrou também de ser assassinado.
Da mesma forma pode-se ver em outro depoimento, registrado pelo repórter Roberto Cabrini, no programa Conexão Repórter, do SBT, em 30.03.2011, na semana que antecedeu o início da novela Amor e Revolução. Esses relatos, igualmente revoltantes, podem ser visto através do link, http://www.youtube.com/watch?v=6ExCqtqyQgA&playnext=1&list=PL7B3E2BD2321308A9.
Outras memórias que o Brasil precisa resgatar, e que está conseguindo, são aquelas que ficaram submetidas ao esquecimento forçado, a uma amnésia impositiva, como na situação vivida pelos camponeses do Araguaia. São as memórias de dezenas de milhares de pessoas que foram presas, torturadas e assassinadas por delitos de opinião, por divergirem politicamente, por defenderem alternativas políticas e sociais para o nosso país. Mas que a tortura tornou a própria lembrança desses fatos, em situações de horror psicológico, ansiedades e depressão.
Esse foi um período marcado pelos desmandos de uma ditadura militar, e de uma estrutura fundada na ideologia da Segurança Nacional, com mecanismos de repressão sob absoluto controle dos militares. Os civis que os serviam não eram os que davam a última palavra, e os que divergiam, como no caso do Governador de Goiás, Mauro Borges, que inicialmente apoiara o golpe, eram submetidos à perseguição e cassação de seus direitos políticos.
Muito embora tudo isso, vivemos obviamente nos dias atuais circunstâncias completamente distintas. As Forças Armadas submetem-se a um governo civil, com uma presidenta que esteve do lado dos que lutavam por liberdades políticas. A democracia capitalista funciona equilibradamente, com seus acertos e desvios de moral e de caráter. E quase todos os antigos militares, que comandaram aquele período e safaram-se de punições devido a auto-anistia, já não estão mais vivos. Outros, que exerceram funções nessa estrutura repressiva encontram-se na reserva das Forças Armadas, não exercem mais influências, apesar de algumas vivandeiras, como o deputado federal Jair Bolsonaro, darem voz ainda a seus farsescos últimos suspiros de uma época que merece sempre ser lembrada, para que jamais se repita. 


(*) Agora, no Governo Dilma Russef, houve uma ampliação do grupo, com a incorporação do Ministério da Justiça e da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, e passou a ser denominado Grupo de Trabalho Araguaia.
(**) Esse artigo é uma adaptação da última parte de uma exposição feita por mim, no I SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE ACESSO À INFORMAÇÃO E DIREITOS HUMANOS, no Rio de Janeiro, em novembro de 2010, organizado pelo Arquivo Nacional.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O CAPITALISMO NA BERLINDA – CRISE ESTRUTURAL OU CONJUNTURAL?

Tenho acompanhado com extrema atenção, e dedicado até um tempo excessivo de minha rotina corrida de doutorando, os acontecimentos que têm sacudido o mundo nos últimos meses e mais intensamente nas duas últimas semanas.
Compartilho a opinião que analisa toda essa confusão como uma extensão da crise de 2008, e principalmente com aqueles que vão mais além, e vêem tudo isso como um reflexo dos atentados sobre os Estados Unidos há quase dez anos. Para uma conclusão rápida nesses prolegômenos, devo dizer que, embora tendo perdido seus principais cabeças, a Al Qaeda conseguiu atingir parte substancial de seus objetivos. Não tenho dúvidas que naquele fatídico dia 11 de setembro de 2001 iniciou-se a degringolada política e econômica da maior potência do mundo, os Estados Unidos e dos seus principais aliados.
Contudo, para além das ações de guerra, seja ela regular, de guerrilhas, ou através de atentados espetaculares, como o aqui citado, existem outros elementos que nos ajudam a entender as transformações que têm afetado todo o mundo.
O ano de 2011 começou dando a impressão que o rescaldo da crise neoliberal, que alterou as relações econômicas em boa parte do mundo causando principalmente drásticos cortes orçamentários nos países, principalmente afetando investimentos produtivos e programas sociais, ficaria restrito àqueles países que sempre dependeram das atenções dos Estados Unidos e Europa.
Todos os olhares voltavam-se para a chamada “primavera árabe”, numa comparação aos levantes ocorridos na Europa no século XIX, que viriam a consolidar o sistema capitalista e o definitivo poder da burguesia como classe dominante.
Como um efeito dominó, já abordado em outro texto que escrevi e foi postado nesse blog em janeiro (http://www.gramaticadomundo.com/2011/01/revoltas-no-egito-tunisia-oma-iemen-o.html), as manifestações se estenderam para além do norte da África, atingindo outros países do Oriente Médio. Não são transformações simples, e essas revoltas ainda estão em seu curso em alguns desses países e outros, onde as manifestações surtiram alguns efeitos expulsando antigos ditadores, não viram resultados concretos em termos de mudanças políticas, como no caso do Egito.
Charge - Chapatte
A maioria das análises reconhece que esses protestos tiveram suas origens nas dificuldades enfrentadas por esses países a partir da crise de 2008, quando as principais potências econômicas reduziram os investimentos, internos e externos, a fim de tentarem conter os déficits crescentes em suas contas orçamentárias.
Mas, como no dizer do velho ditado popular, “pau que dá em Chico, dá em Francisco”, também esses países centrais, responsáveis por fazer girar a economia mundial seguindo-se os preceitos neoliberais implementados desde a era Reagan-Tatcher, se depararam com as mesmas dificuldades que seus satélites, países periféricos que dependiam diretamente da lógica imposta pela financeirização do capital a partir dos anos 1980.
O que vemos é uma espécie de dejà vu, de algo que está se repetindo ao longo das duas últimas décadas, agora com uma redução de tempo entre uma e outra situação crítica que afeta países, continentes e ameaça toda a economia mundial. Mas como vivemos em uma época em que recebemos um cabedal enorme de informações, boa parte da população esquece rapidamente em meio a seus afazeres e a rotinas estressantes, e pensa ser aquilo que retorna à mídia como algo novo. Até porque a própria imprensa faz questão de não responsabilizar essas crises como sistêmicas, mas como conjuntural. E como se fossem restritas a um ou outro país isoladamente.
Claro que as circunstâncias são outras, o estopim que gerou uma reação em cadeia envolvendo uma multidão é diferente, até os lugares mudam. Só não podemos ser enganados quanto às razões estruturais que estão motivando rebeliões em séries, e não somente neste ano. A mídia tem buscado omitir e não divulgar revoltas de jovens e trabalhadores nos países desenvolvidos há muito tempo, principalmente depois da crise de 2008. Ou quando as divulgam tentam apresentá-las como se fossem atos de vandalismo patrocinados por gangs e marginais de variados matizes.
Wisconsin - EUA
Os países que têm sido permanentemente blindados pela mídia com as distorções dos fatos ou com sua omissão são: França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. Invariavelmente, manifestações de milhares de pessoas, com duros embates nas ruas nesses países são mostradas e analisadas com um viés completamente distintos daqueles mostrados nos atos da chamada “primavera árabe”. Já citei aqui em outra postagem (http://www.gramaticadomundo.com/2011/03/terremoto-no-japao-revoltas-arabes-e.html)  as manifestações do Wisconsin, ocorridas no começo deste ano. Dezenas de milhares de jovens e trabalhadores ocuparam as ruas em atos que se estenderam para outras cidades, protestando contra os cortes de recursos para programas sociais e contra mudanças na legislação trabalhista.
Nos países árabes os protagonistas seriam jovens indignados, dispostos a lutarem em defesa da liberdade e da democracia, sendo reprimidos por uma polícia feroz à serviço de ditadores, o que em grande parte é verdade. Enquanto nas revoltas dos países ocidentais, na Europa e Estados Unidos, quase sempre os atores envolvidos nesses atos passam a ser caracterizados como marginais, delinqüentes, e os eventos coordenados por gangs juvenis.
É bom também não esquecermos as furiosas manifestações contra a reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio), no ano de 1999, com enfrentamentos policiais violentos num episódio que ficou conhecido como “a batalha de Seatle”. O episódio se transformou em um filme que nos ajuda parcialmente a entender a dimensão daquele acontecimento. O filme carrega este mesmo nome (A Batalha de Seatle) e tem um elenco com atores do primeiro time de Hollywood.
Ora, o que está por trás dessa tentativa de dar uma conotação diferente para atos que em si carregam insatisfações parecidas, embora com algumas nuanças? Logicamente, o objetivo é preservar a crítica ao sistema e ao modelo de democracia que ilude a população para o sentido de liberdade, cuja vã ilusão permite aos cidadãos acreditar viverem em condições de igualdade perante as leis e as regras da economia capitalista. Pois essa democracia asseguraria a cada um, a qualquer momento, segundo sua disposição e determinação, fazer parte de um clube restrito de ricos e se deleitarem no consumismo garboso de produtos ultra-sofisticados.
Manifestações na Grécia
Manter essa fé e essa crença no sistema, tem sido o esforço hercúleo de uma mídia que se desmoraliza à medida em que essa crise toma proporções incontroláveis e quando os mecanismos possíveis de contê-las já se tornam escassos. Afinal, como convencer o mundo que a maior potência econômica, modelo do sistema capitalista encontra-se quase falida, com uma dívida que extrapola suas riquezas (leia-se PIB), enquanto naquele outrora chamado pejorativamente “terceiro-mundo” desponta um gigante que rapidamente se aproxima da condição de substituir os EUA e tornar-se ela a maior economia do Planeta? Difícil quando essa explicação passa pelo detalhamento do modelo político que vigora na China, que não se baseia na democracia ocidental, nem utiliza das matreirices tradicionais de uma política viciada, desmoralizada – porque se sabe ser ela controlada pelas grandes corporações – e disposta a chegar ao limite da insensatez quando a questão é a disputa pelo poder.
Mas qual o problema nessa afirmação? É que a China, ao se tornar potência, o faz na dependência da maneira como o mercado mundial funciona, inclusive escorado na moeda padrão de referência internacional, que lhe garante uma reserva cambial de mais de um trilhão de dólares. Se os mecanismos políticos são diferentes, a dependência do sistema econômico mundial é muito forte. O que não garante a ela a condição de se dizer livre da contaminação da doença que atinge os órgãos vitais do capitalismo. O que seria, portanto, alternativa, esbarra-se na mesma estrutura sistêmica em crise. Somente, portanto, uma mudança radical poderia conter a disparada rumo ao abismo. Poder-se-ia dizer, a começar pela mudança da moeda padrão da economia mundial, mas isso representaria decretar a absoluta decadência dos Estados Unidos.

CASTELLS X HARVEY: IMORALIDADE POLÍTICA OU FALÊNCIA SISTÊMICA?

Manuel Castells
Nas últimas semanas eu me debrucei sobre vários artigos que circularam em importantes blogs e sites na internet e na revista Carta Capital. Quatro deles me chamaram a atenção* (incluo os links ao final do texto para quem quiser acessá-los), mas selecionei dois para poder fechar esse texto, estabelecendo uma comparação entre as duas abordagens, feitas por intelectuais internacionalmente respeitados, acadêmicos de prestígio em universidades da Europa e EUA: Manuel Castells, sociólogo espanhol, já lecionou em importantes universidades, e é autor da trilogia, “A sociedade em Rede”; e David Harvey, Geógrafo britânico, atualmente professor emérito da Universidade da Cidade de Nova Iorque e autor, dentre outros dos livros, “A condição pós-moderna”, e “A produção capitalista do espaço”.
Castells faz uma análise aparentemente radical, contudo não consegue apontar saídas para aquilo que é mais elementar, os problemas econômicos. Eu diria que sua abordagem parte por premissas verdadeiras, mas chega a uma falsa conclusão. O artigo intitulado, “Não é crise. É que não te quero mais”, consegue, sem dúvida, apontar uma série de problemas que estão afligindo a população, jovens e trabalhadores.  Bem como oferece uma crítica ácida ao sistema financeiro e ao estilo de vida baseado no consumismo desenfreado. Sua leitura da “podridão” que corrói o sistema financeiro, e a forma imoral como se dão as relações entre os bancos, as corporações e o poder midiático é, a meu ver, muito bem feita.
Contudo, Castells finaliza seu texto, primeiro equivocando-se em relação à frase do cartaz do qual ele tira o título de seu artigo: Não é que estamos em crise. Es que ya no te quiero”. Entendo (mas posso estar errado) ser essa uma frase certamente elaborada por alguém que diz não querer mais o capitalismo. No entanto, não é essa a conclusão dele, e sim que é preciso fazer com que “os bancos paguem a crise. Controle sobre os políticos. Internet livre. E, sobretudo, reinventar a democracia...”. Mas, como fazer isso, por quem? Se o controle das ações nesse sistema, bem como os agentes que o exerce são exatamente os banqueiros e as grandes corporações?
David Harvey
Já David Harvey, marxista, busca o entendimento da crise nas profundezas de suas engrenagens, e o título do artigo, em si já sugere isso: “O capitalismo bestial ataca as ruas”. E inicia fazendo uma comparação com as manifestações atuais com a forma como se deu o ataque dos comunardos na Paris de 1871. Enfático em suas críticas estruturais ele busca comparações também com manifestações semelhantes ocorrido em outras épocas para demonstrar que as fissuras que ocorrem hoje são conseqüências das transformações neoliberais levado à cabo na época da primeira ministra Britânica Margareth Thatcher (junto com Ronald Reagan, dos EUA, principais responsáveis por essas mudanças). E é duro, ao dizer:
“Mas o problema é que vivemos em sociedade na qual o próprio capitalismo se tornou besta fera rampante. Políticos-feras mentem nos gastos, banqueiros-feras assaltam a bolsa pública até o último vintém, altos executivos, operadores de hedge funds e gênios do lucro privado saqueiam o mundo dos ricos, empresas de telefonia e cartões de crédito cobram misteriosas tarifas nas contas de todos, varejistas aumentam preços, por baixo do chapéu artistas vigaristas e golpistas aplicam seus golpes até entre os mais altos escalões do mundo corporativo e político... O capitalismo bestial deve ser levado a julgamento por crimes contra a humanidade, tanto quanto por crimes contra a natureza.”.
E finaliza, embora a contundência da crítica ao sistema, com indagações e reflexões sobre qual caminho se descortinará, sem apontar nenhuma alternativa. Algo que sugere dificuldades no entendimento de como superar o sistema atual, e o que advirá de sua falência:
“O que ainda falta para que todos vejam e comecem a agir? Como se poderá começar tudo outra vez? Que rumo tomar? As respostas não são fáceis. Mas uma coisa já se sabe: só chegaremos às respostas certas, se fizermos as perguntas certas”.
Manifestações na Espanha
Nesse embate de alter egos, não me imagino dando respostas para questões tão difíceis. Mas, por ter uma formação marxista, que orgulhosamente carrego há trinta anos, e estar me dedicando a estudar o sistema capitalista a partir da leitura do livro de Marx, O Capital (no Grupo de Estudos de O Capital, do IESA/UFG), acredito que o sistema capitalista chegou ao limite de suas contradições.
Não imaginemos com isso termos em perspectivas imediatas sua substituição. Mas já vivemos, seguramente, uma transição a uma outra formação econômica e social, a partir da falência do modelo atual. O tempo que isso durará é imprevisível, mas sabe-se que a pior crise é aquela em que o velho sistema falido já não mais consegue dar respostas às necessidades da sociedade, e a sociedade se depara com a dificuldade de o novo aparecer rapidamente em condições de substituí-lo.
Do ponto de vista histórico temos a transição ao capitalismo, cujo tempo gasto para o definhamento do feudalismo e a consolidação do novo sistema apoiado em uma nova classe, a burguesia, durou mais ou menos três séculos, a depender de qual paradigma se adota para compreender aquela transformação.
Manifestações em Londres
É claro que vivemos outra época, uma situação em que a aceleração do tempo é conseqüência de toda a revolução incessante propagada pela burguesia e o sistema capitalista. Isso significa dizer que seria impossível em um mundo conectado em rede, com tecnologias que garantem a aproximação entre as nações e, principalmente, com o grau de ganância impregnada na lógica que direciona as ações na sociedade moderna, imaginar que esse choque de contradições se estenderá por muito tempo.
A tendência, como se vê na disputa sectária entre as religiões, nos processos de disputas do poder político em cada Nação e na necessidade de manutenção do controle das riquezas, que o resultado provável venha a ser uma dominação conservadora neofascista principalmente naqueles países que enfrentam as mais graves crises econômicas.
A saída, caso se confirme esse que é o pior dos prognósticos, seria mais uma vez a utilização da guerra, mecanismo já utilizado em outras situações de crises. Para, a partir do caos forçado numa disputa pela hegemonia do poder político e econômico mundial, recuperar a economia capitalista, a partir da lógica já abordada pela jornalista Naomi Klein, de que o capitalismo se retroalimenta de suas próprias crises: “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo de desastre” (**).
Como no horizonte não há outra alternativa consolidada, em função dos problemas acontecidos com o socialismo, embora seja essa naturalmente a saída mais difundida pelos críticos ao capitalismo, só nos resta bradar com todas as forças de nossas críticas a necessidade de superação dos males que afetam a sociedade contemporânea e da contenção das desigualdades crescentes entre as nações. Paripasso, o encadeamento das lutas por direitos sociais e contra situações discriminatórias contra o outro, que tende a crescer à medida em que a situações de crise se acentue.
E oxalá possamos escapar do fatalismo de uma nova guerra de proporções mundiais.

REFERÊNCIAS:
(*)
1. Não é crise. É que não te quero mais – Manuel Castells- http://www.outraspalavras.net/2011/08/08/nao-e-crise-e-que-nao-te-quero-mais/
2. O Capitalismo bestial ataca as ruas – David Harvey - http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18241
4. Não é a Grécia. É o capitalismo, estúpido! – Atílio Bóron- http://www.vermelho.org.br/tvvermelho/noticia.php?id_secao=9&id_noticia=157302
(**)
KLEIN, NAOMI. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.